segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Guiné 63/74 - P16352: Notas de leitura (864): "África Misteriosa, Crónicas de viagem", de Julião Quintinha, Editora Portugal Ultramar, 1928 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Julho de 2015:

Queridos amigos,
Li Mário Domingues às carradas na juventude. O pretexto era a história de Portugal, Mário Domingues constava do acervo da Biblioteca Municipal das Galveias, no Largo do Campo Pequeno, ali passava as tardes, sobretudo nas férias. E chegava a casa e o Mário Domingues era motivo de conversa, a propósito do Infante Dom Henrique ou do Marquês de Pombal, Domingues escrevia compulsivamente. Só muito mais tarde soube que ele escrevera mais de uma centena de livrinhos de aventuras extraordinárias com espiões e faroeste à mistura. Ora Domingues, fiquei a saber, era amigo de Julião Quintinha e este ofereceu-lhe África Misteriosa onde falou da Guiné, talvez o primeiro relato depois da pacificação.
Fica tudo explicado o que me levou hoje a recordá-los, e o pretexto foi a Guiné.

Um abraço do
Mário


Julião Quintinha, a Guiné e Mário Domingues

Beja Santos

Encontrei na Feira da Ladra "África Misteriosa, Crónicas de viagem", de Julião Quintinha, Editora Portugal Ultramar, 1928. Não é a primeira vez que falamos aqui de Julião Quintinha e até já se fez recensão desta “África Misteriosa” que lhe fez receber o Prémio da Literatura Colonial de 1928 da Agência Geral das Colónias. Para surpresa de muitos, a capa é de Bernardo Marques, um artista modernista então em fase ascendente e que marcou profundamente o design gráfico português até à década de 1960. Convém recapitular que a escrita de Quintinha era muito impressiva, lúbrica, o olhar penetrante do repórter é uma constante das suas crónicas. Quando ele se despede da Guiné descreve assim os Bijagós: “Chegam notícias de uma pequena rebelião nalgumas ilhas do arquipélago dos Bijagós. Uma questão de impostos prontamente debelada. Do arquipélago, além de Bolama, fazem parte as ilhas de Canhambaque, Bubaque, Agó Pequeno, Galinhas, Sogá, Eguba, Agó Grande, Orango, Uracene, Uno, Umbocomo, Caraxa, Caravela, Ponta, Maio, João Vieira e Formosa. E dizem-me que é interessante país, ainda bastante em, estado primitivo, onde há grande riqueza de palmares, coconote e algumas tentativas de industrialização europeia. Estes Bijagós veneram uma rainha, chamada Pampa, servida por um ministro Bufo; as mulheres usam saias de folhas de árvore e, quando virgens, cobrem a cabeça de barro; os homens têm o encanto dos chapéus velhos, e quase nus cobrem-se apenas com uma pequena tanga de coiro. Impossível visitar essas terras de conhecer a sua gente feliz. O navio vai largar. Pela última vez vejo Bolama à luz dos relâmpagos de uma grande trovoada. Dentro em poucas horas, a Guiné será no meu roteiro mais uma saudade…”.
Viajou pela Guiné entusiasmado mas nem sempre bem informado: inventou doze etnias, que a população andaria num milhão de habitantes… E desabafa perante tanta miséria e falta de tudo: “Só há pouco começamos a cumprir a nossa missão colonizadora. Nada fizemos nestes cinco séculos de ocupação”.
Fala da desordem, das doenças, da falta de dinheiro e da administração. É um relato a que não podemos ficar insensíveis, será mesmo primeiro depoimento depois da pacificação operada por Teixeira Pinto.

Mas a que propósito é que estamos a falar do que já foi falado sobre este livro de Julião Quintinha? É que este exemplar encontrado na Feira da Ladra tem uma dedicatória para Mário Domingues, um escritor que me fez muita companhia na juventude. Mário Domingues (1899-1977) foi uma figura apaixonante. Inventou aventuras extraordinárias com os heróis Anton Ogareff e Billy Keller, os autores seriam Henry Dalton e Philip Gray. Acontece que estes autores não existiam, o autor era Mário Domingues, um talentoso escritor são-tomense que escreveu às carradas de livros históricos: sobre Inês de Castro na vida de D. Pedro, a vida do Condestável, o Infante Dom Henrique, D. João II, D. Manuel I, o Padre António Vieira, Bocage, Fernão Mendes Pinto, Liberais e Absolutistas… É um nunca mais acabar de relatos históricos numa escrita verdadeiramente compulsiva. Foi também crítico de pintura, onde exaltou Almada Negreiros, Eduardo Viana, António Soares e Jorge Barradas. Fenómeno único para o seu tempo, decidiu viver só da escrita, e daí mais de uma centena de romances policiais e de aventuras extraordinárias.

E a ligação fica feita pelo mesmo Bernardo Marques que o desenhou.

A Guiné é capaz de abrir a boceta de Pandora a muitos mistérios e surpreender-nos como Julião Quintinha nos trouxe até Mário Domingues, oriundo também de África, e um espantoso plumitivo, injustamente esquecido.


Julião Quintinha num desenho de Bernardo Marques
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de julho de 2016 > Guiné 63/74 - P16345: Notas de leitura (862): Os Vampiros, BD de Filipe de Melo e Juan Cavia, Tinta-da-China, 2016 (Mário Beja Santos)

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