terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (38): De 10 a 31 de Julho de 1974

1. Em mensagem do dia 11 de Fevereiro de 2016, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma das suas Memórias, a 38.ª.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

38 - De 10 a 31 de Julho de 1974

Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 
(continuação)

JUL74/10 – (...). Continua a verificar-se o cessar-fogo tácito em todo o TO. Prossegue a mentalização das populações, militares e milícias africanos, como preparação para a Independência. Continua a notar-se a adesão ao PAIGC da população, especialmente dos mais jovens, notando-se por enquanto nos Homens Grandes uma certa reserva.

JUL74/11 – (...). Após a passagem por A. FORMOSA de um Furriel dos Comandos Africanos, começou a esboçar-se na CCAÇ 18 uma mudança de atitude quanto ao problema da entrega do armamento e passagem à disponibilidade. Embora ainda não tivessem sido recebidas directivas a este respeito, dentro da mentalização que se vem fazendo tem-se de facto notado ultimamente esta mudança de atitude.

JUL74/19 – (dos Factos e Feitos, pág. 31). A fim de assistir a uma reunião no Comando-Chefe, respeitante a contracção do dispositivo das NT e receber directivas, seguiu para BISSAU o Comandante.

Tendo sido recebidas as directivas para desactivação dos Pelotões de Milícias, foram reunidos no Comando do Batalhão, o Comandante do Batalhão, Comandante da Companhia de Milícias, assim como os respectivos Comandantes de Pelotão, a quem foi comunicado, em sequência da mentalização que se vinha fazendo do antecedente, a maneira como iria ser feito o seu desarmamento e as condições em que os referidos milícias continuariam a usufruir das suas regalias.

Após várias trocas de impressões ficou assente que se iniciava o respectivo desarmamento no dia seguinte. Quanto às populações que tinham armamento distribuído para colaborarem nas autodefesas, e para se proceder ao seu desarmamento, foram reunidos neste Comando todos os “Homens Grandes”, entre os quais se encontravam o Régulo IAIA e o CHERNO SECUNA.

JUL74/20 – Iniciou-se sem quaisquer espécies de problemas o desarmamento dos Pelotões de Milícia do Sector S-2.

JUL74/21 – Comandante regressou de BISSAU.


Das minhas memórias: 

21 de Julho de 1974 (domingo). Guerrilheiros do PAIGC em Nhala (novamente). 

[Salto as notas deste dia. Quero realçar a seguir, algumas fotografias que ajudam à compreensão da época que se vivia. (Julgava que já tinha sido claro a esse respeito). Estas fotografias são importantes, na medida em que mostram o contexto em que se faziam certos “disparates” (como vestir uma camisola com a cara do Amílcar Cabral, fazer-se fotografar ao lado do inimigo, etc.) que tanto chocam hoje os veteranos que não viram o fim da guerra. É devido a esse contexto que eu desvalorizo esses disparates e, se os compararmos, por exemplo, com o hastear da bandeira do PAIGC nos quartéis ou nas tabancas, quando Portugal continuava a manter ali a soberania, o que se dirá então? Chocante? Estou convencido que isto estava a acontecer um pouco por todo o lado na Guiné e, o que ontem era chocante, hoje banalizou-se, perdeu importância e não tem retorno].

Nesta data, 21-07-74, chegaram mais uma vez os guerrilheiros. Pediram autorização para dormirem na escola. Aí, hastearam a bandeira do PAIGC e, quando chegou a hora, procederam à cerimónia de arrear a bandeira. O único incidente passou-se comigo. O alferes do PAIGC no fim da cerimónia abordou-me (eu estava a fotografar), para dizer que quando estavam a entrar Nhala e nós procedíamos ao arrear da nossa bandeira, todo o bigrupo parou em sentido, mesmo os que ainda estavam fora do aquartelamento. Agora ali, eu não mandara pôr em sentido os soldados – e eram muitos – que assistiam ao arrear da bandeira deles... Achou que não houve retribuição nas honras à bandeira. Como se as honras devidas à bandeira de um país soberano, fossem as mesmas a prestar à bandeira de um partido que, oficialmente, ainda não passava disso.

[Era este contexto concreto o que se vivia e não outro, como ainda há dois ou três meses atrás. E que adiantava agora lembrarmo-nos que foram eles que feriram e mataram os nossos amigos e companheiros de armas? Tão despropositado como admitir-lhes que entrassem pelo aquartelamento adentro, à procura de quem lhes matou o familiar ou o camarada. Todos sabíamos que o nosso convívio com eles estava por dias apenas e, com maior ou menor frieza e distanciamento, tínhamos de lidar com eles sem conflitos desnecessários, sendo certo que era com eles que seriam tratadas as formalidades da entrega do território. 

Receio que tudo o que ficou dito possa parecer uma grande necessidade de justificação da minha parte. Deixo já claro: não o faria e não voltarei a abordar o assunto. Mas gostava, sinceramente, que quem não viveu aquele período inédito do fim da guerra, pudesse partilhar a minha informação, histórias e fotografias (mais as dos outros que “fecharam” a guerra), sem as tentar compreender à luz de um tempo passado. Mas, até a nós, o tempo novo, de tão novo e tão inédito, todos os dias nos surpreendia: nada estava previsto, pouco se conseguia planear e a maioria das situações eram resolvidas à medida que surgiam. Apenas as directivas superiores, quando chegavam, eram aplicadas sem empenhos imaginativos. 

Nota: As fotografias a cor, derivadas de slides, são minhas. As outras foram-me cedidas pelo meu amigo ex-Furriel Mil Trms José Roque, a quem agradeço]. 

Foto 1 – Nhala, 21-07-1974. Guerrilheiros do PAIGC na tabanca. Sempre muito disciplinados e contidos.

Foto 2 – Nhala, 21-07-1974. O Alferes Mil. Campos Pereira, actualmente Comandante da Companhia, circula pensativo por entre os guerrilheiros.

Foto 3 – Nhala, 21-07-1974. Alferes do PAIGC, Fur Mil Trms J. Roque e um guerrilheiro.

Foto 4 – Nhala, 21-07-1974. Alferes do PAIGC e alguns militares de Nhala trocando impressões.


Fotos 5 e 6 – Nhala, 21-07-1974. Bandeira do PAIGC hasteada junto à escola.

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Notas quase “telegráficas” dos meus últimos dias na Guiné.

20-07-1974 – Ainda não sei se terei de cancelar as férias. Os acontecimentos estão a evoluir rapidamente. (No dia seguinte anotaria que tinha sabido de Bissau que estava tudo pronto para viajar); temos já directrizes sobre a forma de entregarmos as instalações e os equipamentos ao PAIGC; recebemos ordens de desarmar as populações; o nosso armamento está ser limpo e encaixotado; o Comandante do Batalhão foi chamado a Bissau para receber instruções.

22-07-1974 – A Companhia de Mampatá já tem dois grupos em Buba que embarcam amanhã. Os outros dois em Mampatá, (...); continuam a sair companhias do teatro de operações (TO).

28-07-1974 – Sigo amanhã para Bissau. Em 1 de Agosto embarco de férias para a Metrópole; por aqui muita chuva; continuam a sair Unidades.

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Retomo a História da Unidade. 

JUL74/22 – Pelas 10h00 quando o Comandante e o Oficial de Operações se deslocavam para MAMPATÁ contactaram com GR/PAIGC, estimado em 40 elementos armados e que se encontravam estacionados junto do Reordenamento/ÁFIA, e cujo Chefe se encontrava em MAMPATÁ.
Contactado o mesmo neste Destacamento, em conversa cordial disse chamar-se RAYMO CHAMBU e obedecendo a ordens superiores, tinha saído há dois dias de KANSEMBEL para efectuar um patrulhamento a esta região, mas que nesse dia regressaria.

- Procedeu-se em A. FORMOSA à inauguração da Sala do Soldado, que tomou o nome de Sala “25 de Abril”.

JUL74/23 – Completou-se o desarmamento dos Pelotões de Milícia de CUMBIJÃ, A. FORMOSA, COLIBUIA, ÀFIA e MAMPATÁ.

- CART 6250 deixou o Subsector de MAMPATÁ, seguindo para BISSAU, via BUBA, para aguardar embarque para a Metrópole.

- A pedido de duas comissões organizadas por militares da CCAÇ 18, e Milícias, foi pedido a BISSAU autorização para os mesmos se deslocarem ao Comando-Chefe para tratar de diversos assuntos relacionados com o desarmamento dos militares e algumas regalias pecuniárias dos milícias. [Sublinhado meu, tal como seguintes].

- Com o desarmamento dos Pel Mil de BUBA e NHALA, completou-se o desarmamento de todos os pelotões de Milícia do Sector S-2.

JUL74/24As comissões da CCAÇ 18 e Milícias seguiram para BISSAU via fluvial.

(...).

JUL74/28 – Escalou A. FORMOSA o NORD ATLAS. Neste avião regressou a comissão da CCAÇ 18, que em reunião havida neste Comando relatou as suas diligências em BISSAU.

JUL74/29Apesar das diversas reuniões havidas com elementos da CCAÇ 18, estas mostraram-se na disposição de não entregarem o armamento, mesmo aqueles que conforme comunicação da 1.ª Rep/CTIG, acabaram o tempo normal de serviço e têm de passar à disponibilidade.

Presume-se que esta sua atitude esteja relacionada, não só com a vinda do Furriel Comando Africano a A. FORMOSA, como também com atitudes tomadas pelo PAIGC em algumas regiões já sob o seu controle. 

(...).

JUL74/31 – Esteve presente em A. FORMOSA uma delegação da 4.ª Rep/CTIG, chefiada pelos Exmos Majores PIRES AFONSO e COSTA PINTO, que veio tratar de assuntos relacionados com a desactivação de COLIBUIA e CUMBIJÃ em particular e duma maneira geral da desactivação do Sector S-2.

- Acompanhados do Comandante deslocaram-se a COLIBUIA e CUMBIJÃ e acompanhado do Oficial de OP/INF deslocaram-se a BUBA e NHALA.

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Eu já não iria assistir à desactivação de nada. A não ser à desactivação de mim próprio dali a um mês em Lisboa, bilhete na mão a sair de casa da tia no Restelo para o Aeroporto, telefone a tocar, não embarques, já regressaram todos, passou aqui um soldado de Coimbra em casa dos teus pais a avisar, que bom, podes voltar já para casa... [Uns segundos de silêncio, uma coisa a nascer-me no estômago, sem querer acreditar no que ouvia. A seguir, explodi]. Que bom, uma porra! Já pensaste que entregaram aquilo sem eu estar presente, vim sem me despedir de ninguém, vou lá deixar a roupa e o meu dólmen, os livros, os diários, o artesanato, o meu caixote de uísque, a minha pressão de ar 4,5, etc., etc. Que pulhice foi esta? Porque não me chamaram? E agora ainda tenho de pedir à tia que me deixe ficar para amanhã, a ver se descubro onde e quem me desactive de vez.

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Deixo algumas fotografias da viagem de Aldeia Formosa para Bissau, com paragem em Catió. Sem o saber, estava a fotografar aquelas terras pela última vez. Não precisam legendagem.







Fotos 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13.

(continua)
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Nota do editor

Poste anterior da série de 9 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15728: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (37): De 1 a 8 de Julho de 1974

5 comentários:

JD disse...

Caro Murta,
Não vivi os acontecimentos que relatas, pelo que não posso tomar uma atitude/opinião conforme a minha emoção ao ler-te. De facto, é costume o colectivo dominar o individual, e nessa ocasião o conjunto de notícias que vos chegavam, devia exercer um grande fascínio sobre o que se passava na metrópole. Essa torrente de notícias também funcionaria como uma psico, de modo que, provavelmente, vocês já lá "não estavam". Acho isso natural, e não devem ser os milicianos a assumir responsabilidades por iniciativas alheias.
Mas o que descreves é bom exemplo do laxismo do MFA. Julga ainda que vocês tiveram muita sorte, porque se os "NT" tivessem retido o armamento, os acontecimentos poderiam ter sido bem diferentes.
E não deixo de notar uma certa insolência do PAIGC a propósito do içar e arrear da bandeira deles, pois em boa verdade foi demasiada a tolerância ou negligência na forma como actuàmos. Em Angola aconteceu um vexame que ficou registado como o "batalhão em cuecas". Provavelmente o que eu faria seria alinhar como os restantes, mas acho que não tiraria retratos com o IN.
Enfim, foram acontecimentos "revolucionários", praticamente sem rei nem roque, e o último que fechasse a porta. O teu relato é uma boa reportagem sobre os temores dos locais mais sensatos e da produção política de imberbes oficiais das FAP.
Um abraço
JD

Anónimo disse...

Caro Murta e caros Camarigos:

O homem, qualquer que ele seja, é ele e as circunstâncias. E as circunstâncias mudaram. Não me parece, à luz da razão, sustentável a defesa de uma outra atitude face a uma nova realidade - o Império tinha chegado ao fim. A partir daquele momento, quanto mais depressa o regresso melhor.

Um abraço
Carvalho de Mampatá

Cherno AB disse...

Caros amigos,

Penso que o A. Murta eh um homem corajoso e honesto que nos mostrou e relatou a situacao dos acontecimentos do periodo das treguas e da entrega apressada do territorio tal qual os viu na altura e acho que o retrato eh bastante fiel.

Na minha opiniao, a gestao catastrofica desse periodo conturbado (para as populacoes e soldados africanos que estavam do lado de Portugal e para a imagem de um certo Portugal que se pretendia mostrar aos incautos), infelizmente, confirmaram-se as palavras de Amilcar Cabral que dizia que “Portugal nao eh um pais imperialista” e em consequencia nao podia, nao teria condicoes para pretender implantar o “neo-colonialismo” nos territorios ocupados em africa, a imagem das outras potencias coloniais.

Por outro lado e, tendo em conta o que se verificou ao longo desse periodo e os resultados efemeros das negociacoes encetadas, tambem ganham vulto as palavras do Marcelo Caetano que preferia uma derrota militar a uma negociacao que, certamente, so resultaria numa capitulacao a vista.

Com um abraco amigo,

Cherno AB

Antº Rosinha disse...

"Como se as honras devidas à bandeira de um país soberano, fossem as mesmas a prestar à bandeira de um partido que, oficialmente, ainda não passava disso".

Murta, este pormenor, é bem a definição de quem era o senhor da guerra, e dono do tchon.

O tal «partido-estado» como aconteceu em quase toda a chamada África negra.

Imagine, quem queira imaginar, o que se passou em Angola com três partidos, três bandeiras, três símbolos, três hinos.

Foi um caos, coitados daqueles régulos e sobas que se a tabanca escapava do saque do primeiro, caiam debaixo das patas do segundo e depois chegava o terceiro que corria atraz do segundo para lhe roubar o o que tinham sacado na tabanca.

Os direitos adquiridos pelos senhores da guerra, incluía também a escolha e selecção de bajudas.

No caso da Guiné também havia os «galãs» que vieram do mato.

Amigo Cherno, Amílcar Cabral, conhecia bem as limitações de Portugal, e sabia que não era de Portugal que vinha o perigo.

Mas como alguns daquela geração, talvez para não perderem a embalagem daqueles ventos da história tentaram salvar-se a si, e também esses 5 PALOP's.

Enfim, já tudo passou, mas que tudo fique bem aclarado e que nunca se diga, que o exército e o governo português pactuou fosse com quem fosse, excepto com o povo e mais ninguém.

Até a 24 de Abril de 1974.

Pelo menos em Angola, era já o povo angolano que activamente estava ao lado das autoridades coloniais contra os tais 3 movimentos.

Só não adivinhavam que fosse mil vezes pior do que aquilo que veio a seguir.

Foi talvez tão mau como no vizinho ex-Congo Belga que tão bem conheciam aquela calamidade.

Cumprimentos







José Carlos Gabriel disse...

Amigo António Murta.
Mais uma vez não posso deixar de tecer alguns comentários. Quanto ao que se vestiu ou fotografou pós 25 de Abril não vou tecer mais nenhum comentário porque já disseste mais que o suficiente. Um tempo atrás já relatei alguns acontecimentos que se passaram depois desta data e entre eles o que mais me marcou foi sermos acusados que lá estava-mos só a ganhar dinheiro (provocações de alguns elementos da população). Só quem lá esteve depois desta data poderá avaliar. Também passei pelo mesmo que tu e a minha farda principal ficou na Pensão Central em Bissau e como não regressei não sei o que foi feito dela. Quanto ao restante fardamento que ficou em Nhala tenho uma vaga ideia de me terem dito que foi destruído. Agradeço ao meu camarada Vitor Tojeira me ter embalado os meus pertences pessoais e de os ter enviado para os adidos onde os fui buscar mais tarde. Quanto ao teres lá deixado o teu caixote de Whisky fui mais esperto e fui trazendo sempre algumas garrafas. Inclusive ainda mantenho hoje uma como recordação “PRESIDENT SPECIAL RESERVE DE LUXE” mas parece que ela vai bebendo sozinha porque sem ter sido aberta já baixou o nível deste belo néctar. As tuas fotos aéreas fizeram-me voltar a traz no tempo. Recordo esses voos que fiz pouco acima da copa das árvores. As vezes que vim foram sempre via Buba/Bissau e vice-versa.
Um abraço amigo.
José Carlos Gabriel