sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15766: Notas de leitura (809): “Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Abril de 2015:

Queridos amigos,
É a vez de um cabo-verdiano se afoitar a narrar a vida e Amílcar Cabral.
Não se pode desmerecer do trabalho aturado que subjaz a esta narrativa. Estranha-se que o autor nunca refira os livros-chave de Julião Soares Sousa e Leopoldo Amado, nem uma palavra refere sobre a entrevista do seu compatriota José Vicente Lopes a Aristides Pereira, peça incontornável para procurar decifrar o contencioso entre guineenses e cabo-verdianos.
No estudo histórico não podemos segregar as investigações de nomeada. A despeito da incompreensível falta de referência a textos fundamentais, anda por este livro imensa investigação e um grande afã numa interpretação do papel do líder revolucionário africano mais popular do seu tempo e no equívoco da unidade Guiné-Cabo Verde.

Um abraço do
Mário


Uma nova investigação sobre Amílcar Cabral (1)

Beja Santos

Compreende-se a atração que Amílcar Cabral continua a provocar nos investigadores: foi indiscutivelmente o ideólogo revolucionário mais importante nas colónias portuguesas; historicamente, é visto como o pai fundador de dois países africanos; no início dos anos 1970 era uma das figuras mais cotadas na cena internacional, encarado como uma autêntica estrela devido à sagacidade do seu pensamento, a originalidade que impusera na estratégia política dos movimentos libertadores, admirado pela estrutura organizativa que soubera impor no PAICG; e todos os estudiosos puderam confirmar como ele foi a força motriz desde a génese do partido revolucionário, o preparador da guerra, o autor de comunicados, de jornais, de apresentador de comunicações nos mais reputados areópagos, e um muito mais que se sabe.

Quando aparece um novo trabalho sobre Amílcar Cabral, faz todo o sentido, por conseguinte, esperar algo de novo no campo da investigação, pois existem trabalhos de valor incalculável, onde pontificam Julião Soares Sousa que recebeu o prémio Gulbenkian de Ciência pelo seu magistral “Amílcar Cabral – Vida e morte de um revolucionário africano”, Edições Nova Veja, 2011 e Leopoldo Amado com o seu “Guerra colonial e guerra de libertação nacional”, IPAD, 2011. São trabalhos de consulta obrigatória, é como se estivéssemos a revisitar a biografia de Salazar e escamoteássemos a biografia de Filipe Ribeiro de Menezes, ou a Idade Média em Portugal ignorando toda a investigação de José Matoso. Muitos outros escreveram sobre Amílcar Cabral, caso de Mário Pinto Andrade, Gérard Chaliand, António Tomás, Patrick Chabal, Luís Cabral, Aristides Pereira, Basil Davidson. Pois bem, “Amílcar Cabral, Um outro olhar”, por Daniel dos Santos, Chiado Editora, 2014, é uma investigação que não se pode ignorar, está para ali muita pesquisa, uma vontade sincera em iluminar eventos controversos, pôr clareza em acontecimentos que continuam dominados por uma certa religiosidade ou mitologia. Mas escrever sobre Amílcar Cabral passando ao largo das obras cimeiras é que não lembra a ninguém.

Daniel dos Santos apresenta-se como jornalista, politólogo e professor universitário. É um cabo-verdiano que se lançou neste empreendimento dizendo que pretende descrever o percurso de Amílcar Cabral tal como realmente foi, nada de abstrações, lendas ou alegorias. E para situar o biografado começa por nos dizer que Cabo Verde era uma colónia sem colonialismo, que a construção identitária de Cabo Verde se fez a par das revoltas de escravos e das reivindicações separatistas. Cabo Verde possui um vasto portefólio de sentimento nativista sem igual no espaço lusófono africano. Para o investigador este pano de fundo ajuda a esclarecer que a ideia da independência de Cabo Verde e da Guiné-Bissau, assim como a da criação de um partido africano, não nasceu com Amílcar Cabral. É pena que não nos tenha dado o contexto permanentemente conflitual entre as gentes da Senegâmbia e os portugueses, ao menos ficava-se a saber que as soluções separatistas da Guiné e Cabo Verde não se confundiam. Ao forjar uma coexistência entre os dois povos preparou-se a cizânia, que não se esclareceu completamente com a rutura de Novembro de 1980. Daniel dos Santos retrata-nos o meio familiar de Amílcar, os seus estudos na Guiné e em Cabo Verde, a constituição da sua formação cultural, a sua vida para Lisboa, a sua frequência a Casa dos Estudantes do Império, os novos ventos independentistas que sopravam no termo da II Guerra Mundial. Trata-se de um período já bem documentado onde as investigações de Dalila Mateus deixaram esclarecido como estes jovens estudantes procuravam estudar a identidade cultural.

Numa segunda parte, o estudioso anda à volta de Cabral como homem político, a génese da sua revolta, as fomes e as secas no espaço cabo-verdiano, a falta de direitos cívicos. Insinua-se mesmo que Cabral se terá revoltado por discriminação num concurso no Instituto Superior de Agronomia. Mesmo que se admita que tal tenha acontecido, em 1958 Cabral já se encaminhava para o confronto com o regime de Salazar, pesaria muito pouco a traquibérnia de um professor racista. Mais a mais, o autor desmonta o episódio do regresso de Cabral e a mulher da Guiné para Lisboa, durante tempos pusera-se a correr que o Governador da Guiné o expulsara, sabe-se hoje que ambos regressaram de urgência a Lisboa adoentados pelo paludismo.

Depois traça-nos o quadro dos movimentos nacionalistas então existentes, revela que o episódio de massacre do Pidjiquiti não teve nem podia ter interferência tanto de Cabral como dos seus amigos, embora seja admissível que o Movimento de Libertação da Guiné o tenha impulsionado, esmiuça o MAC (Movimento Anticolonial), os seus protagonistas e as razões do seu fracasso até se transformar em 1960 no FRAIN – Frente Revolucionária Africana para a Independência Nacional das Colónias Portuguesas, avultando o papel de um líder injustamente esquecido, o angolano Viriato da Cruz. Tudo irá mudar com o início da guerra em Angola, como partido só existia a UPA, tornou-se premente que os movimentos libertadores aparecessem inequivocamente identificados por países e a FRAIN transformou-se em CONCP – Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas. É o momento em que Cabral é levado a tomar uma decisão difícil: a partida para o exílio, teremos doravante, e até ao seu assassinato, o revolucionário sedeado em Conacri.

E numa reviravolta surpreendente da sua investigação, somos atirados para a morte de Cabral e a sua constelação e mistérios, cumplicidades e negligências. Passa em revista os diferentes episódios em que se procurou abater Cabral e deixa-se claro que a hostilidade entre cabo-verdianos e guineenses era percebida por todos. Poderão ter interferido em diferentes fases, com o papel instigador, as autoridades da PIDE, mas não há na verdade um só documento que conecte a polícia política com uma conspiração que acabou por levar à prisão centenas e centenas de guineenses em Conacri. O autor interroga a quem interessava a morte de Amílcar Cabral, põe várias hipóteses, mas todos os testemunhos desaguam sempre num litígio racial que se apresentava como insanável. Há o mistério Sékou Touré, mas continua por apurar qual o verdadeiro papel desempenhado pelo ditador de Conacri.

Ainda há muito mais para dizer sobre este livro, seremos seguidamente envolvidos na história do PAIGC, na grande utopia de Cabral, no papel da unidade Guiné-Cabo Verde. No epílogo, o autor não se escusa de referir Cabral dizendo que é urgente situá-lo no seu lugar na história de Cabo Verde. Nesta observação também se percebe a trajetória à volta de identidade cabo-verdiana… Afinal o autor dá como comprovado que aqueles dois países não eram conciliáveis em qualquer forma de federação. É pena que tenha iludido as explicações de fundo para uma contenda de séculos.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15752: Notas de leitura (808): “Spínola”, de Luís Nuno Rodrigues, A Esfera dos Livros, 2010 (2) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

Porque será que nunca se põe a hipótese de o mandante do assassinato ter sido a dupla rússia/cuba? com uma ajudinha de Sekou Touré?

Com tantas coincidências, até faz confusão, não se pôr essa hipótese em cima da mesa.

Valdemar Silva disse...

Vamos ter de arranjar, também para este assassinato, mais um 'Casimiro Monteiro' para armar confusão e pra safar a rapaziada habitual nestas coisas de eliminar os 'obviamente demite-o'.
Agora, não vale a pena, mais teorias da conspiração, já todos sabemos como as coisas se passaram.
Valdemar Queiroz