sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16361: Notas de leitura (866): “A minha jornada em África”, por António Reis, Palavras e Rimas, Lda, 2015 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Agosto de 2015:

Queridos amigos,
Estou ciente de que já falei deste livro, há alguns anos. É um testemunho sincero de alguém que durante dois anos trabalhou no HM 241 e viu toda a sorte de dores. Procurou ajudar, e sente orgulho por certos expedientes a que recorreu. Assistiu a grandes desgraças, não esquece o Dr. Fernando Garcia, que ele classifica como médico ímpar. A todos os títulos, um testemunho sem rival. Só tenho pena nestas edições de autor não haja o propósito de incluir o trabalho de um revisor, de uma mão amiga que nos esclareça como é que se escreve Cacine, Guileje ou Corubal. Não nascemos ensinados, não custa nada pedirmos ajuda.

Um abraço do
Mário


O meu dia-a-dia era ver morrer ou chegar os feridos à grande plateia

Beja Santos

O livro intitula-se “A minha jornada em África”, por António Reis, Palavras e Rimas, Lda, 2015. O autor apresenta-se: António Ramalho da Silva Reis nasceu em Avintes, em 1944 e com 21 anos embarcou para a Guiné onde exerceu funções de enfermagem no HM 241. Dá o seu testemunho dizendo que não andou a combater mas viveu a guerra intensamente todos os dias: “volta e meia ainda sonho que lá estou”

Passou 24 meses no Hospital Militar, passou a comissão dividido entre o Posto de Socorros, a Sala de Observações e a Cirurgia 1, “a enfermaria onde ficavam os casos mais graves, até melhorarem e serem transferidos para outras enfermarias ou evacuados para a metrópole”. Toda esta narrativa é dedicada aos netos e lembra-lhes que também tratou crianças no hospital.

Rememora a sua infância, lê-se e sente-se que é autêntico na sua simplicidade cortante: 

“Ir para a escola com 7 anos, chegar ao meio-dia, esperar a Ti Laura, que devia chegar com o tabuleiro à cabeça, com a panela da sopa e uma saca de nacos de pão. Levar meia-dúzia de reguadas por dia, meia-dúzia de canadas, fazer a terceira classe – pois poucos eram os que faziam a quarta – e ir trabalhar com 11, 12 anos”. E, mais adiante: “Confessarmo-nos todas as últimas sextas-feiras de cada mês, cumprir a penitência do confessor, que era rezar de joelhos, uma dúzia de padres-nossos e ave-marias em cada altar, tudo pelo pecado de ter ido roubar fruta à Quinta do Pedrosa. Se o Pedrosa não me via a roubar a fruta, Deus tinha-me visto. Foi criado no meio disto, com todos estes medos. Das bruxas, do lobisomem, das santíssimas trindades, da guarda, da PIDE, etc”.

Descreve a sua preparação militar a partir do momento em que assentou praça no RI 7. Em 13 de Março de 1966, embarca para a Guiné no Rita Maria. Entra rapidamente na rotina:

“A chegada dos mortos ou feridos era feita normalmente por helicópteros que aterravam na frente do hospital. Ainda o helicóptero não tinha aterrado e já o piquete estava junto à pista, de macas na mão. Eles chegavam de todas as formas, mortos, inanimados, esfacelados, queimados, estilhaçados, baleados, com sangue, com plasma, com talas, com garrotes”. O seu acordar era a maior parte das vezes violento, com o ruído dos bombardeiros a partir ou a chegada dos helicópteros a trazer mais feridos.

E havia os dias muito negros, como aquele 5 de Outubro de 1967, chegaram muito perto de 40, todos queimados e estilhaçados.

“Encheram tudo, desde as enfermarias ao corredor. Dentro e até fora do hospital era um cheiro intenso a carne humana queimada; nove ou dez já chegaram mortos. Os outros foram transformados em múmias. Sempre que pode, quando aparecem amigos e conterrâneos para a consulta, recorre a vários expedientes para os manter mais algum tempo em Bissau. Caso do Feiteira que chegou ao pé dele e disse: Tono, estou a ficar marreco e sem dentes”

Com a colaboração do cabo da estomatologia, pediu um boletim carimbado com assinatura falsa onde escrevia: observado e consultado, volta no dia tal. De oito em oito dias ia repetindo as carimbadelas. O Feteira esteve um bom tempo em consulta externa sem ter visto o médico estomatologista.

Havia os prisioneiros que chegavam feridos, muitas vezes eram interrogados à cabeceira da cama quando chegavam. Não havia enfermaria-prisão. E vem uma recordação: 

“Recordo um dia em que chegou uma quantidade de mortos e feridos. Um daqueles dias em que as macas foram repartidas pelo Posto de Socorro, Sala de Observações e ao longo do corredor. Juntamente com eles vinha um turra que tinha sido feito prisioneiro antes e que tinha ido servir de guia ao objetivo das nossas tropas, e essa operação foi um desastre porque ele nos atraiçoou. Todos diziam que viram logo que estavam perdidos, porque ele tinha andado às voltas. Pois este, nem por ter feito o que fez, deixou de ser um ferido igual aos demais. Foi o último, mas também foi tratado e não morreu”.

Não esconde que aproveitou todas as circunstâncias para ser prestável, e conta: 

“O Chico da Laura estava em Catió, apareceu-me um sábado depois do almoço e vinha muito sujo e muito revoltado, foi só mais um que não aguentou o clima da guerra. Li o relatório dele, onde constava que estava há quinze dias sem dormir. Falei com o Dr. Castelão, que era o psiquiatra. Lá ficou internado. A alimentação dele era o rancho geral, mas ele não comia e queixava-se também do estômago. Todo o tempo que lá esteve alimentou-se com sumos e com leite que eu lhe desenrascava. Veio evacuado para Lisboa e escreveu-me a dizer que era mais bem tratado na Guiné do que cá. Acabou por ser dado como incapaz”

Tem recordações indeléveis, caso do Dr. Fernando Garcia, que ele considera médico ímpar. Tem histórias brejeiras para contar como a única gorjeta que recebeu. Chegou ao hospital um chefe de tabanca com sonda gástrica, recebia muitas visitas:

Um dia vi-os juntar dinheiro entre si, e o nosso doente chamou-me, estendeu-me a mão com dinheiro. Eu não aceitei. Ele insistiu, foi então que o Sargento Marcos se aproximou e disse-me que aceitasse. Não me lembro quanto foi, mas foi uma boa quantia”. E mais outra história brejeira: “Enquanto uns passaram parte do tempo fazendo fôlego para não morrer, eu apenas dei um tiro e foi para o ar. Estava de serviço de escala quando recebi ordens para ir de helicóptero fazer a evacuação do enfermo do mato para o hospital. Quem desempenhava estas funções eram enfermeiras paraquedistas, mas por qualquer motivo não podiam ir. Era a primeira vez que pegava na minha G3. Havia que a experimentar e experimentei-a dando um tiro para o ar. Houve rebuliço”.

Ainda hoje sente tristeza pela ingratidão de um alferes a quem ele chama o alferes sem memória. Apareceu no hospital um alferes que vinha paralisado, procurou ajudá-lo, friccionava-o com álcool, tudo fazia para que ele não ganhasse escaras. Ficaram amigos. Quando regressou, foi visitá-lo, como estava prometido, ele lá estava numa cadeira de rodas, pareceu gostar de o ter visto. Os anos passaram, e um dia proporcionou-se voltar a passar onde vivia o alferes. Disseram-lhe que já lá não morava o melhor era procura-lo num determinado café depois de almoço. Procurou-o.

“Não me reconhecia e não se lembrava de nada. Fiquei estupefacto. Ainda lhe recordei que o tinha ido visitar quando cheguei, mas também não se lembrava. Soube mais tarde que este alferes era muito ativo e influente, muito provavelmente, diz ele, o alferes não se queria dar com gente que lhe podia pedir coisas”. Não se conforma com tal ingratidão.

É este o testemunho de António Reis, dois anos inteiros no HM 241.
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Agosto de 2016 > Guiné 63/74 - P16352: Notas de leitura (863): "África Misteriosa, Crónicas de viagem", de Julião Quintinha, Editora Portugal Ultramar, 1928 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

António J. P. Costa disse...

Olá Camaradas

Não conheço o tal alferes que ficou em cadeira-de-rodas. De qualquer modo, não será de excluir que um homem a quem falta um bocado do corpo tenha dificuldade em se relacionar com alguém que lhe faz lembrar isso mesmo. É por isso que há camaradas nossos que, mesmo sem terem ficado tão traumatizados - pelo menos aparentemente - se recusam a ir aos convívios, mesmo depois de localizados e contactados. Não querem falar "daquilo". Não se sentem à vontade e, por isso procuram "varrer papa baixo do tapete" rejeitando a menos lembrança que lhes possa ser feita, mesmo com a melhor as intenções.
Neste caso só podemos especular...

Um Ab.
António J. P. Costa

Antº Rosinha disse...

Podemos presumir, sem grande hipótese de erro, que os enfermeiros serão das maiores vítimas desta ou de qualquer guerra.

Mas os nossos enfermeiros da Guerra do Ultramar, a par de outra actividade, os Motoristas de Jipes jipões e camiões, era tudo à "pressão", e os exames psicotécnicos e psicológicos deviam ser zero.

Para grande percentagem de enfermeiros, era pior a sua falta de preparação, do que a falta de preparação de um atirador ou de um artilheiro ou cavaleiro.

Talvez para os médicos não fosse tão violento como para os enfermeiros,
devido à preparação e vocação de vários anos.