Mostrar mensagens com a etiqueta António Reis. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta António Reis. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25004: Os Nossos Enfermeiros (17) : Dois meninos, dois amigos, dois destinos... (António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68, novo tabanqueiro, nº 882)




Guiné > Bissau > c. 1966/68 > O António Reis e o seu amigo Sherifo

Foto (e legenda): © António Reis (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



O António Reis, o nosso mais recente tabanqueiro, n.º 882, vive em Avintes, a terra da mais famosa broa de milho do país; ex-1.º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68, é autor de pelo menos dois livrinhos com memórias  da Guiné.


1. Postagem publicada na página do Facebook do António Reis, em 10 de fevereiro de 2023, âs 17:15 (que adaptamos para poste da série "Os Nossos Enfermeiros" (`)


Dois meninos, dois amigos, dois destinos 

por António Reis


– Não vás embora, cabo Reis!  Dizia me o Sherifo, parece que ainda o estou a ouvir...

Não posso, Sherifo, tenho a família e a Rosa à minha espera!...  –  respondia eu.

Tinha acabado a minha comissão de dois anos, dividido entre posto de socorros, sala de observações e cirurgia 1, onde ficavam os mais graves à espera de evacuação para a Metrópole. 

Passei à civil e a ter um requisito dos pais que tinham filhas para casar, que diziam às filhas:

– Arranja um rapazinho livre da tropa.

Casei, mudei de emprego, fui estudar com vinte e seis anos e melhorei a minha posição na empresa, e segui vida fora sem atropelos, cumprindo as regras como fruto da época, produto do sistema.

O Sherifo chegou lá de helicóptero 
[ao HM 241],  foi apanhado num conflito, e ficou na minha enfermaria, cama 9, sempre de cabeça coberta com um lençol. Aos poucos foi-se descobrindo, aos poucos foi comendo, aos poucos foi-se adaptando.

Recuperado, ficou na enfermaria ajudando, fizemos-lhe uma farda, ficou oficialmente com caserna e refeitório e uns trocos no fim do mês. Vinha comigo até Bissau, com autorização oficial. 

Pelas minhas contas ele tinha em 1974, 18/19 anos. Nunca mais soube dele, nunca lhe fiz perguntas, podiam ser melindrosas. Espero que ele não se tenha alistado nas milícias, que era a pior coisa que ele podia fazer. 

As milícias eram africanos que lutavam a nosso lado, eram-nos fiéis, não conheciam outra bandeira nem outro hino e que acreditavam estarem certos. Os que não acreditaram nos acordos (acordos estes que eu sempre lhes chamei de má fé), fugiram, os que acreditaram, nem vou falar do que lhes aconteceu, senão amanhã estou a ouvir dizer que a vida é para se viver, e eu vivi-a e sou feliz. Mas sou fruto de uma época e ainda não inventaram um clique que faça esquecer o que eu vi e que não agarrei, mas que nunca me largou.

A verdade deve ser toda contada e não só metade.
____________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 8 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22080: Os Nossos Enfermeiros (16): O António José Paquete Viegas, da CCS/BCAÇ 1877, que eu conhecia de Faro e reencontrei em Porto Gole (José António Viegas, ex-fur mil, Pel Caç Nat 54, Mansabá, Enxalé, Missirá, Porto Gole, Bolama, Ilha das Cobras e Ilha das Galinhas, 1966/68)

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P24999: Boas Festas 2023/24 (13): António Reis, ex-1º cabo aux enf, Hospital Militar 241, Bissau (1966/68): Natal de 1967: Nós por cá todos bem... (António Reis, Avintes, V. N. Gaia, tabanqueiro, n.º 882)


Guiné > Bissau > Hospital Militar 241 > Natal de 1967 > "Foto que me foi oferecida pelo grande amigo  António Malheiro (natural de Lamego, vive no Porto)."

Com a devida vénia ao António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966-68, que passa a sentar-se à sombra do poilão da Tabanca Grande, no lugar nº 882.

Foto (e legenda): © António Reis (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Da págima no Facebook do António Reis, com data de ontem, às 17:17, reproduzimos a seguinte mensagem (que foi também partilhada na página da Tabanca Grande Luís Graça):

Feliz Natal!

Parecem estar quase todos com ar de quem não gostava de estar onde estavam. Mas 90 por cento estavam muito piores. Era a vida.

Votos de Feliz Natal para aqueles que conheci bem, como para mais de cerca de um milhão que por África passaram, incluindo as suas famílias, pois raro era aquela que lá não tinha um filho, um genro, um cunhado, um sobrinho, etc. 
   
Feliz Natal e Feliz Ano Novo, com muita saíude para toda a  gente. (*)
  
2. Comentário do editor LG:

O António Reis não integra ainda, formalmente,  e por lapso nosso, a nossa Tabanca Grande. Tem apenas cinco referências no nosso blogue. Mas é um dos nossos, um camarada da Guiné: foi 1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966-68, e é amigo do facebook da Tabanca Grande Luís Graça. (**)

Tem pelo menos dois livros publicados com as suas histórias e memórias, incluindo  "A minha jornada em África" (3ª edição agora aumentada e melhorada: Vila Nova de Gaia, Palavras & Rimas, 2015, 110 pp.).

Teve a gentileza de, na altura nos mandar 3 exemplares do seu livro.

Da sua página do seu Facebook, sabemos que o António Ramalho da Silva Reis, de seu nome completo:

(i) trabalhou como Eletrotécnico na empresa TLP - Telefones de Lisboa e Porto;

(i) andou na escola Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia;

(iii) vive em Vila Nova de Gaia;

(iv) nasceu em 28 de fevereiro de 1944, em Avintes, V. N. Gaia (a terra da famosa broa);

(v) é casado;

(vi) é seguido por 113 pessoas;

(vii) tem 205 amigos no Facebook, 25 dos quais em comum com a Tabanca Grande Luís Graça.

Por decisão nossa, e por direito próprio, passa a partir de hoje, dia de Natal, a sentar-se  à sombra do nosso poilão, no lugar n.º 882 (***). (Falta-nos apenas um foto atual...).

Festas felizes para o António e um melhor Ano Novo de 2024.
____________

Notas do editor:

(*)  Último poste da série > 24 de dezembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24997: Boas Festas 2023/24 (12): Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887; José Valério de Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF e Carlos Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2548 / BCAÇ 2879

sábado, 22 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24497: Facebook..ando (31): Heróis dos anos 50 (António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68; natural de Avintes, V. N. Gaia)

1. O António Reis não integra formalmente a nossa Tabanca Grande. Tem apenas quatro referências no nosso blogue. Mas é um dos nossos, um  camarada da Guiné: foi 1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966-68. 

Tem pelo menos dois livros publicados com as suas histórias e memórias, incluindo0 aquelc cuja capa se reproduz abaixo (3ª edição agora aumentada e melhorada: "A minha jornada em África", Vila Nova de Gaia, Palavras & Rimas, 2015, 110 pp.). 

Teve a gentileza de, na altura.  nos mandar 3 exemplares do seu livro (*)

Da sua página do seu Facebook, sabemos que o António Ramalho da Silva Reis, de seu nome completo:

(i) trabalhou como Eletrotécnico na empresa TLP - Telefones de Lisboa e Porto; 

(i) andou na escola Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia; 

(iii) vive em Vila Nova de Gaia;

(iv) masceu em 28 de fevereiro de 1944, em Avintes, V. N. Gaia (a terra da famosa broa);
(v) é casado;

(vi) é seguido por 106 pessoas;

(vii) tem 18 amigos em comum com a Tabanca Grande Luís Graça.

Fica aqui o  convite para ele se sentar à sombra do poilão da Tabanca Grande, convite que já na devida altura foi feito por nós. Basta-nos uma foto atual e o seu endereço de e-mail.


Cápa do livro de António Reis, "A minha jornada em África" , 3ª ed. 
(Vila Nova de Gaia, Palavras & Rimas, 2015, 110 pp.). (*)


Com a devida vénia reproduzimos aqui duas postagens da sua pãgina do Facebook: 



Porto, rio Douro, ponte Dom Luís I.
Foto da página do facebook
 do António Reis (2023).
Com a devida vénia,,,
2. OS HERÓIS DOS ANOS 50

por António Reis (Facebook, quinta feira, 20 de julho de 2023, 11:15)


Em 1954, a minha escola tinha cerca de 40 alunos (só rapazes). Dois conseguiram chegar à 4ª classe, o Mário Sancho e o Isabelino.
 
Em 1955 éramos 4, eu, o Zé Bombeiro, o António Guedes e o Oliveira Santos.
 
Em 1956, centenas de miúdos com 12, 13 e 14 anos atravessavam a pé o tabuleiro de cima desta ponte, uns calçados, outros descalços. Um deles era eu.

Com as soletas enfiadas 
na cintura, só as calçava depois de ter 
atravessado a ponte, porque era proibido 
andar descalço no Porto, dava multa.

Profissão: moço de bate-chapas. | Local de trabalho: Campo 24 de Agosto. | Transporte: a pé, sempre a pé, cerca de 10 km, porque os moços ganhavam 5$00 diários e o meu transporte custava 3$30 para cada lado. Quer dizer que o que eu ganhava, não chegava para o transporte.

Horário: de segunda a sábado, das 8h às 17h. | O pior dia: sábado. Os moços não recebiam os 30$00  [ em meados de 1956, valeriam cerca de 16, 30 euros a preços atuais] e sem a limpeza feita, o que acontecia por volta das 19h (ainda conseguíamos chegar a casa antes da meia noite).
 
Quem não aguentava ia para moço de trolha. Eu fui para moço do Sr. Joaquim Bitangolo ganhar 11$00 diários
[ cerca de 6 euros a preços atuais, valor reportado a meados de 1956] e tive sorte, porque nunca o vi bater nos moços, o que era anormal.
 
E dizem que éramos alegres, felizes e contentes. Uma ova! Heróis e humildes sim, ou o Cardeal Cerejeira não tivesse dito a Salazar que o povo para ser humilde tinha que passar fome. (**)





Facebool > António Reis > Postagem de 21 de maio de 2023 > 

Antigamente havia uma canção que tinha na letra: "Ó Tono, ó Quim, ó Zé, se queres ser amigo vem à romaria". E então o Tono, o Quim e o Zé lá iam. Mas esta foto é de outra "romaria", e ai de nós que não fossemos a ela. Aqui os "foguetes" eram outros. Eu só os via e ouvia de longe, o Zé via-os em São Domingos, o Quim estava em Bissau mas ia a muitas "festas" destas (era Comando). Éramos 3 meninos a quem roubaram três ou quatro anos da nossa vida.

Saudades,  grande amigo Zé! Descansa em paz.

 

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16361: Notas de leitura (866): “A minha jornada em África”, por António Reis, Palavras e Rimas, Lda, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
Estou ciente de que já falei deste livro, há alguns anos. É um testemunho sincero de alguém que durante dois anos trabalhou no HM 241 e viu toda a sorte de dores. Procurou ajudar, e sente orgulho por certos expedientes a que recorreu. Assistiu a grandes desgraças, não esquece o Dr. Fernando Garcia, que ele classifica como médico ímpar. A todos os títulos, um testemunho sem rival. Só tenho pena nestas edições de autor não haja o propósito de incluir o trabalho de um revisor, de uma mão amiga que nos esclareça como é que se escreve Cacine, Guileje ou Corubal. Não nascemos ensinados, não custa nada pedirmos ajuda.

Um abraço do
Mário


O meu dia-a-dia era ver morrer ou chegar os feridos à grande plateia

Beja Santos

O livro intitula-se “A minha jornada em África”, por António Reis, Palavras e Rimas, Lda, 2015. O autor apresenta-se: António Ramalho da Silva Reis nasceu em Avintes, em 1944 e com 21 anos embarcou para a Guiné onde exerceu funções de enfermagem no HM 241. Dá o seu testemunho dizendo que não andou a combater mas viveu a guerra intensamente todos os dias: “volta e meia ainda sonho que lá estou”

Passou 24 meses no Hospital Militar, passou a comissão dividido entre o Posto de Socorros, a Sala de Observações e a Cirurgia 1, “a enfermaria onde ficavam os casos mais graves, até melhorarem e serem transferidos para outras enfermarias ou evacuados para a metrópole”. Toda esta narrativa é dedicada aos netos e lembra-lhes que também tratou crianças no hospital.

Rememora a sua infância, lê-se e sente-se que é autêntico na sua simplicidade cortante: 

“Ir para a escola com 7 anos, chegar ao meio-dia, esperar a Ti Laura, que devia chegar com o tabuleiro à cabeça, com a panela da sopa e uma saca de nacos de pão. Levar meia-dúzia de reguadas por dia, meia-dúzia de canadas, fazer a terceira classe – pois poucos eram os que faziam a quarta – e ir trabalhar com 11, 12 anos”. E, mais adiante: “Confessarmo-nos todas as últimas sextas-feiras de cada mês, cumprir a penitência do confessor, que era rezar de joelhos, uma dúzia de padres-nossos e ave-marias em cada altar, tudo pelo pecado de ter ido roubar fruta à Quinta do Pedrosa. Se o Pedrosa não me via a roubar a fruta, Deus tinha-me visto. Foi criado no meio disto, com todos estes medos. Das bruxas, do lobisomem, das santíssimas trindades, da guarda, da PIDE, etc”.

Descreve a sua preparação militar a partir do momento em que assentou praça no RI 7. Em 13 de Março de 1966, embarca para a Guiné no Rita Maria. Entra rapidamente na rotina:

“A chegada dos mortos ou feridos era feita normalmente por helicópteros que aterravam na frente do hospital. Ainda o helicóptero não tinha aterrado e já o piquete estava junto à pista, de macas na mão. Eles chegavam de todas as formas, mortos, inanimados, esfacelados, queimados, estilhaçados, baleados, com sangue, com plasma, com talas, com garrotes”. O seu acordar era a maior parte das vezes violento, com o ruído dos bombardeiros a partir ou a chegada dos helicópteros a trazer mais feridos.

E havia os dias muito negros, como aquele 5 de Outubro de 1967, chegaram muito perto de 40, todos queimados e estilhaçados.

“Encheram tudo, desde as enfermarias ao corredor. Dentro e até fora do hospital era um cheiro intenso a carne humana queimada; nove ou dez já chegaram mortos. Os outros foram transformados em múmias. Sempre que pode, quando aparecem amigos e conterrâneos para a consulta, recorre a vários expedientes para os manter mais algum tempo em Bissau. Caso do Feiteira que chegou ao pé dele e disse: Tono, estou a ficar marreco e sem dentes”

Com a colaboração do cabo da estomatologia, pediu um boletim carimbado com assinatura falsa onde escrevia: observado e consultado, volta no dia tal. De oito em oito dias ia repetindo as carimbadelas. O Feteira esteve um bom tempo em consulta externa sem ter visto o médico estomatologista.

Havia os prisioneiros que chegavam feridos, muitas vezes eram interrogados à cabeceira da cama quando chegavam. Não havia enfermaria-prisão. E vem uma recordação: 

“Recordo um dia em que chegou uma quantidade de mortos e feridos. Um daqueles dias em que as macas foram repartidas pelo Posto de Socorro, Sala de Observações e ao longo do corredor. Juntamente com eles vinha um turra que tinha sido feito prisioneiro antes e que tinha ido servir de guia ao objetivo das nossas tropas, e essa operação foi um desastre porque ele nos atraiçoou. Todos diziam que viram logo que estavam perdidos, porque ele tinha andado às voltas. Pois este, nem por ter feito o que fez, deixou de ser um ferido igual aos demais. Foi o último, mas também foi tratado e não morreu”.

Não esconde que aproveitou todas as circunstâncias para ser prestável, e conta: 

“O Chico da Laura estava em Catió, apareceu-me um sábado depois do almoço e vinha muito sujo e muito revoltado, foi só mais um que não aguentou o clima da guerra. Li o relatório dele, onde constava que estava há quinze dias sem dormir. Falei com o Dr. Castelão, que era o psiquiatra. Lá ficou internado. A alimentação dele era o rancho geral, mas ele não comia e queixava-se também do estômago. Todo o tempo que lá esteve alimentou-se com sumos e com leite que eu lhe desenrascava. Veio evacuado para Lisboa e escreveu-me a dizer que era mais bem tratado na Guiné do que cá. Acabou por ser dado como incapaz”

Tem recordações indeléveis, caso do Dr. Fernando Garcia, que ele considera médico ímpar. Tem histórias brejeiras para contar como a única gorjeta que recebeu. Chegou ao hospital um chefe de tabanca com sonda gástrica, recebia muitas visitas:

Um dia vi-os juntar dinheiro entre si, e o nosso doente chamou-me, estendeu-me a mão com dinheiro. Eu não aceitei. Ele insistiu, foi então que o Sargento Marcos se aproximou e disse-me que aceitasse. Não me lembro quanto foi, mas foi uma boa quantia”. E mais outra história brejeira: “Enquanto uns passaram parte do tempo fazendo fôlego para não morrer, eu apenas dei um tiro e foi para o ar. Estava de serviço de escala quando recebi ordens para ir de helicóptero fazer a evacuação do enfermo do mato para o hospital. Quem desempenhava estas funções eram enfermeiras paraquedistas, mas por qualquer motivo não podiam ir. Era a primeira vez que pegava na minha G3. Havia que a experimentar e experimentei-a dando um tiro para o ar. Houve rebuliço”.

Ainda hoje sente tristeza pela ingratidão de um alferes a quem ele chama o alferes sem memória. Apareceu no hospital um alferes que vinha paralisado, procurou ajudá-lo, friccionava-o com álcool, tudo fazia para que ele não ganhasse escaras. Ficaram amigos. Quando regressou, foi visitá-lo, como estava prometido, ele lá estava numa cadeira de rodas, pareceu gostar de o ter visto. Os anos passaram, e um dia proporcionou-se voltar a passar onde vivia o alferes. Disseram-lhe que já lá não morava o melhor era procura-lo num determinado café depois de almoço. Procurou-o.

“Não me reconhecia e não se lembrava de nada. Fiquei estupefacto. Ainda lhe recordei que o tinha ido visitar quando cheguei, mas também não se lembrava. Soube mais tarde que este alferes era muito ativo e influente, muito provavelmente, diz ele, o alferes não se queria dar com gente que lhe podia pedir coisas”. Não se conforma com tal ingratidão.

É este o testemunho de António Reis, dois anos inteiros no HM 241.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 1 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16352: Notas de leitura (863): "África Misteriosa, Crónicas de viagem", de Julião Quintinha, Editora Portugal Ultramar, 1928 (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14759: (Ex)citações (283): Sexo em tempo de guerra... Um caso de violação, em que foi condenado um camarada do António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68, autor do livro "A jornada em África".


Capa do livro de António Reis, agora aumentado e reeditado: "A minha jornada em África", Vila Nova de Gaia, Palavras &  Rimas, 2015, 110 pp.  O autor foi 1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966-68 (*). E teve a gentileza de nos mandar 3 exemplares do seu livro. Vamos fazer a sua devida nota de leitura.


1. Excerto: "A justiça não tinha cor", por António Reis…

O colega P., mas que não se chamava Pedro, era um colega porreirinho e era um bom colega, mas um dia a cabeça não teve juízo, foi o corpo quem pagou. Foi acusado de violação. Nós, por ironia, dizíamos: “Não estava a mãe, foi a filha”.

A verdade é que esta mãe não teve receio perante a situação de levar a filha ao hospital e apresentar queixa. Esta mãe não teve receio de represálias.

O colega P. terminou a comissão e continuou em serviço a aguardar julgamento. Não me recordo qauntos foram os meses que teve de aguardar até que chegasse o julgamento. Julgado, a sentença foi: “Prisão com ele!”.

Também não me recordo o tempo que esteve preso, mas recordo-me de o ter ido visitar à cadeia do Quartel-General em Bissau.

No mato era olho por olho, dente por dente. Fora do cenário de guerra havia respeito e carinho pelas populações.” (…).

Excerto publicado com a devida vénia: In: REIS, António – A minha jornada em África: a todos os netos, a verdade que eu vi!. Vila Nova de Gaia: Palavras & Rimas Lda, 2015, p. 81

2. Comentário do editor: 

Não sabemos, infelizmente, quantos casos, semelhantes, por alegada violação de mulheres, foram parar à justiça militar. Este caso, passado com um camarada (presumivelmente maqueiro ou auxiliar de enfermeiro)  que fazia serviço no HM 241, em Bissau, ocorreu no tempo do governador e com-chefe gen Arnaldo Schulz,  antecessor de Spínola.  (O autor do livro, nascido em 1944. em  Avintes, Vila Nova de Gaia, esteve no TO da Guiné entre 13 de março de 1996 e 20 de março de 1968). E é uma das 27 histórias compõem o livro, nesta nova edição com a chancela de Palavras & Rimas Lda.

E vem a propósito citar uma carta que escrevi de Bissau, em 10/2/1970, onde refiro ter conhecido, nos Adidos, um capitão e um furriel, da mesma companhia, que estavam a contas com a justiça por alegados crimes de  "violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos" (**)... 

Na altura, em Bissau,  o caso era muito badalado, e o furriel, o único que foi condenado (, segundo depois vim a saber, ainda há pouco tempo) , é conhecido de alguns camaradas nossos da Tabanca da Linha.

A haver mais casos, na época,  de violação de mulheres guineenses, por parte de militares portugueses, seria interessante (e importante, para todos nós, ex-combatentes), que eles pudessem vir a ser relatados e publicados no nosso blogue, sem a identificação, obviamente, dos seus autores e das suas vítimas. (***)
_________________

Notas do editor:

(*) 5 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5596: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (20): Antonio Reis, ex-1º Cabo Enf, Bissau, HM 241, 1966-1968, e escritor (Rui Alexandrino Ferreira / Luís Graça)

(**)  Vd. poste de 14 de novembro de 2007 >  Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

(...) De facto, aqui desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, de violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos. (...)

(***) Último poste da série > 15 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14746: (Ex)citações (282): Sexo em tempo de guerra... Ha(via) um raio de um "santo inquisidor" dentro de cada um de nós... (Francisco Baptista, natural de Brunhoso, Mogadouro; ex-alf mil inf, CCAÇ 2616, Buba, 1970/71, e CART 2732 , Mansabá, 1971/72)

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Guiné 63/74 - P8530: Os nossos médicos (36): O Dr. Gomes da Costa, o Sargento Marcos, o 1º Cabo Silvino..., naquele dia negro de 5 de Outubro de 1967, no HM241 (António Reis, ex-1º Cabo Aux Enf, 1966/68)

1. Excerto de um texto ("Dias negros"), retirado do livo de memórias do nosso camarada António Reis, ex-1º Cabo Aux Enf (HM241, Bissau, 1966/68), já aqui recenseado, A minha jornada África (Vila Nova de Gaia: Ed. Ausência. 1999. 67 pp.) [Imagem da capa do livro, à esquerda]:

(...) Chegar o helicóptero ou os helicópteros com feridos ou mortos era o dia a dia. Houve dias negros, dias de muitos mortos e feridos. Eu pensava muitas vezes como era possível haver festas na minha terra quando tantos rapazes com vinte anos morriam ou ficavam mutilados em África.


Um desses dias a que eu chamei de negro foi o de 5 de Outubro de 1967. Desta vez chegaram mais de quarenta. Todos queimadinhos. Dentro e até fora do hospital era um cheiro intenso a carne humana queimada; nove ou dez já chegaram mortos. Os outros foram transformados em múmias.

Estiveram lá apenas cinco dias, talvez o tempo que levou a providenciarem um avião especial para os trazer para Lisboa. Naqueles cinco dia eu apenas ia à caserna para passar pelo sono, fiquei em baixo ao ponto do Dr. Gomes da Costa ter dito:
- Tu e o Silvino, esta noite ides dormir, pois eu não vos quero turberculosos.

Eu não era obrigado a tanto sacrifício, mas foi a forma de manter os soros nos horários. O Dr. Gomes da Costa prescrevia, eu tinha os soros e a medicação, o sargento Marcos e o cabo Silvino passaram os cinco dias a mudar os pensos àquelas múmias sofrentes. Múmias, porque só se lhes via os rostos inchados e queimados. Sofrentes porque ele tinham em SOS Dolantina, Pedina ou Demoral. Eu chegava a aplicar duas juntas no sistema (estavam todos com desbridamento) e passado algum tempo eles estavam novamente a gemer com dores.

E assim chegou o quinto dia e o avião que os trouxe para Lisboa. Não sei quantos mais morreram, e os que se que se safaram, em que estado ficaram. Sei que foram cinco dias que nunca esqueci. Ainda hoje conservo na retina aqueles rostos, ainda hoje tenho nos tímpanos os gemidos deles; havia um que nos agarrava e não mais largava, chamando:
- Sr. doutor, sr. doutor.

Era duro trabalhar naquela enfermaria. Ainda recordo o cabo Silvino ter-mde dito que tinha de arranjar forma de fugir daquela enfermaria senão morria ou ficava louco, mas mais duro era estar destacado no mato e aparecer lá no estado em que chegaram aqueles e outros desgraçados.

Desta vez, se bem me lembro, foi uma GMC que foi pelos ares com uma mina incendiária (…).

Fonte: António Reis - A minha jornada em África. Vila Nova de Gaia: Ed. Ausência. 1999. 24-25. (Excerto reproduzido  com a devida vénia...)
_______________


Nota do editor:

(*) Vd. 3 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5581: Os nossos médicos (13): Deus no céu e o Dr. Fernando Garcia... no HM 241 (António Reis / Luis Graça)

Último poste da série > 6 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8518: Os nossos médicos (35): Mais nomes de clínicos do HM241 do meu tempo (J. Pardete Ferreira)