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segunda-feira, 8 de maio de 2023

Guiné 61/74 - P24297: Caderno de notas de um mais velho (Antº Rosinha) (55): aqueles 13 anos de guerra do Ultramar deram-nos tanta ou mais divulgação de Portugal e da língua do que os 500 anos anteriores


Casa Comum | Fundacão Mário Soares | Pasta: 11124.001.010 | Título: Mensagem | Assunto: Mensagem. Publicação não periódica da Casa dos Estudantes do Império. | Número: 1 |Ano: XVI | Data: Julho de 1964 | Directores: Alberto Rui Pereira | Fundo: Associação Casa dos Estudantes do Império | Tipo Documental: Imprensa | Língua do Documento: Português

Citação:
(1964), "Mensagem", nº 1, Ano XVI, Julho de 1964, Lisboa, Fundação Mário Soares / Associação Casa dos Estudantes do Império, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=11124.001.010 (2023-5-7)



Antº Rosinha, II Encontro Nacional
da Tabanca Grande,Pombal, 2007.
Foto: LG
1. Comentário ao poste P24290 (*), do Antº Rosinha, o "nosso mais velho", "colon" em Angola (desde os anos 50, e onde fez a tropa e a guerra, em 1961/62), "retornado" em 1975, emigrante no Brasil, cooperante na Guiné-Bissau (como topógrafo da TECNIL, em 1987/93), um dos últimos dos nossos "africanistas",  membro da Tabanca Grande desde 29/11/2006 (enfim, "um senhor senador"):

Tanto a língua portuguesa como Portugal foram talvez definitivamente desenquadrados aos olhos de muitas partes do mundo como sendo vizinhos da Espanha sim, mas não espanhol, isto devido muito aquela guerra do Ultramar.

A ignorância sobre Portugal e suas colónias era tal que no próprio Brasil no 25 de Abril ouvia-se perguntar: "Mas Portugal ainda tem colónias?"

Foi muito graças à sagacidade dos dirigentes dos Movimentos independentistas que se divulgou o que era Portugal e os portugueses, que eram algo que não tinha a haver com a Espanha.

Sabemos que havia os "estudantes do império", mas também "estudantes no império" e essa malta sabia melhor que nós "da metrópole" vender o "peixe".

Foram eles que conseguiram que imensas emissoras de rádio em todos os fusos horários, principalmente nos paises de leste e Ásia, tivessem emissões diárias e bi-diárias em português de Portugal e português do Brasil. Claro que era para falar mal da gente, mas falavam em português, já não era tão mau.

Ouvi a cooperantes estrangeiros na Guiné passados anos da independência, que só naquela altura de irem para lá, é que tinham ouvido a história que aquilo tinha sido uma colónia portuguesa. E explicavam-me isso em português.

Tive que aturar entre outros uns italianos na Guiné (engenheiros fiscais de obras) em que um me perguntava (em português)se era verdade que os portugueses estivemos ali 500 anos, e a fazer o quê?

E eu na brincadeira (nunca levei coisas muito a sério) respondi-lhe que não sabia mas que fosse perguntar ao Camões. Também não sabia quem era Camões.

Ou seja, para mim não tenho a mínima dúvida que nós não contávamos, e ainda pouco contamos, mas que aqueles 13 anos de guerra do Ultramar deram-nos tanta ou mais divulgação de Portugal e da língua, do que os 500 anos anteriores.

Isto muito com a ajuda dos "estudantes do império" e "estudantes no império".

Ainda andam por aqui muitos estudantes vindos do império ou filhos deles, que ficaram por cá e dão bem nas vistas, pois têm uma perspicácia especial para se imporem em todos os campos, até na política.

Mas a propósito de Camões, e da nossa língua, o único Prémio Camões que foi rejeitado foi pelo nosso e angolano escritor Luandino Vieira. Ele em principio explicou que rejeitou por razões pessoais. Para mim não é explicação suficiente, que também tenho direito a opinião.
Depois tentou dar outra explicação, também não me convenceu.

Viva o Lula que só fala na ONU em português, embora em nordestino meio caipira.

Cumprimentos. Antº Rosinha (**)
7 de maio de 2023 às 11:03
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segunda-feira, 10 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23689: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte II - Luís Graça: Percebe-se agora melhor por que é que a PIDE/DGS, os seus agentes e os seus informadores, tiveram um tratamento tipo "português suave", a seguir ao 25 de Abril de 1974


Carta de Angola (1968). Escala 1 / 2 milhões. Posição relativa de Luso, Luanda e Benguela. 

Fonte: Excerto de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo I; Angola; Livro 2; 1.ª Edição; Lisboa, 2006, pág. 8 (Com a devida vénia...)


1. Comentário de Luís Graça ao poste P23677 (*):

Vi na quinta feira (e revi depois, com mais atenção) este 1º episódio ("A informadora"). 

Não tinha expectativas muito altas, porquanto o jornalismo de investigação  em televisão é caro, muito caro. E depois gostava que a série documental, em 4 epísódios, fosse mais explícito sobre o sentido do título genérico "Despojos de guerra"...

Cortesia de Mosurlow / 

Mas, pensando bem, parece haver um fio condutor entre os vários episódios: 

(i) o trabalho (sujo e perigoso, em todas as guerras) do "colaboracionismo" (1º episódio);

(iii)  a "ingratidão" e a "injustiça" do colonizador que abandona os seus "harkis" (o termo, de origem árabe, tem um sentido depreciativo, na Argélia, e refere-se aos "auxiliares" norte-africanos que lutaram do lado dos franceses, durante a guerra da independência da Argélia, em 1954-62 (2º episódio); 

(iii) menos óbvia, é a inclusão do episódio do Miguel Pessoa e da sua futura companheira Giselda, nossos queridos amigos e camaradas, na sequência do abate, por um Strela, do primeiro Fiat G-91, em 25 de março de 1973, sob os céus de Guileje (3º episódio, "Corredor da Morte";

(iv)  e, no quarto episódio, esse mais óbvio, os "filhos do vento", os "restos de tuga": como em todas as guerras, esses, sim, são "despojos de guerra", já o Miguel e a Giselda não sei se não se vão ofender...

Quanto às fontes documentais, não me pareceu haver nada de novo (nomeadamemte filmes de arquivo inéditos, a não ser talvez imagens de tropas do MPLA e de um interrogatório, no mato, a prisioneiros portugueses) e com o reparo de não se identificar a sua origem, com exceção das imagens do Arquivo RTP...

Voltaram a usar-se, sem citar a fonte, imagens já estafadíssimas do documentário "Guerre en Guinée" [, "Guerra na Guiné", ORTF, Paris, 1969] , há muito disponível no portal do INA - Institut national de l'audiovisuel (13' 58'') e... no nosso blogue

O vídeo da ORTF, feito no decuros da Op Ostra Amarga,  tem sido utilizado "ad nauseram" pelas nossas televisões quando se fala da guerra colonial, à falta de "material nacional" (que era isso que competia fazer  à RTP de então e aos fotocines do exército).

A única novidade é o uso da técnica de "colorização" de filmes e imagens antigas, a preto e branco. É uma técnica há muito disponível no mercado mas pouco frequente em documentários da nossa televisão... Imagino que não seja uma técnica barata... Gostei de ver imagens de Luanda de 1961, cidade que só conheci a partir de 2003...

Quanto à Sebastiana Valadas..., bom, temos de reconhecer que é um achado. Como e onde é que a terão desencantado? Através, seguramente, dos arquivos da PIDE/DGS... Parece que vive no Alentejo, pelo que li no Expresso, de 18/2/2022. Teria ido  com os pais, com oito anos, para Angola, fugindo presumivelmente da miséria onde nasceu... E, como não terá conhecido outro paraíso, sentia-se angolana (mais do que portuguesa) de alma e coração...

A entrevista, semi-diretiva, feita pela Sofia Pinto Coelho, acho que é de "antologia"... A jornalista consegue obter informações que são dignas de nota: 

(i) Angola em 1961 não tinha "nada a ver com Portugal" (sic); 

(ii) Luanda "rivalizava" com Lisboa, no desenvolvimento, no  progresso, no chique, no "glamour"; 

(iii) "Gostava de viver a guerra" (sic), apesar de ter vivido com o credo na boca e ter estado entre fogos cruzados dos militares dos vários movimentos nacionalistas em confronto em Luanda; 

(iv) Admirava a Kalash, russa, que os guerrilherios do MPLA empunhavam  quando vinham à sua loja para se abastecerem de tabaco, sal, peixe seco, vinho  e outros produtos ("umas vezes pagavam, outras não"); 

(v) "eu e o meu marido demos cabo da 4ª Região Militar do MPLA" (uma fanfarronada...): 

(vi) e, afinal, fomos utilizados como "carne para canhão", lá no cu de Judas,  e aqui estou eu, expulsa de Angola, a morrer na miséria, sem direito sequer a uma pensão pelos meus serviços (e do meu marido) ao País... enquanto a PIDE/DGS estava, em 1972,  no "bem-bom" do Luso.

O casal (a Sebastiana e o marido, Avelino Durães, nome de guerra "Ferro",  apresentados como "agentes duplos") caiu na asneira de ficar em Angola, depois da independência, apesar dos avisos da própria polícia política de que ambos poderiam  correr sérios riscos de morte pelos resultados da Op Fina Flor, em 1972, em que foi preso entre outros o comandante João Arnaldo Saraiva de Carvalho, futuro general embaixador e chefe da polícia nacional de Angola... (Com ele terão sido captutados 6 elementos do MPLA e 3 terão sido mortos, não sabendo nós se esta Op Fina Flor foi exclusivamente pela PIDE/DGS ou pelo Exército.)

A expressão "agente dupla" é talvez abusiva: estes "cantineiros do mato", lá no "cu de Judas" (título de um conhecido romance do António Lobo Antunes), limitaram-se a "jogar com o pau de dois bicos", como aconteceu na Guiné com os comerciantes, poucos, que restaram no interior depois do início da guerra, em 1963.

A entrevista com o João Arnaldo Saraiva de Carvalho (nome de guerra, "Tetembwa", mestiço, que eu presumo ser  filho de pai português e de mãe angolana, que vem do interior para estudar em Luanda, tendo feito o 7º ano no Liceu Salvador Correia, onde teve como colega de turma o futuro presidente da república José Eduardo dos Santos, e que depois vai para Coimbra frequentar o curso de direito... e que entretanto é mobilizado para Guiné e decide desertar, fugindo com a esposa, também colega de curso, e seguindo o caminho que trilharam muitos outros africanos que estudavam nas universidades portuguesas (Lisboa, Coimbra e Porto): neste caso, a França, a Zâmbia, a URSS...)... Essa entrevista, dizíamos, não é feita pela equipa da SIC, portanto não é material de "primeira mão", remonta a 2015, é de fonte angolana, está disponível na Net:

https://www.tchiweka.org/pessoas/joao-saraiva-de-carvalho

Ficámos a saber que a Associação TCHIWEKA de Documentação (ATD) "é uma pessoa colectiva de carácter voluntário e sem fins lucrativos, com a missão fundamental de promover e divulgar actividades culturais, científicas e educativas que contribuam para preservar a memória e aprofundar o conhecimento da luta do Povo Angolano pela sua independência e soberania nacional"...

No sítio da ATD publica-se também a "Ordem de serviço do MPLA nº 28/71 (Lusaka), de Daniel Chipenda",  com a nomeação do Comando da 4ª Região: Mwandondji (comissário político com funções de comandante), Augusto Alfredo «Orlog» (operações), João Saraiva de Carvalho «Tetembwa» (adjunto do comando). 

Nunca tínhamos ouvido falar desta IV Região Militar do MPLA. Recorde-se que o Daniel Chipenda (1931-1996), antigo jogador de futebol  da Académica de Coimbra e do Benfica, saído clandestinamente de Portugal em 31 de agosto de 1962, foi o responsável pela abertura da Frente Ldo este do MPLA.  A primeira acção a primeira acção no Leste terá ocorrido em 16 de maio de 1966, na região de Lumbala,  e nela terão morrido sete soldados portugueses. Mas depois perdeu influência, em 1972, devida à contra-ofensiva das NT. (Vd. CECA, 2006, op cit, p. 152).

... Em 1972, o "Tetembwa" é preso por denúncia dos agentes duplos, a Sebastiana e o marido... Como recompensa, a PIDE, face ao grande "ronco" (como dizíamos na Guiné), aumenta a avença mensal do "Ferro"  para o dobro, oito contos  (antes recebia quatro contos pelos seus serviços, dele e da esposa), além de uma recompensa choruda de 30 contos (o equivalente, a preços de hoje, a 7.253,42 €)... (Tudo isto documentado em papel timbrado da PIDE.)

Depois da independência, o casal que decidira, levianamente (?),  continuar em Angola, é preso, certamente por denúncia ou buscas da polícia, o "Ferro" é torturado pelo próprio "Tetembwa" mas nunca terá confessado quem denunciou a presença deste comandante e do seu grupo na loja, em Cassai-Gare (estação do caminho de ferro da linha de Benguela, província de Moxico, cuja capital era o Luso, hoje Luena), no leste, na região dos diamantes... Ao fim de ano e meio de prisão, foi solto, sem julgamento, e expulso para Portugal onde entretanto viria a morrer...

Acho que o episódio vale sobretudo pelas "confidências" (cruas, despudoradas, mas sinceras e serenas, autênticas, com alguma basófia aqui ou acolá, quiçá demasiado ingénuas..., confundindo-se às vezes ingenuidade com desassombro) desta mulher, que é entrevistada na cozinha da sua casa (no Alentejo?) enquanto ela e outra matam e depenam um enorme galo (que seguramente não era o da UNITA)...

Claro que ela sabia que, na vida e na guerra, é difícil (e sobretudo perigoso) servir dois senhores, manter dois amores, defraldar duas bandeiras... (Sem querer, ela denuncia alguma atração por aqueles rapazes de vinte anos a que ela chama "turras", que até eram bem parecidos e educados...).

Malhas que o império teceu... e cujos "despojos" ainda chegam às "praias lusitanas" da nossa memória...

Por que é que eu gostei da entrevista? Porque a verdadeira "vedeta", a protagonista, é a Sebastiana, a entrevistada, não a entrevistadora... É importante que estas pequenas grandes histórias fiquem registadas, para a História, para a nossa memória e para memória futura, sem retoques, sem comentários, sem quaisquer preocupações com o "politicamente correto"... Ficamos também a saber o importante papel que a PIDE/DGS desempenhou na guerra, com a sua tentacular (e eficaz) rede de "informadores"...

E não brincavam em serviço: quando a Sebastiana e o marido são descobertos e denunciados pelos "negócios" com o MPLA (afinal, um bom "cliente", naquele cu de Judas...), o casal, que tinha filhos pequenos, terá ficado sem alternativa: ou colaboravam com a PIDE (correndo o risco de ficar sem  ou o então o  Durães "apanhava 20 anos no Tarrafal" (sic)... 

Percebe-se melhor então por que é que o rapaz era um grande consumidor de ansiolíticos... enquanto a mulher, com o seu ar "felino" (a avaliar pela foto de quando era nova) adorava a guerra e o cheiro da pólvora e devia ter fantasias com as  fardas e as armas ("lindas") dos "turras"...
 
...Percebe-se também agora melhor por que é que a PIDE/DGS, os seus agentes e os seus informadores, tiveram um tratamento tipo "português suave" a seguir ao golpe militar do 25 de Abril... Amor com amor se paga... E, como dizia o outro, não há almoços grátis... (**)
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Notas do editor:

(*) Vd,. poste de 6 de outubro de  2022 > Guiné 61/74 - P23677: Agenda cultural (818): "Despojos de guerra", série em quatro episódios, de 40' cada, sobre a guerra colonial: estreia hoje na SIC, no Jornal da Noite

(**) Último poste da série > 9 deoutubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23687: "Despojos de Guerra" (Série documental de 4 episódios, SIC, 2022): Comentários - Parte I - António Rosinha e Valdemar Queiroz: as diferenças entre a guerra de Angola e o "inferno da Guiné"

sábado, 14 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17861: Notas de leitura (1004): “Casa dos Estudantes do Império, Subsídios para a História do seu período mais decisivo (1953 a 1961)”, por Hélder Martins; Editorial Caminho, 2017 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Outubro de 2017:

Queridos amigos,

Hélder Martins, fundador da FRELIMO, foi um estudante ultramarino que chegou a Lisboa em 1953 e a partir dessa data e até 1961 teve um papel ativíssimo na Casa dos Estudantes do Império (CEI).

Em seu entendimento, muito do que está escrito sobre a CEI mostra imprecisões e muito pouco rigor, em certos casos. Levou por diante, com vários apoios, ao levantamento da legislação, ouviu inúmeros participantes, recorreu a ajudas que passaram pela pesquisa dos boletins do Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa, e algo mais. O resultado é um testemunho resoluto, amável e desmistificador, porque numa associação de jovens há de tudo e tratar a CEI como uma casa de heróis é desumanizar-nos, protesta ele.

Obra indispensável para quem pretenda saber como é que a CEI foi uma grande escola do nacionalismo africano e serviu para consolidar a consciência anticolonial em muitos estudantes ultramarinos.

Um abraço do
Mário


A Casa dos Estudantes do Império

Beja Santos

De forma irregular mas persistente, estudantes ultramarinos, investigadores e jornalistas, recordam a importância e o significado que teve a Casa dos Estudantes do Império (CEI) na formação anticolonial e na forja das lutas de libertação, pois por aquele edifício passaram figuras como Amílcar Cabral, Vasco Cabral, Agostinho Neto, Lúcio Lara, Hélder Martins, Tomás Medeiros e Alda Espírito Santo.

Acaba de aparecer o testemunho de uma das figuras mais relevantes desse período Hélder Martins com “Casa dos Estudantes do Império, Subsídios para a História do seu período mais decisivo (1953 a 1961)”, Editorial Caminho, 2017.

Hélder Martins nasceu em Maputo, formou-se em Medicina em Lisboa em 1961. Foi um ativista estudantil na Comissão Pró-Associação da Faculdade de Medicina e na Casa dos Estudantes do Império. Incorporado no serviço militar obrigatório, na Marinha, desertou em Novembro de 1961, tendo ido para Tanganica, onde foi aceite na UDENAMO. Foi fundador da FRELIMO e participou na luta de libertação do seu país. No imediato pós-independência foi Ministro da Saúde durante cinco anos. Foi também funcionário sénior da OMS, docente em saúde pública em vários países.

Segundo o título, o seu testemunho centra-se no período que ele viveu intensamente e teve uma participação ativa. Observa que, salvo honrosas exceções, a grande maioria dos testemunhos e trabalhos de investigação histórica e jornalística que existem sobre a CEI, têm pouca informação factual e nem sempre as referências às fontes são rigorosas, têm sido detetadas grandes falhas. Escreve que o seu testemunho procurou incorporar o máximo de informação sobre esse período da vida da CEI, cingindo-se a factos e pondo de lado a fantasia e alguma carga mitológica sobre a convivência havida ao longo dos anos pelos estudantes das colónias.

Em primeiro lugar, refere que há claramente duas fases da vida estudantil colonial, a primeira que se estende dos anos 1940 até aos anos 1950 em que a maioria dos estudantes eram brancos, de um modo geral ligados ao Estado Novo, portanto alinhados com a ideologia política dominante. Basta ver as fotografias desde 1943 em diante. Dizia-se mesmo num boletim da Mocidade Portuguesa que a CEI era filha da Mocidade Portuguesa.

Ainda nos anos de 1940, e depois com maior preponderância nos anos 1950, começam a chegar estudantes negros e mulatos de Angola, S. Tomé, Cabo Verde e Guiné, tudo tinha a ver com o desenvolvimento económico angolano, com bolsas de estudo, etc. Naquele pós-guerra foi-se criando a consciência nacionalista, a PIDE desde 1946 que estava atenta às atividades políticas dos sócios da CEI, havia informações sobre Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Lúcio Lara, Alda Lara, Vasco Cabral, Alda e Julieta Espírito Santo, Francisco José Tenreiro, Hugo Azancot de Menezes, Marcelino dos Santos, entre outros.

Eduardo Mondlane teve uma curta passagem pela CEI, de Junho de 1950 a Junho de 1951, estava à espera de uma bolsa de estudo para os Estados Unidos, o que aliás veio a acontecer. Nos anos 1950, há prisões como a de Vasco Cabral, Lúcio Lara, Mário Pinto de Andrade e Marcelino dos Santos conseguem escapar à prisão, irão abandonar Portugal para o exílio. Neste período entra em funcionamento um Centro de Estudos Africanos, ali se reuniam num prédio da Rua Actor Vale Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Francisco José Tenreiro e Amílcar Cabral.

Quem chegava, encontrava o bálsamo do acolhimento e os que gostavam de fazer desporto eram incentivados a continuar. Mário Wilson e Juca foram duas importantes figuras de acolhimento. Formou-se a equipa de futebol de CEI onde jogaram, entre outros, Fernando Vaz, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral.

Uma das maiores lutas entre os estudantes e as entidades governamentais era a permanente exigência para que não houvesse comissões administrativas. Os estudantes ultramarinos juntaram-se aos metropolitanos na luta contra o Decreto-Lei n.º 40.900, de 12 de Dezembro de 1956, destinado a regulamentar o associativismo juvenil, o governo recuou, a CEI passou a ter uma comissão de estudantes, elegeu-se uma direção e a CEI foi reconhecida para a proteção e defesa dos interesses ultramarinos e para o estreitamento dos laços de solidariedade e camaradagem entre os estudantes ultramarinos e metropolitanos, Em ondas, chegam estudantes às revoadas, convivem na cantina da CEI, fazem reuniões, dispõem de uma farta biblioteca, publicam livros.

Hélder Martins é minucioso na composição dos corpos diretivos, no trabalho desenvolvido, na vida cultural que abarcava conferência sobre música e arte, espetáculos de teatro, saía regularmente um boletim, a vida participativa era enorme. A qualidade dos conferencistas era de primeira água: João de Freitas Branco, José-Augusto França, Jorge de Sena, Keil do Amaral, José Palla Carmo, Alexandre O’Neill.

Procura desfazer mitos: nunca se registara qualquer luta pelo poder dentro da CEI, soubera-se operar um espírito de solidariedade inquebrantável; e que era um puro mito dizer-se que a CEI era sinónimo de uma geração de heróis. Descreve taxativamente: “Houve de tudo: bons e maus estudantes, uns que tiraram os seus canudos no tempo mínimo e com boas notas, outros que conseguiram atingir o almejado canudo com notas menos boas e num tempo mais dilatado e ainda os que nunca tiraram curso nenhum. Não fomos diferentes dos outros. Na CEI houve sócios dedicados mas houve também sócios que participavam pouco. Há provas que havia muitos estudantes que tinham fraca participação. Isto faz parte da natureza humana”.

O que o autor mais exalta foi a CEI como centro de convívio salutar.

Em 1961, tudo vai mudar substancialmente, fogem às dezenas os estudantes e com o início da luta armada em Angola apertou-se mais a vigilância à CEI. Outro ponto que o autor destaca é a CEI como escola de nacionalismo africano e de consciência anticolonial bem como a influência que exerceram nas lutas de libertação nacional da diversas ex-colónias.

É uma obra que toca pela serenidade, pelo extremo cuidado na citação dos factos e na busca da legislação certa. Não sendo um mito da geração de heróis, o facto é que pela CEI passaram figuras determinantes de nacionalistas africanos e aquele espaço foi indispensável para consolidar a consciência anticolonial entre muitos daqueles estudantes ultramarinos.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17858: Notas de leitura (1003): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (4) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17743: Notas de leitura (993): “A verdadeira morte de Amílcar Cabral”, por Tomás Medeiros, althum.com, segunda edição revista, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

A Verdadeira Morte de Amílcar Cabral, por Tomás Medeiros


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Compreende-se como a análise de Tomás Medeiros é muitíssimo mal aceite por todos aqueles que se mantêm convictos sobre as bondades da unidade Guiné-Cabo Verde. Medeiros conviveu intimamente com Amílcar Cabral na Casa dos Estudantes do Império, ficaram amigos.
Neste ensaio faz o escalpelo da formação do jovem Cabral em Cabo Verde, revela o estado de espírito dos estudantes africanos em Lisboa naquele pós-guerra em que já não se podia dissimular a ascensão anticolonial. E todo este heroísmo que representou pôr o PAIGC de pé, dar-lhe consistência sob a fórmula da unidade, ruiu quando se anteviu a independência da Guiné, acenderam-se todos os sinais de alarme, Cabral, na sua doce ilusão, fingia não entender.
Não há neste trabalho uma inovação absoluta mas vale a pena atender ao que escreve Tomás Medeiros sobre os desentendimentos de fundo.

Um abraço do
Mário


A verdadeira morte de Amílcar Cabral (2)

Beja Santos

“A verdadeira morte de Amílcar Cabral”, por Tomás Medeiros, 2.ª edição revista, althum.com, 2014, é o testemunho de um companheiro são-tomense que conviveu com Amílcar Cabral e outros líderes de movimentos de libertação. É um estudo que devemos ter em conta no quadro mitigado dos documentos e investigações centrados no pensamento e obra de Cabral. A razão é simples. Medeiros insere a educação de Cabral no mundo cabo-verdiano, a sua preparação universitária no tempo certo do pós-guerra em que o anticolonialismo deixou de ser balbuciado a medo, tornara-se num fenómeno ascendente com as independências asiáticas e como arma de arremesso da Guerra Fria. Temos igualmente identificado o partido original concebido por Cabral e a resposta da mobilização, o seu olhar visionário para a natureza da luta armada num espaço que era propício a atacar e desaparecer no meio de pântanos e florestas cerradas. Igualmente Medeiros nos dá uma síntese rigorosa de resposta encontrada por Cabral através da forma da unidade Guiné-Cabo Verde. Mas era suficiente esta formulação de ter quadros cabo-verdianos associados aos aguerridos soldados guineenses, era indispensável uma resposta coesa na organização partidária, como Cabral deixou escrito:  
“A direção político-militar da luta é única: é a direção política da luta. Nós na nossa luta evitamos criar o que quer que seja de militar. Somos políticos, e o nosso Partido, que é uma organização política, dirige a luta no plano civil, político-administrativo, técnico e portanto militar. Os nossos combatentes definem-se como militantes armados. É o Bureau Político do Partido que dirige a luta armada e a vida, tanto nas regiões libertadas como nas que o não são, e onde temos os nossos militantes. Ao nível de cada frente existe um comando de frente. Ao nível de cada setor existe um comando de setor”.
Os meios urbanos tornam-se nesta luta armada lugares secundários. O laboratório do “homem novo” reside no interior das matas, onde há escolas, hospitais improvisados, espaços de abastecimento que se irão tornar em Armazéns do Povo. A lógica da liderança é a de que se é militar por acidente, é-se militar por razões da luta armada e da libertação. É um processo de gradual capilaridade, fazer chegar o partido a todos os níveis, fazer funcionar a justiça. A capacidade militar demonstrada ao longo dos anos, o natural prestígio de Cabral que é recebido e apreciado como um dos principais líderes revolucionários mundiais têm que ser tomados em conta na vida interna do PAIGC e em todo o processo montado para a proclamação unilateral da independência.

E chegamos assim à morte de Cabral e à narrativa mais polémica de Medeiros. A sua memória viaja até aquela encruzilhada de gente universitária das colónias em Lisboa. Cabral preparou-se a fundo para denunciar o que era o colonialismo português na Guiné: a imposição da cultura do amendoim; como podiam ser valorizadas as matérias-primas agrícolas e a indústria florestal. Cabral conhecia as divisões étnicas e a dinamite em que se podiam transformar, opondo-se umas às outras. Mas o suporte conceptual de Cabral tinha fragilidades de monta.
Primeiro, Cabo Verde estava mais próximo de Portugal do que da Guiné. Como um dia disse Germano de Almeida ao Jornal de Letras, em 2001: “O simples facto de falarmos a mesma língua, permite que saiamos de Cabo Verde, cheguemos a Portugal e nos sintamos em casa. Dificilmente penso que vou para o estrangeiro. Estrangeiro é o resto. O povo que vem para cá viver vem à procura de trabalho por uma questão de sobrevivência. Na pequena burguesia dos serviços, sobretudo, muitos vieram porque não concordavam com a independência nem com as ideias políticas do PAIGC. Mesmo agora, vem muita gente que se chateia, quando se sente perseguida”.
Segundo, a participação cabo-verdiana na luta de libertação na Guiné-Bissau teve muitas brumas, esteve longe de ser pacífica. Os jovens trotskistas entraram muito cedo em rota de colisão com o PAIGC guineense. A luta revolucionária era aliciante mas os cabo-verdianos não tiveram dificuldade em reconhecer desde cedo que culturalmente estavam nos antípodas: separados pelos hábitos alimentares, pelas práticas da mesa, pela formação, pela religião, pela natureza das paisagens, e muito mais. E quem se envolvia na luta armada apercebia-se de outra realidade: o rancor surdo guardado ao longo dos séculos, os guineenses sabiam que os cabo-verdianos ali aportavam como altos funcionários, administradores, técnicos sem concorrência, identificados com o trabalho colonial, com a edificação de empresas e exploração da agricultura, sempre a chefiar guineenses, numa atitude mental de indiscutível superioridade.

Daí as conclusões polémicas de Medeiros: a morte de Cabral já estava anunciada. Ele tinha que morrer porque tudo aquilo que o movia não interessava, aos quadros e aos combatentes. É redundante continuar à procura dos porquês daqueles indivíduos que deram os tiros. A pequena burguesia cabo-verdiana não estava interessada em suicidar-se, como Cabral preconizava. A guerra evoluía e havia indícios e que era possível vencer. Aí, quem dirigia efetivamente a luta eram os guineenses, eram os guineenses que davam corpo o corpo ao manifesto, sentiam-se os verdadeiros donos da luta. E Medeiros escreve: “Quem morria era os guineenses negros, os cabo-verdianos não morriam. Os comandantes da Guiné, sobretudo Nino Vieira e Osvaldo, assumiram uma ascendência em relação a Amílcar porque ele estava na frente”. Havia igualmente o problemas etnias, Cabral bem procurou encontrar traços de união entre as principais, não foi completamente bem-sucedido. E, mais adiante, escreve: “Ele morreu e não deixou um único seguidor, porque entre Amílcar e os colaboradores havia uma diferença cultural muito grande. Entre ele e o irmão e Aristides Pereira não havia semelhanças possíveis. Os que estavam mais próximos de Amílcar eram bastante conotados com o Partido Comunista Português, no caso de Vasco Cabral”. Os países afastaram-se, o sonho de Amílcar morreu. E na Guiné deixou de haver ideais mas ambições dos chefes militares. Um fenómeno do que ninguém fala é que os quadros e os intelectuais guineenses eram cabo-verdianos. Os quadros superiores da Guiné também eram. A Guiné não tinha nada. Na Guiné o território e as várias etnias não permitem a criação de uma unidade. Medeiros fala de Cabral como um bem-intencionado utópico que recorria a juristas e economistas jugoslavos para programar a constituição e o modelo económico de desenvolvimento da Guiné. Os quadros foram partindo, os quadros cabo-verdianos regressaram em peso à sua terra. Tudo acabou.

E assim termina o seu ensaio: “A verdadeira morte de Amílcar Cabral está no que ele foi e quis que o seu povo fosse e não se cumpriu, não está na sua morte física e circunstancial. E o silêncio que sobre ele e as suas teorias se abateu a seguir ao seu desaparecimento é a sua segunda morte”.
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17729: Notas de leitura (993): “A verdadeira morte de Amílcar Cabral”, por Tomás Medeiros, althum.com, segunda edição revista, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17729: Notas de leitura (993): “A verdadeira morte de Amílcar Cabral”, por Tomás Medeiros, althum.com, segunda edição revista, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

A Verdadeira Morte de Amílcar Cabral, por Tomás Medeiros


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Março de 2016:

Queridos amigos,
Aquando da primeira edição, aqui se fez referência a este trabalho. Esta segunda edição comporta alterações, quem se interessa pela temática tem a ganhar com esta nova leitura.
Temos poucos biógrafos de Amílcar Cabral em língua portuguesa: Julião Soares Sousa (o mais importante), António Tomás, Daniel Santos e Tomás Medeiros, a despeito de numerosíssimas referências em ensaios, estudos e até trabalhos sobre a história do movimento de libertação na Guiné.
As reflexões de Tomás Medeiros têm uma singularidade: concentram-se num jovem de cultura cabo-verdiana que triunfou nos estudos em Lisboa no exato momento em que a problemática da descolonização preocupava estas jovens elites africanas. E há o pensamento de um líder inflado por um sonho utópico que acabou por matar o seu criador: a unidade Guiné-Cabo Verde, uma bela consigna para juntarem a melhor mão-de-obra revolucionária e o mais destrutivo explosivo para juntar no mesmo país gente que não esqueceu o passado, tantas vezes doloroso.

Um abraço do
Mário


A verdadeira morte de Amílcar Cabral (1)

Beja Santos

Tomás Medeiros é nome incontornável no movimento anticolonial português. Conviveu de perto com os futuros líderes dos movimentos de libertação e tem sobre os mesmos uma ideia sobre o seu valor e a importância do seu desempenho. Acompanhou e fez um estudo aturado do pensamento e obra de Amílcar Cabral. O seu trabalho intitula-se “A verdadeira morte de Amílcar Cabral”, Tomás Medeiros, althum.com, segunda edição revista, 2014. Já aqui se fez referência à primeira edição, acabo de comprovar que esta revisão dada a público inclui elementos importantes para a ponderação da vida e obra do mais consagrado dos líderes revolucionários africanos das colónias portuguesas.

Tomás Medeiros começa por enquadrar o tempo histórico após a II Guerra Mundial e traça a emergência da descolonização, da negritude, revela com rigor esse novo estado de espírito das elites africanas a estudar nas universidades europeias. Medeiros vinha de S. Tomé e aproximou-se desses estudantes do Império que ganhavam notoriedade, caso de Amílcar Cabral, Mário de Andrade, Francisco Tenreiro. Segundo nos diz na introdução, pretendia ir muito mais longe nas suas investigações mas foi apanhado por doença prolongada e diz que o que hoje se publica constitui a síntese de um projeto que precisa de ser desenvolvido a longo prazo.

Recorda que a juventude de Amílcar Cabral ficou indelevelmente associada a Cabo Verde, um ambiente africano arquipelágico particular, com fomes cíclicas, dentro de uma intelectualidade crioula que se exprime sem equívocos na sua iniciação poética, atravessada pelo modernismo e um naturalismo de cariz africano.

Segue-se a descrição de Lisboa em 1945, aonde chega o estudante de agronomia que vem com o firme propósito de ser um bom poeta e de aprender o que for necessário para lutar contra as crises de Cabo Verde, não terá sido por acaso que foi atraído desde cedo pela erosão dos solos. Convive, mas com distâncias, com o MUD Juvenil, lê afincadamente, e discute com o mesmo afinco, o que lhe cai às mãos sobre colonialismo, africanidade e sopros da descolonização. Vai emadurecendo e quando regressa a Cabo Verde em 1949 mostra um grande entusiasmo em palestras radiofónicas sobre soluções para o problema das secas. Enquanto tira a licenciatura no Instituto Superior de Agronomia frequenta os diferentes espaços por onde transitam os estudantes africanos das diferentes colónias. Medeiros refere a Casa dos Estudantes do Império, o Centro de Estudos Africanos, na residência da família Espírito Santo, no primeiro andar do n.º 37 da Rua Actor Vale, ali para os lados da Fonte Luminosa, por ali circulam Alda do Espírito Santo, Amílcar Cabral, Mário de Andrade, Agostinho Neto, Francisco Tenreiro.

Concluído o curso, parte em 1952 com a mulher para a Guiné, leva na bagagem uma série de trabalhos de agronomia, de valor científico: o problema da erosão dos solos; contribuição para o estudo da região de Cuba (Alentejo); o conceito de erosão – projeto para o estudo dos solos em Cabo Verde. Revela-se um funcionário público metódico e inovador, publica na imprensa local as sínteses das atividades que desenvolve sobretudo em Pessubé, uma estância experimental agrícola onde surgem algumas maravilhas. O seu nome aparece ligado a um projeto da Associação Desportiva e Recreativa dos Africanos, não aceite pelas autoridades. Terá tido encontros com os dirigentes do MING – Movimento de Independência da Guiné, que tinha à frente os nomes de Rafael Barbosa, Aristides Pereira, Fernandes Fortes, Abílio Duarte, e alguns mais. O MING, no dizer de Aristides Pereira era um movimento que não andava. Entretanto, vão crescendo nos países limítrofes organizações políticas que vão sendo conhecidas e discutidas na Guiné Portuguesa.

Em 1955, a sofrer de paludismo, regressa a Lisboa. Tomás Medeiros assegura que Amílcar Cabral esteve na Guiné em 1956 e 1958, o que Julião Soares Sousa contesta, Cabral não terá assistido à fundação do PAI e era impossível em 1958 ele ter passado pela Guiné. Cabral esteve a trabalhar em Angola na cartografia de solos, o seu trabalho foi muitíssimo apreciado, é um trabalho que ele abandona em 1959. Em Angola, escreve propaganda anticolonial e colabora na redação do manifesto que leva à fundação do MPLA. É o tempo em que toma decisões de fundo, parte para a clandestinidade. As diferentes organizações ligadas à luta de libertação criam o MAC – Movimento Anticolonial, o desempenho de Cabral é decisivo. Em Setembro de 1959 regressa a Bissau, no rescaldo dos acontecimentos de 3 de Agosto. Tiram-se ensinamentos de que não há condições para a luta urbana, são fundamentais militantes que precisam de ser recrutados no interior da Guiné. A estratégia do partido fica definida: luta armada para a obtenção da liberdade nacional. Cabe a Cabral desenhar o diagnóstico que irá levar à formulação estratégica: uma parte da direção estará no exílio, em Conacri, a outra parte dirige a sublevação e o envio dos novos quadros para Conacri. Logo no seu primeiro diagnóstico, Cabral enuncia que a vanguarda é caracteristicamente pequeno-burguesa, mais tarde este raciocínio será desenvolvido numa frase ainda com consonância explosiva: a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de se suicidar como classe para ressuscitar como trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence.

Os contornos da luta armada que Medeiros refere acompanham de perto tudo aquilo que é hoje conhecido e considerado. E depois aborda o problema da unidade Guiné-Cabo Verde, e cita Cabral: “Nós na Guiné e nas ilhas de Cabo Verde somos as mesmas gentes, temos a mesma língua e temos o mesmo partido". Noutro registo, deve-se a Cabral a seguinte apreciação: “Somos pela unidade africana, à escala regional ou continental como meio necessário para a construção do progresso dos povos africanos, para garantir a segurança e a continuidade deste progresso (…) A liquidação total do colonialismo e das suas sequelas, a conquista prévia da independência nacional de cada país ou colónia, a transformação das estruturas económica e sociais e a aproximação das novas estruturas criadas nos países, deverão, na nossa opinião, constituir a base fundamental da realização da unidade africana”.

(Continua)

Em maré de sorte, este achado na Feira da Ladra, um mapa da Guiné, presumivelmente de trabalhos cartográficos aí pelos anos 1930. Envolvida pela Senegâmbia, o que leva a querer que a colónia francesa do Senegal ainda não se distingue da colónia britânica da Gâmbia. Quem vê este mapa é capaz de pensar que mais de metade do país era ocupado por Fulas, vejam com atenção. No Sul, preponderavam os Biafadas, o que não era totalmente incorreto, os Fulas tinham empurrado os Biafadas para o Litoral, os Nalus e os Sossos, por exemplo, tinham pouca expressão. Não há uma só referência a Mandingas nem a Papéis, parece que essas etnias eram puros epifenómenos. E vale a pena estudar a toponímia. Do que me foi dado ver e viver, na região centro-leste Goli corresponde a Porto Gole, Malafo era nome de rio mas não de povoação, Enxalé fica em frente ao Xime. Em frente a Bambadinca vêm referidas povoações inexistentes em 1960: Sambel Nhanta, que fora a sede do régulo do Cuor, tinha desparecido, Caranque Cunda era um pequeno lugar, que fora importante para acantonar as tropas macuas, em 1908, mas rapidamente perdeu importância. E Checibá talvez seja Madina. Podemos questionar se houve tantas migrações em escassas décadas. O ponto assente é que este mapa tem muitíssimo pouco a ver com a Guiné que conhecemos. O mapa terá sido produzido pelo Istituto Geografico de Agostini – Novara: talvez queira significar que os padres italianos já estavam a caminho.

Beja Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17718: Notas de leitura (992): Relatório científico do Aspirante de Artilharia Wilmer Delgado Pinto para o Mestrado em Ciências Militares na Especialidade de Artilharia, Academia Militar, 2014 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17718: Notas de leitura (992): Relatório científico do Aspirante de Artilharia Wilmer Delgado Pinto para o Mestrado em Ciências Militares na Especialidade de Artilharia, Academia Militar, 2014



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Março de 2016:

Queridos amigos,

Foi na Biblioteca do CIDAC que encontrei este documento em que um aspirante da academia militar foi entrevistar personalidades que conviveram com Amílcar Cabral, caso de António Medeiros, Osvaldo Lopes da Silva (que teve um papel primordial no ataque a Guileje), o historiador Tcherno Ndjai, Luísa Teotónio Pereira, historiador Julião Soares Sousa, entre outras.

O itinerário político e pessoal de Cabral não acrescenta nada de novo mas o método de abordagem, as perguntas da entrevista, a diversidade das personalidades entrevistadas, é de indiscutível interesse.
Como o autor escreve na conclusões, Cabral é unanimemente conhecido por saber superar e encontrar resposta atempada nas circunstâncias mais penosas, possuir uma coragem física e moral incontestável, ter sido dotado de uma capacidade comunicativa fora de série e com uma escrita rara.
Considero que este achado valoriza a utilidade interna e externa do blogue.

Um abraço do
Mário


Relatório Científico do Aspirante de Artilharia Wilmer Delgado Pinto para o Mestrado em Ciências Militares na Especialidade de Artilharia, Academia Militar, 2014

Beja Santos

O trabalho de Mestrado de Wilmer Delgado Pinto teve como objetivo principal caraterizar Amílcar Cabral quanto aos seus atributos e competências de liderança enquanto político e revolucionário. Um trabalho que se divide em duas partes fundamentais, a primeira aborda a vida política e revolucionária de Amílcar Cabral e a segunda aplica-se à análise qualitativa a 15 entrevistas de individualidades que privaram com Amílcar Cabral; tal análise permitiu ao autor identificar competências relevantes com destaque para: carisma, generosidade, capacidade de resolução dos problemas, flexibilidade e adaptabilidade a novas e diferentes situações, entre outras. Ao concluir-se a investigação, o autor conclui que Amílcar Cabral foi um líder carismático que orientou o seu estilo de liderança pela participação e envolvimento dos colaboradores nas tomadas de decisão.

A primeira parte do trabalho sobre o homem e o itinerário político de Amílcar Cabral mostra correção e não era esperado que apresentasse revelações de monta. Assim, temos o contexto da assunção da negritude, a vinda do jovem Amílcar Cabral para Lisboa, o ambiente sociopolítico e cultural da época, a sua intervenção na Casa de África, Casa dos Estudantes do Império e Centro de Estudos Africanos. O autor fala da “reafricanização dos espíritos” como a força dinâmica que mobilizava estes estudantes vindos das colónias, imprimindo-lhes a vontade de transformar a condição social do homem africano e chegar à libertação colonial. Mostra-nos depois o Cabral agrónomo na Guiné, primeiro, e em Angola, depois, onde trabalhou de 1955 a 1959, em cartografia dos solos e recuperação de solos salgados no Vale de Catumbela. Dá-nos depois uma súmula da ascensão dos movimentos nacionalistas das colónias portuguesas a partir da criação do MLNCP (Movimento de Libertação Nacional das Colónias Portuguesas), cujo objetivo era alcançar a autonomia das possessões portuguesas em África. É um percurso relativamente rápido em que do MNLCP se passou à criação do MAC (Movimento Anticolonialista). Neste último agrupamento Cabral seria responsável por garantir a ligação entre o diretório de Lisboa e as secções do MAC nas diversas capitais europeias. É em Bissau, em Setembro de 1959, que são lançados os alicerces do PAI e deliberada a estratégia de subversão em meio rural, indo parte da direção política para a clandestinidade no estrangeiro (ficariam na Guiné Conacri). Cabral, a despeito de se ter envolvido completamente na vida política do PAI, de ser autor de todos os documentos apresentados na formação ideológica e no estrangeiro, foi responsável por uma Escola Piloto em Conacri e angariador de apoios para a luta armada, continuou embrenhado pela luta de libertação das diferentes colónias portuguesas. O MAC passou depois a designar-se por FRAIN – Frente Revolucionária Africana para a Independência das Colónias Portuguesas, e o autor desvela o conjunto de iniciativas em que ao longo dos anos Cabral foi acompanhando os seu camaradas de luta, designadamente o MPLA e a FRELIMO.

Na segunda parte, o autor declara que pretende estabelecer um modelo em que se identifiquem as competências e o padrão de referência associados à liderança para avaliar lacunas de formação nos oficiais do Exército português e para tal recorre a um estudo empírico com recolha e análise de dados, descrição de materiais e os instrumentos utilizados e caraterização da amostra. E assim se chega às conclusões e recomendações, seguramente uma das seções mais interessantes do trabalho deste investigador militar.

A questão central era: quais foram as competências de comando e liderança que distinguiram Amílcar Cabral? O fundador do PAIGC, de acordo com as respostas obtidas, distinguiu-se pela sua ação de comando persuasiva, pela articulação teórica e prática do seu pensamento e por se pautar por valores e ideias decorrentes de uma base cultural e filosófica resoluta. Quanto aos seus atributos de comando e de liderança verifica-se que enquanto político e revolucionário demonstrou inabalável espírito de sacrifício, determinação, coragem e resistência. A forma como se relacionava com os colaboradores era distinta dos restantes líderes africanos da época. Suscitava e ouvia com interesse a opinião dos outros, o essencial centrava-se no desenvolvimento dos sentimentos de união, alicerçado nas vantagens do trabalho conjunto. No âmbito da luta armada, enquanto combatente simultâneo em várias frentes, revelou grandes conhecimentos estratégicos tanto nas matas como na esfera internacional, bem como na criação das FARP – Forças Armadas Revolucionárias do Povo. Ficou patente a sua capacidade para realizar trabalhos e estudos de natureza diversa, bem como a sua agilidade em transformar o pensamento em ação e disseminar essa energia à sua volta.

Em termos de reflexões finais o autor diz que Cabral revelou eminente capacidade de motivar os seus colaboradores, apesar das dificuldades impostas pela liderança estratégica que exerceu ao longo de todo o processo da luta.

Este líder africano, como visionário e estratega, tinha plena consciência da influência dos fatores psicológicos sobre o desempenho em combate, por isso expôs-se e desafiou o perigo para visitar e incitar os seus homens no cumprimento das missões, sobretudo em teatro de guerrilha, para renovar os laços de confiança, recorrendo à informalidade para se conseguir aproximar a comungar dos mesmos sacrifícios com os combatentes.

Todos os entrevistados são unânimes em destacar o carisma e empreendedorismo de Amílcar Cabral como competências cruciais para o sucesso da luta, quer na mobilização das massas, quer no desenvolvimento de contactos com entidades, cujo papel, no meio envolvente, podia contribuir para alcançar os desempenhos singulares de que precisava. Amílcar Cabral mantinha elevadas expetativas sobre os seus colaboradores, permitindo-lhes tomar decisões importantes durante o desenrolar das operações. Essa liberdade permitia a máxima exploração da criatividade e do potencial dos homens ao seu dispor.

O legado deste líder atento à sua época define-se pela tomada de iniciativa histórica, pela compreensão da realidade viva do seu povo e pela coragem moral para desafiar a situação vigente da agitação política e militar nas colónias portuguesas em África. Não se revelou apenas um revolucionário, revelou-se um humanista disposto a servir os interesses de África e da Humanidade em geral.
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Nota do editor

Último poste da série de 28 de agosto de 2017 > Guiné 61/74 - P17709: Notas de leitura (991): “Memórias SOMânticas”, de Abdulai Sila, Ku Si Mon Editora, 2016 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15766: Notas de leitura (809): “Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
É a vez de um cabo-verdiano se afoitar a narrar a vida e Amílcar Cabral.
Não se pode desmerecer do trabalho aturado que subjaz a esta narrativa. Estranha-se que o autor nunca refira os livros-chave de Julião Soares Sousa e Leopoldo Amado, nem uma palavra refere sobre a entrevista do seu compatriota José Vicente Lopes a Aristides Pereira, peça incontornável para procurar decifrar o contencioso entre guineenses e cabo-verdianos.
No estudo histórico não podemos segregar as investigações de nomeada. A despeito da incompreensível falta de referência a textos fundamentais, anda por este livro imensa investigação e um grande afã numa interpretação do papel do líder revolucionário africano mais popular do seu tempo e no equívoco da unidade Guiné-Cabo Verde.

Um abraço do
Mário


Uma nova investigação sobre Amílcar Cabral (1)

Beja Santos

Compreende-se a atração que Amílcar Cabral continua a provocar nos investigadores: foi indiscutivelmente o ideólogo revolucionário mais importante nas colónias portuguesas; historicamente, é visto como o pai fundador de dois países africanos; no início dos anos 1970 era uma das figuras mais cotadas na cena internacional, encarado como uma autêntica estrela devido à sagacidade do seu pensamento, a originalidade que impusera na estratégia política dos movimentos libertadores, admirado pela estrutura organizativa que soubera impor no PAICG; e todos os estudiosos puderam confirmar como ele foi a força motriz desde a génese do partido revolucionário, o preparador da guerra, o autor de comunicados, de jornais, de apresentador de comunicações nos mais reputados areópagos, e um muito mais que se sabe.

Quando aparece um novo trabalho sobre Amílcar Cabral, faz todo o sentido, por conseguinte, esperar algo de novo no campo da investigação, pois existem trabalhos de valor incalculável, onde pontificam Julião Soares Sousa que recebeu o prémio Gulbenkian de Ciência pelo seu magistral “Amílcar Cabral – Vida e morte de um revolucionário africano”, Edições Nova Veja, 2011 e Leopoldo Amado com o seu “Guerra colonial e guerra de libertação nacional”, IPAD, 2011. São trabalhos de consulta obrigatória, é como se estivéssemos a revisitar a biografia de Salazar e escamoteássemos a biografia de Filipe Ribeiro de Menezes, ou a Idade Média em Portugal ignorando toda a investigação de José Matoso. Muitos outros escreveram sobre Amílcar Cabral, caso de Mário Pinto Andrade, Gérard Chaliand, António Tomás, Patrick Chabal, Luís Cabral, Aristides Pereira, Basil Davidson. Pois bem, “Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014, é uma investigação que não se pode ignorar, está para ali muita pesquisa, uma vontade sincera em iluminar eventos controversos, pôr clareza em acontecimentos que continuam dominados por uma certa religiosidade ou mitologia. Mas escrever sobre Amílcar Cabral passando ao largo das obras cimeiras é que não lembra a ninguém.

Daniel dos Santos apresenta-se como jornalista, politólogo e professor universitário. É um cabo-verdiano que se lançou neste empreendimento dizendo que pretende descrever o percurso de Amílcar Cabral tal como realmente foi, nada de abstrações, lendas ou alegorias. E para situar o biografado começa por nos dizer que Cabo Verde era uma colónia sem colonialismo, que a construção identitária de Cabo Verde se fez a par das revoltas de escravos e das reivindicações separatistas. Cabo Verde possui um vasto portefólio de sentimento nativista sem igual no espaço lusófono africano. Para o investigador este pano de fundo ajuda a esclarecer que a ideia da independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, assim como a da criação de um partido africano, não nasceu com Amílcar Cabral. É pena que não nos tenha dado o contexto permanentemente conflitual entre as gentes da Senegâmbia e os portugueses, ao menos ficava-se a saber que as soluções separatistas da Guiné e Cabo Verde não se confundiam. Ao forjar uma coexistência entre os dois povos preparou-se a cizânia, que não se esclareceu completamente com a rutura de Novembro de 1980. Daniel dos Santos retrata-nos o meio familiar de Amílcar, os seus estudos na Guiné e em Cabo Verde, a constituição da sua formação cultural, a sua vida para Lisboa, a sua frequência a Casa dos Estudantes do Império, os novos ventos independentistas que sopravam no termo da II Guerra Mundial. Trata-se de um período já bem documentado onde as investigações de Dalila Mateus deixaram esclarecido como estes jovens estudantes procuravam estudar a identidade cultural.

Numa segunda parte, o estudioso anda à volta de Cabral como homem político, a génese da sua revolta, as fomes e as secas no espaço cabo-verdiano, a falta de direitos cívicos. Insinua-se mesmo que Cabral se terá revoltado por discriminação num concurso no Instituto Superior de Agronomia. Mesmo que se admita que tal tenha acontecido, em 1958 Cabral já se encaminhava para o confronto com o regime de Salazar, pesaria muito pouco a traquibérnia de um professor racista. Mais a mais, o autor desmonta o episódio do regresso de Cabral e a mulher da Guiné para Lisboa, durante tempos pusera-se a correr que o Governador da Guiné o expulsara, sabe-se hoje que ambos regressaram de urgência a Lisboa adoentados pelo paludismo.

Depois traça-nos o quadro dos movimentos nacionalistas então existentes, revela que o episódio de massacre do Pidjiquiti não teve nem podia ter interferência tanto de Cabral como dos seus amigos, embora seja admissível que o Movimento de Libertação da Guiné o tenha impulsionado, esmiuça o MAC (Movimento Anticolonial), os seus protagonistas e as razões do seu fracasso até se transformar em 1960 no FRAIN – Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas, avultando o papel de um líder injustamente esquecido, o angolano Viriato da Cruz. Tudo irá mudar com o início da guerra em Angola, como partido só existia a UPA, tornou-se premente que os movimentos libertadores aparecessem inequivocamente identificados por países e a FRAIN transformou-se em CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas. É o momento em que Cabral é levado a tomar uma decisão difícil: a partida para o exílio, teremos doravante, e até ao seu assassinato, o revolucionário sedeado em Conacri.

E numa reviravolta surpreendente da sua investigação, somos atirados para a morte de Cabral e a sua constelação e mistérios, cumplicidades e negligências. Passa em revista os diferentes episódios em que se procurou abater Cabral e deixa-se claro que a hostilidade entre cabo-verdianos e guineenses era percebida por todos. Poderão ter interferido em diferentes fases, com o papel instigador, as autoridades da PIDE, mas não há na verdade um só documento que conecte a polícia política com uma conspiração que acabou por levar à prisão centenas e centenas de guineenses em Conacri. O autor interroga a quem interessava a morte de Amílcar Cabral, põe várias hipóteses, mas todos os testemunhos desaguam sempre num litígio racial que se apresentava como insanável. Há o mistério Sékou Touré, mas continua por apurar qual o verdadeiro papel desempenhado pelo ditador de Conacri.

Ainda há muito mais para dizer sobre este livro, seremos seguidamente envolvidos na história do PAIGC, na grande utopia de Cabral, no papel da unidade Guiné-Cabo Verde. No epílogo, o autor não se escusa de referir Cabral dizendo que é urgente situá-lo no seu lugar na história de Cabo Verde. Nesta observação também se percebe a trajetória à volta de identidade cabo-verdiana… Afinal o autor dá como comprovado que aqueles dois países não eram conciliáveis em qualquer forma de federação. É pena que tenha iludido as explicações de fundo para uma contenda de séculos.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15752: Notas de leitura (808): “Spínola”, de Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010 (2) (Mário Beja Santos)

terça-feira, 26 de maio de 2015

Guiné 63/74 - P14664: Efemérides (189): Cinquenta anos do encerramento da Casa dos Estudantes do Império (CEI) (1944-1965)... Homenagem aos associados da CEI pela UCCLA (união das Cidades Capitais de Língua Portuguesa)... Exposição sobre a CEI na Câmara Municipal de Lisboa até 25 de junho


"Pela CEI [Casa dos Estudantes do Império] de Coimbra e Lisboa passaram Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Pedro Pires, Vasco Cabral, Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos, Luandino Vieira, Manuel Rui Monteiro, Rui Mingas, António Jacinto, Óscar Monteiro, João Craveirinha, Joaquim Chissano, Sérgio Vieira, Miguel Trovoada, Francisco José Tenreiro, Alda Lara,Pepetela… Uma constelação de intelectuais e de futuros líderes políticos"... Pela CEI, terão passado mais de 2200 estudantes  (Nuno Ferreira, Público, 16/6/2014).

1. Exposição “Casa dos Estudantes do Império. Farol de Liberdade”

Câmara Municipal de Lisboa

De 21 de maio a 25 de junho de 2015 | Das 10 às 13 e das 14 às 17 horas.

No âmbito da homenagem que a UCCLA [, União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa,] tem vindo a promover à Casa dos Estudantes do Império, terá lugar, dia 21 de maio, às 18 horas, a inauguração da exposição “Casa dos Estudantes do Império. Farol de Liberdade”, na Sala de Exposições da Câmara Municipal de Lisboa (Praça do Município), em Portugal.

A exposição é uma mostra documental, com fotografias, publicações periódicas, livros, documentos oficiais, etc, cedidos ou disponibilizados pelos associados e por algumas instituições que se associaram à exposição.

Entrada livre. [Fonte: Cortesia de UCCLA]


Cartaz da exposição "Casa dos Estudantes do Império (1944-1965)" (Cortesia de UCCLA)


2. Do sítio da UCCLA, com a devida vénia:

GRANDE HOMENAGEM AOS ASSOCIADOS DA CASA DOS ESTUDANTES DO IMPÉRIO

A UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa) tem vindo a homenagear a Casa dos Estudantes do Império (CEI), desde 28 de outubro de 2014. Esta homenagem corresponde, sem dúvida, a um desígnio comum dos povos de língua oficial portuguesa e não é possível conceber-se o futuro sem a preservação da memória que a todos respeita.

Atendendo a que este ano se assinala os 50 anos do encerramento da CEI, em Lisboa, os 30 anos de existência da UCCLA, e a passagem dos 40 anos do reconhecimento das independências dos países africanos de língua oficial portuguesa, diversas serão as iniciativas programadas para os próximos dias.

Programa:


- Dia 21 de maio, 18h00 - Inauguração da exposição “Casa dos Estudantes do Império. Farol de Liberdade”, nos Paços do Concelho (Praça do Município).

Trata-se de uma mostra documental, com fotografias, publicações periódicas, livros, documentos oficiais, etc, cedidos ou disponibilizados pelos associados e por algumas instituições que aderiram à exposição. A exposição estará patente ao público até ao dia 25 de junho, das 10 às 13 e das 14 às 17 horas, todos os dias;

- Dias 22, 23 e 25 de maio - Colóquio Internacional “Casa dos Estudantes do Império: histórias, memórias, legados”, na Fundação Calouste Gulbenkian (Av. de Berna, n.º 45A), em Lisboa.

O evento é organizado pela UCCLA (União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa), CES (Centro de Estudos Sociais - Laboratório Associado da Universidade de Coimbra), Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa) e apoiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia), Camões - Instituto da Cooperação e da Língua Portuguesa e CML (Câmara Municipal de Lisboa).

3. Sobre a CEI (Casa dos Estudantes do Império) 

A Casa dos Estudantes do Império) (CEI) foi criada em 1944, pelo regime anterior, para responder ao reforço do convívio dos estudantes universitários das ex-colónias portuguesas, que não possuíam instituições de ensino superior e que tinham assim que continuar a frequência universitária em Portugal. Este objetivo integrou-se num outro, mais visto, de formação de eleitos que se admitiam virem a ser enquadradoras dos objetivos que o próprio regime colonial prosseguia.

Sob os ventos da descolonização, documentos da Segunda Guerra Mundial, e da aprovação da Carta das Nações Unidas que reconhecem o direito inalienável dos povos à autodeterminação e à independência, o mundo assistiu ao surgimento de novos países no continente africano, o primeiro dos quais foi o Gana, em 1957.

A partir dessa altura muitos dos associados da Casa dos Estudantes do Império são impulsionados para o aprofundamento dos estudos relativos à identidade dos territórios de que eram originários, frequentando debates, colóquios e promovendo edições próprias, com conteúdo diversificado, incluindo poemas, contos e outras formas de expressão cultural.

Em resultado desta ação, a Casa dos Estudantes do Império é encerrada por intervenção da PIDE em 1965. Em 2015 ocorrerá a passagem do 50.º aniversário desse encerramento que coincide com o 40.º aniversário das independências das ex-colónias portuguesas.

Foram associados da Casa dos Estudantes do Império, ou tiveram participação nela, personalidades incontornáveis da cultura e da política como Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Fernando França Van Dúnem, Joaquim Chissano, Pascoal Mocumbi, Pedro Pires, Onésimo Silveira, Francisco José Tenreiro, Alda do Espírito Santo, Vasco Cabral, Pepetela, Alda Lara e tantos outros.

Decorridos, como se disse, cinquenta anos sob a extinção da Casa dos Estudantes do Império, a UCCLA entendeu dever dar um pontapé de saída para homenagear o conjunto desses jovens, tanto mais que Lisboa, que foi sede da Casa dos Estudantes do Império e Coimbra, onde existiu uma delegação, são associadas da UCCLA. No Porto houve também uma delegação durante alguns anos.

Esta homenagem corresponde, sem dúvida, a um desígnio comum dos povos de língua oficial portuguesa e não é possível conceber-se o futuro sem a preservação da memória que a todos respeita.

Enquanto Secretário-Geral da UCCLA agradeço à Comissão Organizadora, constituída para a preparação e execução do programa, aos patrocinadores, sem os quais não seria possível levá-lo a bom porto, às instituições públicas de todos os nossos países e às respetivas embaixadas acreditadas em Portugal, aos convidados que prontamente aceitaram participar nos inúmeros eventos que foram programados e, por fim, à comunicação social que, desde a primeira hora, acolheu de forma muito solidária a iniciativa, fazendo repercutir pela opinião pública.


Vitor Ramalho
Secretário-Geral da UCCLA 
[Cortesia do sítio da UCCLA]


4. Sobre a história da CEI (, "criada para perpetuar a dimensão imperial do Portugal do Estado Novo, (...) foi viveiro de dirigentes independentistas que chegaram ao poder nas ex-colónias"), vd reportagem de Nuno Ribeiro, Público, 16/6/2014 ("Cinquentenário do fecho da Casa dos Estudantes do Império vai ser assinalado a partir de Outubro"). 

Texto completo, aqui.

Vd. também entrevista, feita pela RTP África, programa "Grande DEntrevista", de 26/5/2014, ao são tomense e dirigente da CEI, Tomás Medeiros: "Casa dos Estudantes do Império: demos um tiro no dedo do colono" [Vd,. transcrição da enrtrevista aqui].

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Nota do editor: