quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15760: Os nossos seres, saberes e lazeres (141): O ventre de Tomar (5) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Fevereiro de 2016:

Queridos amigos,
É comum dizer-se que as obras-primas não cansam, cada vez que as revisitamos somos alertados para nova leitura da contemplação. Assim sucede com o Convento de Cristo.
Tive um professor de História de Arte que observava que o turista que visita templos grandiosos, como S. Pedro, não se detém a ver as portas soberbas, do melhor nível escultórico, tem que ser induzido.
E quando se visita o interior e uma casa magnificente como aquela que ajudou a recuperar e viveu tão feliz o embaixador António Pinto da França, o segundo embaixador de Portugal na Guiné-Bissau, e se é guiado pela proprietária que sabe muito bem comunicar, a visita empola, e até apetece voltar, tal e tanta é a riqueza, o cuidado em resguardar os espaços íntimos e em saber expor o que se adquiriu pelas quatro partidas do mundo.
É um lugar que se confunde com os primórdios da história de Portugal, chama-se Quinta da Anunciada Velha.

Um abraço do
Mário


O ventre de Tomar (5)

Beja Santos


O turista desacautelado, após ter recebido uma descarga de alta voltagem na Charola, sai deste espaço de fascínio às arrecuas, para mirar a parede rasgada por determinação do rei Venturoso, ele pretendia um ecrã largo para deslumbrar quem chegava. O mesmo turista pode subir uma escada para o coro e daí captar a grandeza da porta multicolorida, ali só falta o som das trombetas para anunciar o paraíso na terra. E pode dar-se o caso de sair dali sem se aperceber do esplendor deste teto tardo-gótico, o que é uma pena, pode não estar rigorosamente à altura do exterior, onde se dependura a mais linda janela de Portugal, mas tem um fulgor especial, olhem bem para a elevação das paredes, harmoniosamente rasgadas, deixem-se estar uns minutos a namorar este toque gentil do que há de melhor em arquitetura.


Estamos agora no interior de uma casa prenhe de história, aqui houve conservação de memória, recuperação do passado, um bom gosto inexcedível na consagração dos lugares. Atenda-se à lareira, à pedra e aos azulejos, e depois a vista sobe até aos quadros pintados pela zona da casa, quando andou por Angola, ali estão também as armas do Conde de Tomar, a sua família por aqui passou, é narrativa longa que aqui não cabe, convém não esquecer que o Convento de Tomar, aí por 1940, foi posto em hasta pública, consta que Salazar, que por ali passeara no anonimato, compreendeu logo que se tratava de um tesouro nacional, e mandou um representante ao leilão, finda a licitação o Estado teve o direito de preferência. E ainda bem.



Aqui viveu o Embaixador António Pinto da França, delicadeza, afabilidade e cultura foram seu apanágio. Rodeou-se de invulgaridades, como estes ex-votos envolvendo o Santo do seu nome, era uma conjugação tão bela, com tal impacto cénico, foi só questão de procurar o ângulo que evitasse o excesso de luz. Ali perto, dando sinais de organização e método, ergue-se em várias salas uma biblioteca extraordinária, fixou-se esta imagem por se tratar de um recanto íntimo, tudo arrumado e aproveitado, sinal de que o proprietário lia e relia, aliás deixou uma bonita obra, injustamente nas mãos só dos conhecedores, bem merecia ter leitores aos milhões, escrita luminosa, saída de alguém que procurava tirar o partido do melhor que a gente tem.



Por inerência de funções, o Embaixador viajou muito e quando regressava trazia as suas preciosidades de vários continentes. É o caso destas figuras da Indonésia, lembram-me personagens de teatrinho, e esta máscara da vaca veio seguramente de um artista dos Bijagós, é esplendorosa, esse povo do arquipélago guineense é bom dançarino, é um povo animista e reporta a sua arte a tubarões e a vacas. Podemos encontrar máscaras como esta nos melhores museus do mundo, a arte bijagó tem uma genialidade que chama à atenção dos colecionadores mais exigentes.


Ao refazer a casa, os proprietários encontraram cacos de muitas peças, pediram ajuda a peritos em recuperação de património e vale a pena o visitante deleitar-se com este trabalho de amor, são séculos de cerâmica destas e de outras tábuas, aqui nestas prateleiras cruzam-se culturas, o proprietário ainda desejou catalogá-las mas não teve tempo. O importante é que quem visita a casa fica embevecido com este testemunho do tempo e a paixão de preservar.


Acaba a visita numa torre muito antiga, no interior há uma capela, uma singela cruz feita de pregos e esta imagem da Virgem que parece zelar no espaço austero, como se tivesse a deixar uma mensagem de que aqui viveram Frades Capuchos que rezavam a desoras, por isso se compreende a solicitude da Mãe de Deus para quem chega e se encomenda num espaço que há quem diga que é território mágico, o que é possível já que é comum comentar-se que é há uma atmosfera mística em Tomar e nos vários espaços onde evola o sentimento templário. Verdade ou patranha, para o caso não interessa, neste espaço, asseguro-vos, há uma atmosfera consagrada.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 10 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15732: Os nossos seres, saberes e lazeres (140): O ventre de Tomar (4) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: