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quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27362: Humor de caserna (217): O jovem alferes graduado capelão, cheio de sangue na guelra, que queria ensinar o padre nosso ao...Vigário (Fernandino Vigário, ex-sold cond auto, CCS/BCAÇ 1911, Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmemet, 1967/69)



Guiné > Região do Cacheu Teixeira Pinto (?)  CCS / BCAÇ 1911 (1967/69) O sold cond auto Fernandino Vigário, no seu jipe


Se

Guiné >  Bissau > Café Bento / 5ª Rep (?) > s/d (c. 1967/69) >  "
Malta amiga, maiatos, num café de Bissau: a partir da esquerda:  (i) 1.º cabo op cripto/QG Domingos; (ii) Sousa, da CCAÇ 1743; (iii)  um militar náo identificado; (iv)  1.º cabo escriturário/QG;  e (v) eu, Fernandino Vigário
 



1. O Fernandino Vigário foi soldado condutor auto,  CCS / BCAÇ 1911 (Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete, mai 1967/ mai 69); é membro da Tabanca Grande desde 
112/12/2011; é autor da série "As Minhas Memórias" (de que infelizmente só se publicaram dois postes); é maiato, natural e residente em Nogueira da Maia, cidade da Maia, distrito do Porto.

Tem muita a honra no seu apelido, Vigário. E já aqui publicámos , em 2012, uma história divertida, que se passou com um alferes graduado capelão, num domingo, em que ele foi dizer missa a Safim e outros destacamentos do setor de Bissau, onde havia pelotões do BCAÇ 1911. O Vigário foi destacado para levar o capelão.

 Em mensagem enviada do nosso coeditor Carlos Vinhal, com data de  2 de janeiro de 2012, o Vigário deu os seguintes elementos importantes para se perceber o texto e o contexto:

(...) Aproveito para enviar uma história passada comigo e um alferes capelão que, creio, estava no QG/,CTIG, não sei o seu nome nem o conhecia. 

Entre missas e funerais eu conheci vários, havia um que, se não estou em erro, com o posto de tenente,  corpo franzino mas espírito de oficial militar, não dava grande confiança aos soldados.

Vai também duas fotos, uma sou eu no jipe, a outra sou eu mais três amigos e vizinhos da Maia que estavam no QG. O outro elemento não faço a mínima ideia quem seja. (...)

A história passa-se no 1º semestre de 1969, talvez no final do 1º trimestre / princípio do 2º trimestre. O Vigário regressa  à metrtópole, com o seu batalhão, em maio de 1969, juntamente com o capeláo, Abel Gonçalves, que ele conhecia. Por exclusão de partes, o protagionista da história não podia ser o padre Abel Gonçalves, já falecido (em 2019),   figura popular entre o pessoal do  BCAÇ 1911. 

Nessa altura, o capelão-chefe, que estava no QG/CTIG, em Santa Lusia. seria o padre Manuel Joaquim da Silva Capitão (17/1/1968 - 3/3/1970) que veio render o padre Bártolo Paiva Pereira (1966/68) (*).

Mas não é relevante tentar descobrir quem terá sido o "jovem alferes capelão", cheio de sangue na guelra, que queria dar uma lição ... ao Vigário. É mais uma história brejeira que fica bem na série "Humor de caserna" (**).



Um Alferes Capelão que queria ensinar o Padre Nosso...  ao Vigário

por Fernandino Vigário


Estou de volta, e às voltas com a minha memória: como não tenho nada escrito,  vou tentar reconstituir uma história passada comigo e um alferes capelão. Hesitei se a devo contar ou não, mas resolvi contar,  nem que seja para ficar em arquivo.

Eu, Fernandino Vigário, ex-soldado condutor auto, estava em Bissau no quartel conhecido por "600". Já no fim da comissão, numa manhã de domingo (não me recorda a data, mas deve ter sido num dos primeiros meses de 1969), fui escalado para transportar um alferes capelão, ainda bastante jovem,  a três ou quatro destacamentos limítrofes de Bissau, Safim e outros, onde estavam destacados Pelotões de Companhias do meu BCAÇ 1911.

Transportar um capelão, para ir celebrar a Eucaristia aos ditos destacamentos, foi serviço que eu fiz várias vezes, e nem sempre foi o mesmo. 

O que aconteceu nesse domingo com um bastante jovem, devia ter a minha idade ou pouco mais, que eu não o conhecia, nem nunca soube o nome porque só fiz um único serviço com ele.

Nesse domingo de manhã, depois de darmos os bons dias e trocarmos algumas palavras de circunstância, iniciámos a viagem que nos iria levar aos ditos destacamentos. 

O capelão, além de jovem, era simpático e extrovertido, falava pelos cotovelos, e para espanto meu, ainda na estrada de Santa  Luzia,  ao cruzarmos com uma mulher ainda jovem, cabo-verdiana, por sinal bem jeitosa, atira a seguinte frase:

 
−  Ena,  pá! Que gaja boa. Uff, que brasa!

Percorridas mais umas dezenas de metros, e de novo ao avistar outra mulher cabo-verdiana, repete os comentários. Eu, perante este cenário e vindo de um padre, olhei-o de soslaio, meio petrificado e a pensar no que é que viria a seguir. Seria aquilo verdade?

Como eu falava pouco, na verdade sou um pouco introvertido e reservado, havia também a hierarquia, alferes e soldado, a separar-nos, o capelão resolve puxar por mim.

−  Então, condutor, não dizes nada, o gato comeu-te a língua ?!... Pra começar diz-me lá o teu nome?!

− Fernandino Vigário, meu Capelão, mas todos me tratam por Vigário.

−  Vigário? Oh, pá, mas és Vigário ou és vigarista?!

Hesitei um pouco, mas logo respondi:

−  Meu Capelão, eu sou Vigário de nome, mas sei que há por aí uns Vigários com obras feitas. Olhe, alguns até vieram parar a Bissau.

−  Pois é, condutor, para quem falava pouco já estás a falar de mais, eu vou ter que te ensinar o Pai-Nosso.

Tive que me fazer um pouco palonço, não senti a rigidez militar e respondi:

−  Meu Capelão, não é necessário! Eu na minha parvónia aprendi a Doutrina toda, foi o meu pai que me ensinou. Até fiz a comunhão solene!

−  O teu pai ensinou-te a Doutrina mas foi às avessas, agora quem te vai ensinar sou eu.

−  Meu Capelão, peço desculpa se o ofendi, mas não vejo onde o tenha feito, e longe de mim ofender quem quer que seja.

−  Bem condutor, aceito as tuas desculpas e não se fala mais nisso, afinal hoje é Domingo, é o dia do Senhor, e de ouvir a Santa missa.

PS - Sou católico praticante, e nada me move contra a igreja e os padres, antes pelo contrário, porque sempre os respeitei e,  ao contar esta história, não pretendo denegrir nem esta, nem os padres, e estou convicto que aquele jovem capelão tenha dado um bom padre, para mim aqueles comentários sobre mulheres eram fruto da sua juventude.

(Revisão/ fixação de texto, título: CV / L G)

 
2. Comentário do editor LG:

Fernandino, uma corrida de jipe, a caminho da missa, não dá para se ter grandes conversas e conhecer em profundidade as pessoas, muito menos um capelão (que é antes de tudo... um senhor oficial, militar, fardado, homem...). Havia, nessa época, uma atitude algo reverencial mas também ambivalente, para não dizer,  hipócrita,  em relação ao clero. 

Mas achei interessante as tuas observações e o teu humor, brincando com o teu apelido, Vigário...

"Ensinar o Padre Nosso ao Vigário" é , afinal, um dos  muitos, nossos, fabulosos provérbios populares... Tem muito que se lhe diga... Acho que se podem fazer várias leituras da tua pequena história...Mas deixemos isso aos leitores.

 O provérbio popular "Ensinar o padre nosso ao Vigário" significa tentar ensinar algo a alguém que já é "catedrático na matéria", tem autoridade, é especialista, sabe muito do assunto.

É usado, pois,  para descrever uma situação em que uma pessoa, muitas vezes com menos experiência, traquejo ou conhecimento, presume instruir outra que tem muito mais  autoridade na matéria em questão.

Neste caso, não é preciso recordar que o "Padre Nosso" (ou o Pai Nosso) é a oração mais básica e elementar do cristianismo, todo a gente a sabe de cor, do tempo da catequese (aqueles que foram batisados e andaram na catequese). 

O Vigário (padre adjunto a um pároco, "substituto do prior", do latim "vicarius", "aquele que age em lugar de outro"), sendo  um sacerdote católico, tem a obrigaçáo saber e ensinar o "padre nosso".  Portanto, tentar "ensinar o padre nosso ao vigário"  é uma ação completamente desnecessária, despropositada, redundante e até presunçosa.

A expressão é usada coloquialmente,   de forma crítica ou humorística, quando alguém está a dar conselhos óbvios ou a tentar explicar algo a quem claramente domina o tema. Em suma, é também uma crítica ironica à presunção ou ingenuidade de  tentar ensinar algo a quem já é mestre ou perito no assunto.

 Expressões equivalentes: "Ensinar a missa ao padre.", "Querer ensinar o peixe a nadar"; "Ensinar o gato a caçar ratos"; "Ensinar o pescador a pescar"; "Descobrir a pólvora".

PS - Vígário também pode querer dizer, no Brasil e nalgumas regiões de Portugal," a pessoa que mostra manha ou esperteza para enganar outrem" (vd. a expressão "conto-do-vigário").  A nossa língua é tramada, Fernandino ( e não Fernandinho)...

________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 17 de setembro de 2018 > Guiné 61/74 - P19023: Os nossos capelães militares (9): segundo os dados disponíveis, serviram no CTIG 113 capelães, 90% pertenciam ao Exército, e eram na sua grande maioria oriundos do clero secular ou diocesano. Houve ainda 7 franciscanos, 3 jesuitas, 2 salesianos e 1 dominicano.

domingo, 26 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27354: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXVIII: nem todas as histórias têm um final feliz: a fábula da cabra Joana de Nhacobá e do cão rafeiro Tigre do Cumbijã

Guiné > Zona Sul > Região de Cumbijã > Cumbijã > BCAV 8531, 1972/74) > O destacamento (ou melhor..."acampamento") do Cumbijã.
Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > CCAV 8531 (Cumbijã, 1972/74) > Tabanca de Nhacobá, até então considerada "área libertada do PAIGC", ocupada num “golpe de mão” pela CCAV 8351 no dia 17 de maio 1973 no decurso da operação Balanço Final (17 a 23 maio 1973). Na foto, o Joaquim Costa. A cabra Joana era natural daqui, foi um dos "despojos de guerra", levados para o Cumbijã. A aldeia foi arrasada pelos "bulldozers" da engenharia militar e a população realojada num reordenamento.



Gondomar > Biblioteca Municipal > 9 de novembro de 2024 > Sessão de apresentação do livro "Crónicas de Paz e Guerra" ( Rio Tinto, Lugar da Palavra Editora, 2024, 221 pp.)

Três Tigres do Cumbijã: oo centro, o Joaquim Costa; à esquerda, o João Melo, ex-1º cabo cripto, das CCAV 8351 (Cumbijá, 1973/74); à direita, o Mendes (que veio de propósito da zona onde vive, na Serra da Estrela); um quarto Tigre, o Gouveia, não ficou nesta foto...


Fotos (e legendas) © Joaquim Costa (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


*
O "Tigre" Joaquim Costa
1. O Joaquim Costa Joaquim Costa, minhoto de V. N. Famalicão, conterrâneo da nossa senhora enfermeira pqdt Rosa Serra,  vive em Fânzeres, Gondamar, perto da Tabanca dos Melros. É engenheiro técnico reformado.

 Foi também professor do ensino secundário (os últimos 20 anos em Gondomar, como diretor escolar). Na outra "incarnação" foi Fur Mil Armas Pesadas de Inf da CCAV 8351/72, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74). 

É autor da notável série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã" (que, em grande parte, já saiu em dois  livros com a suas memorias, um em 2022 e outro em 2024).

A história da cabra Joana já foi aqui publicada no nosso blogue. Deu origem até a vários "passatempos de verão", com o pessoal  escrever sobre esta "fábula" ( que, segundo o dicionário, é uma composição literária, em verso ou em prosa, geralmente com personagens de animais, com características humanas, e em que se narra um facto cuja verdade moral se oculta sob o véu da ficção).

A fábula da cabra Joana e do cão rafeiro Tigre do Cumbijá é afinal uma metáfora sobre aquela "drôle de guerre", uma expressão francessa intraduzível (a não ser com muitas explicações...), que a foi a nossa, que afinal não foi bem a nossa: 

  • Portugal não estava oficialmente em guerra contra nenhum outro Estado soberano ou potência estrangeira;
  • não cortou relações diplomáticas com ninguém (nem com Cuba que mandou cubanos poara a Guiné para dar uma "ajudinha internacionalista" ao senhor engenheiro!);
  • uns diziam que lutávamos contra o "terrorismo", outros proclamavam que estávamos ali a "defender a civilização cristã e ocidental";
  • outros ainda, mais cínicos e calculistas, desvalorizavam aquela "drôle de guerre", chamando-a "guerra de baixa intensidade...

 Para mim, que também a fiz, foi uma "merda de guerra", em que no fim todos perderam: voltando à fábula, não houve vencedores nem vencidos, mas perdedores, incluindo a cabra Joana e o cão rafeiro chamado Tigre do Cumbijã...

Saiu, entretanto, uma nova versão da história da cabra Joana, da autoria do Joaquim Costa, agora, inserida numa coletânea de poemas e contos "Anjos da Prosa e da Poesia: Volume V (Rio Tinto, Lugar da Palavra, 2025).

O autor mandou-ma em 4/10/2025, com a seguinte mensagem: "Porque hoje é dia do animal, resolvi lembrar a cabra Joana nascida e criada em Nhacobá e levada compulsivamente para Cumbijã. Este conto foi publicado numa coletânea sobre prosa e poesia."

Recorde-se o contexto: a cabra Joana de Nhacobá foi apanhada pelo pessoal da CCAV 8351, justamente em Nhacobá, tabanca até então controlada pelo PAIGC, no "corredor de Guileje", no decurso da Op Balanço Final (17-23 de maio de 1973). Nhacobá era um lugar de importância estratégica para ambos os contendores. Foi levada, a Joana, para Cumbijã, sendo obrigada a coexistir, pacificamente, com o cão rafeiro, o Tigre de Cumbijã, mascote do pessoal. 

Estive hesitante em publicar esta versão na série "Humor de Caserna", mas achei, por fim, que ficaria melhor  a dar continuidade  à série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã", do Joaquim Costa...



Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 > O encontro, não muito amistoso, da cabra Joana que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanço Final, com o “rei” do destacamento do Cumbijã,  o cão rafeiro Tigre... Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo. Foto: cortesia do Carlos Machado.


Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

A cabra Joana

por Joaquim Costa


Era uma vez duas famílias que viviam numa terra distante, de uma beleza que se entranhava no corpo e na alma como o pó vermelho das suas picadas.

Aqui viviam, desavindas, ao que parece, por causa de uma bandeira.

Uma era a família IN, que vivia numa bonita bolanha, nas margens de um bucólico rio, com grandes plantações de arroz e lindas palmeiras, de seu nome Nhacobá.

A outra era a família Tigre, que vivia todos os dias com os olhos e a alma bem longe dali, que habitava uma aldeia próxima, que ela própria construiu, de seu nome Cumbijã, que odiou e... quase amou.

Os arrufos entre estas duas famílias eram constantes, com investidas ousadas a casa uns do outros, tentando a sua expulsão da região.

Entretidos nestes arrufos, os senhores da guerra (especialistas do pionés no mapa), decidiram (sem consultar ninguém, ) que os Tigres investiriam em força sobre a família IN, impondo a sua lei.

Assim foi, mas com perdas irreparáveis e inocentes de um lado e do outro.

Como era habitual, nas operações de alto risco, quase todos os soldados beijavam, à saída, o seu amuleto da sorte (o seu Anjo da Guarda): a foto da namorada ou dos pais, da(s) madrinha(s) de guerra, um santo devoto, uma folha arrancada à revista inglesa Penthouse e outros o seu inseparável mapa (mapa operações pontos de artilharia), que guardavam num dos bolsos do camuflado mais perto do coração.

Como é comum, desde os primórdios, quem vence tem direito aos despojos, neste caso: arroz, cigarros, fósforos cubanos e livros escolares (impressos na Suécia) com mensagens estilo Estado Novo (mas cujos heróis eram outros) e... uma cabra que chamou a atenção pela coragem demonstrada na defesa da sua aldeia, levantando as suas patas aos invasores e  mostrando assim a sua indignação.

Esta irredutível cabra, como passou a fazer parte do despojos, acompanhou os Tigres de volta a casa.

Aqui quem reinava era o cão rafeiro Tigre, pelo que, no dia da chegada a cabra foi apresentada ao rei. Não foi um encontro fácil e só não se chegou a vias de facto dada a pronta atuação da guarda pretoriana.

Esta irredutível cabra, pela sua coragem e ousadia, ganhou a simpatia de toda a população, ou quase, já que em todo o rebanho há sempre a sua ovelha ronhosa!

Tinha esta irreverente cabra, a quem foi dado o nome de Joana, cinco predadores na aldeia:

  • o rei Tigre que nunca aceitou partilhar o protagonismo com este estranho animal, contudo, neste caso, não se sabia quem era o predador de quem;
  • o vagomestre, que tratava dos comes & bebes, que fitava a Joana com os olhos vermelhos de quem já a está a ver a ser esfolada e transformada em estilhaços de carne (coisa rara na aldeia) para o arroz;
  • os três agricultores improváveis do Cumbijã que, fartos de ração de combate, construíram hortinhas em pleno teatro de guerra. 

A cabra Joana, tal como a burra no Alentejo, não resistia às viçosas alfaces, saltando a cerca das três hortinhas, lambuzando-se com a frescura das mesmas, com a compreensível indignação dos proprietários das plantações.

Na defesa da Joana passou a haver, 24 sobre 24 horas, um guarda-costas, armado de G3 com bala na câmara.

Só assim é que a mesma resistiu até ao dia em que os Tigres abandonaram a sua casa, no Cumbijã, a caminho do Bissau, para apanhar o avião que os levaria finalmente à sua terra de origem. 

Todos, sem exceção, verteram uma lágrima, já com saudades da cabra Joana e do cão Tigre. Comove-me saber que uma e outro, provavelmente, também deixaram cair uma lágrima... salgada!

De um momento para o outro, sem que ninguém o decretasse, cessaram as hostilidades e as duas famílias promoverem festas conjuntas trocando prendas e abraços. Parecia que da noite para o dia o mundo tinha virado do avesso. Prova que a guerra não é solução para nada. Se quem a decreta fosse obrigado a combater nas linhas da frente, o mundo viveria eternamente em paz.

Estas maravilhosas criaturas, sempre que um grupo saía para o mato saltavam alegres e divertidas como desejando boa sorte. No regresso logo corriam para o cavalo de frisa (a porta de entrada) entusiasmadas com a sua chegada.

No dia em que definitivamente os Tigres abandonaram o Cumbijã, assistiram em silêncio a todo o seu frenesim e entusiasmo, como pressentindo o que estava para acontecer. Ao saírem do cavalo de frisa (agora porta de saída)  em grande algazarra, estas ficaram imóveis, com o cão Tigre produzindo um ruído que parecia de choro e a cabra Joana  levantando ligeiramente uma pata, vendo-nos desaparecer por entre a nuvem de pó vermelho da picada, como que dizendo: "E nós?"...

Não se sabe o que aconteceu depois, mas teme-se que esta história, pelos relatos que foram chegando, não teve um final feliz...

Ao que parece, nem os macacos se salvaram!..

In: Anjos da prosa e da poesia. Vol. V / Adelina Santos... [et al.] ; coord. Ana Maria Bessa, João Carlos Brito. - 1ª ed. - Rio Tinto : Lugar da Palavra, 2025. - 144 p. ; 23 cm. - ISBN 978-989-731-226-7, pág. 100.

(Revisão / fixação de texto: LG)





 Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cumbijã > Maio de 2025 > Três vistas aéreas da atual tabanca 


Fotos (e legenda) © João de Melo  (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

sábado, 25 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27351: Humor de caserna (216): BA 12, Bissalanca: os tomates... da horta do capelão: uma história pícara que mete a nossa querida enfermeira pqdt Giselda e o seu "olheiro" na BA 12, o ex-ten pilav Miguel Pessoa... Um pequena homenagem póstuma ao major capelão Abel Gonçalves (1931-2019), que foi chefe do serviço de assistência religiosa da FAP.




Padre Abel Gonçalves (Cinfáes, 1931 - Porto, 2019),
major capelão reformado. Fez duas comissões na Guiné 
(BCAÇ 1911, Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete, 1967/69). 
E depois na BA 12, Bissalanca (1970/74).



O capelão Abel Gonçalves, na Guiné, vestido com um traje tradicional masculino, o "bubu".
Fonte: cortesia de Bártolo Paiva Pereira - "O capelão militar na guerra colonial"
(Edição de autor, Vila do Conde, 2025), pág. 54.

Escreveu o padre Bártolo Paiva Pereira, seu superior hierárquico, que o capelão Abel não era "um militar rígido, sisudo"...  Era "uma capelão disponível, com 'cara de homem'. Foi assim que o conheci e com ele partilhei uma comissão de serviço na Guiné" (pág. 54)...E mais: "Não é no quadro da guerra  que o padre Abel se purifica. Mas no convívio solto e amigo com as  populações da Guiné,  que faz a sua catarse. Confessa que também aprendeu muito no convívio com os seus militares, a quem rende justa homenagem" (pág. 53).

 

Guiné> Bissalanca > BA 12 > s/d (c. 1972/74) > Uma enfermeira paraquedista, colhendo limões diretamente do limoeiro. Foto gentilmente cedida por Miguel Pessoa.. [Ele próprio acabou, em comentário ao poste P4065 (*) por identificar a enfermeira, que de resto é uma das protagonistas da história que se conta a seguir: a Giselda, Antunes, de solteira, Pessoa, de casada]

Foto (e legenda): © Miguel Pessoa (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


1. Mensagem,  a seguir, do Miguel Pessoa (ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje cor pilav ref, casado com a Giselda (nenhum deles precisa de apresentações, porque são justamente o casal mais mediático da guerra da Guiné e, mais do que isso, o casal mais "strelado" do mundo: se vivessem nos EUA e tivessem feito a guerra do Vietname, já estariam há  muito no Guiness):


Data - 21 mar 2009

Luís:

(...) envio-te este texto ligeirinho, um pouco "revisteiro",  que, na minha ótica, embora não sendo escrito por nenhuma delas, me foi contado por uma das intervenientes, pelo que penso que talvez possas incluí-lo na série "As Nossas Queridas Enfermeiras Paraquedistas". 

(...) Embora eu goste de escolher os títulos dos meus textos, deixo ao teu critério a escolha do título para este trabalho, por recear que possa ser mal aceite aquele que eu escolhi.(,,,) (*)


Humor de caserna >  BA 12, Bissalanca: Os tomates... da horta do capelão

por Miguel Pessoa


No meu tempo na Guiné, os tomates do capelão da BA12 eram muito cobiçados, muito por culpa das nossas enfermeiras paraquedistas que, sempre que podiam, faziam uma colheita na horta que o padre A... mantinha junto à igreja da Base.

Era generalizada a opinião, entre quem deles se servia, de que os tomates do nosso capelão, embora pequenos, eram sumarentos e saborosos e enriqueciam qualquer salada. E sabe-se o gosto que o pessoal tinha por tudo o que lhe lembrasse a metrópole. E era vê-los a "deitar abaixo" uma saladinha feita com tomates fresquinhos, acabadinhos de apanhar...

É claro que o padre A... calculava perfeitamente quem eram os malandros (neste caso as malandras...) que lhe andavam a "derreter" a fruta, mas pactuava simpaticamente com a situação, dado ser por uma boa causa.

Mas não se ficava pelos tomates a razia que as enfermeiras paraquedistas faziam na fruta da base. Para além da fruta que iam comprando ao responsável pela horta da Base, lá iam marchando de vez em quando uns limões, uma papaia, que o pessoal a alimentar era muito e de bom apetite.

Nem o cajueiro do Comandante escapava (do Comandante é um modo de dizer, que estava junto ao comando da Base), sendo que, um dia, havendo uma escada à mão, duas enfermeiras (de que não vou referir os nomes...) resolveram atacar o dito cujo. 

Estavam elas neste preparo, penduradas nos ramos altos, quando passa o Comandante da Base, com o seu séquito.

O facto é que o Comandante não reconheceu "as intrusas", pois se viam apenas as calças do camuflado, pelo que invectivou energicamente as duas "delinquentes", julgando que eram soldados da Polícia Aérea; e as duas no topo da árvore também não reconheceram a voz do Comandante, pelo que reagiram verbalmente em termos que não vou reproduzir aqui...

Tendo as partes procedido à identificação mútua, o incidente acabou por ficar sanado, pese embora o Comandante tenha prosseguido a sua viagem resmungando contra a lata daquele pessoal, sublinhado por um sorriso complacente dos militares que o acompanhavam.

Miguel Pessoa


2. Comentário do editor LG:

Miguel:  esta tua historieta pícara já "tem barbas", foi publicada por nós há 16 anos (!) (*)...

Como eu  te disse na altura ao telefone,  nada como o humor de caserna, coisa que é muito própria, específica, única, como a própria expressão indica, da malta da tropa...(**)

O humor (talvez mais do que a sorte) é que protege os audazes... Que me perdoem os nossos camaradas dos comandos, se lhes estou a glosar a divisa Audaces fortuna juvat [A sorte protege os audazes]...

O humor (temperado q.b.) era, na Guiné, na BA 12 ou em Bambadinca, o nosso talismã, a nossa mezinha, o nosso amuleto mágico, o nosso cinto de segurança, o nosso cordão detonante, a nossa "droga"... contra as balas de amigos e inimigos, contra a costureirinha, contra a Kalash, contra o RPG, contra o Strela (ainda não o havia no meu tempo, sou mais velhinho do que tu...), contra o tédio, contra o desânimo, contra o medo, contra a desesperança dos dias, contra as abelhas, contra os mosquitos, contra o cozinheiro, contra o vagomestre, contra o sargento, contra o RDM, contra o capitão, contra o comandante, contra o Com-Chefe, contra Deus e o Diabo...

O género, que tu cultivas tão bem, neste e noutros teus textos bem humoarados, não é fácil, é preciso muito talento para não se cair na grosseria, na boçalidade, na alarvice, registos com que muitas vezes, mas injustamente, se confunde o humor de caserna...

Em suma, não é para todos, o humor de casetna enquanto género literário, é para ti, é para o Alberto Branquinho, é para o José Ferreira da Silva, era para o "alfero Cabral", e poucos mais...

De facto, grande cultivador deste género era  o nosso saudoso Jorge Cabral (1943-2021) a quem nunca, por nunca, ouvi dizer um palavrão, tanto lá como cá.  

Tudo isto para te dizer que os tomates da horta do capelão, surripiados pelas nossas queridas enfermeiras paraquedistas, continuam a ser  uma história de cinco estrelas, que merece ser republicada (os "periquitos" nunca a leram...) e  figurar numa próxima antologia do nosso humor de caserna...

 Obrigado, a ti e à tua transmontana.

Um pretexto também para a sua reedição é o facto de eu ter  identificado o teu/vosso capelão: na época era o Abel Gonçalves. 

De facto, esteve 4 anos na BA 12 (de agosto de 1970 a agosto de 1974). Fez duas comissões no CTIG como capelão (a primeira no exército, em 1967/69). Publicou o  livro "Catarase" (edição de autor, 2007). Tem meia dúzia de referèncias no nosso blogue.  

Diz dele o nosso crítico literário, Beja Santos:     

"O então alferes capelão Abel Gonçalves gosta do pícaro, e não esconde certos embaraços por que passou. O caso do banho, nuzinho diante de todos, ele que estava marcado pelo seminário, onde não podiam tirar as calças, senão debaixo da roupa da cama.

Um dos alferes comete a brejeirice, diz-lhe: "Sabes o que estavam os soldados a dizer? Que viram os limões ao capelão!”.

Não ficou sem resposta: “É para que fiquem a saber que os capelães também têm dessa fruta!”. (...)



Infelizmente o Pe. Abel Gonçalbes já morreu, em 1 de abril de 2019, aos 87 anos. Era natural de Pias, conselho de Cinfães, distrito de Viseu. nasceu no dia 1 de novembro de 1931 e foi ordenado Padre no dia 15 de agosto de 1958.

Foi capelão do Exército, acabando por ser transferido para a Força Aérea Portuguesa em 24 de novembro de 1969. Era major, esteve na Chefia do Serviço de Assistência Religiosa da FAP. passou à reforma em 14 de agosto de 1981 (Fonte: Ordinariato Castrense).

Miguel e Giselda, não sei se o padre Abel Gonçalves chegou a ler esta história. Ele devia conhecer o nosso blogue, através do Beja Santos. De qualquer, a sua republicação é também uma homenagem a ele e  a todos os nossos capelães que passaram pelo CTIG: 113 no total, 102 no exército, 7 na FAP e 4 na Marinha.

Que Deus, Alá e os bons irãs o tenham em bom descanso, lá o assento etéreo para onde vão as nossas almas, dizem os crentes.
(**) Último poste da série > 12 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27311: Humor de caserna (215): A minha... G3trudes: uma peça em 3 atos e um final feliz (José Teixeira, CCAÇ 2381, ex-1º cabo aux enf, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá , Empada, 1968/70)

quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27340: A nossa guerra em números (42): com um "per diem" (verba de alimentação diária) de 24$50 (hoje 4,10 euros) dava para fazer uma... ometela simples mas saborosa!



Cartum: O "per diem"

Fonte: LG + ChatGPT (imagem gerada pela IA, 
sob instruções de LG)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



1. Recorde-se que cada militar, do soldado ao general, tinha direito no nosso tempo, no CTIG,  a um "per diem" de 24$50 (=4,10 €, a preços de hoje). Para se alimentar.

O Estado pagava a "ração diária" dos seus soldados  em géneros. 

Nunca vi isso escrito em parte nenhuma, o valor da verba para a alimentação diária. Nem com a ajuda da "Sabe-Tudo"... Mas recordo-me que, no meu tempo (1969/71), um soldado da CCAÇ 12, do recrutamento local, uma praça de 2ª classe (!) ganhava 600 escudos por mês, mais o tal "per diem" de 24$50. 

Por ser "desarranchado": os nossos camaradas guineenses comiam a sua "bianda" na tabanca  (havia duas em Bambadinca, uma a mais antiga, entre o quartel e o rio Geba; e outra, um reordenamento, a oeste,  a Bambadincazinho; ou seja, eles viviam com as suas famílias fora do perímetro de arame farpado...). 

Quando iam para o mato, em operações, também não tinham direito a ração de combate, por serem "desarranchados":  levavam um lenço atado com um mão  cheia de arroz cozido e nozes de cola para aliviar a fome e a sede... 

De resto, o exército (ou o serviço de intendência) não tinha rações de combate para os soldados portugueses muçulmanos (pelo menos no meu tempo). 

Em suma, um soldado guineense de 2ª classe recebia em média 1300 escudos ("pesos"), o que para um tabanqueiro guineense era "manga de patacão" naquele tempo.  Era quanto ganhava um 1º cabo de transmissões, metropolitano.

 Vejamos: 1300$00 em 1969 seria equivalente a 466,00 euros, a preços de hoje, dava para comprar dois sacos de arroz, 200 kg, na loja do Rendeiro, em Bambadinca, e ter duas mulheres.

O vagomestre com esses 24$50 do "per diem" (não sei se a tropa usava esat expressão latina, que quer dizer "por dia"...)  tinha que nos dar de comer e beber,  a nós, metropolitanos:  pequeno-almoço, almoço e jantar.  Não havia lanche nem ceia... 

Os petiscos, o leitão, o cabrito, o vinho verde,  a cerveja,   o uísque, etc.,  isso era tudo por conta do "freguês". A tropa não pagava esses luxos.  "Tainadas e berlaitadas  o nosso primeiro  que não pagava" (dizia, com graça, o nosso 2o. sargento, o saudoso José Manuel Rosado Piça, a exercer funções de primeiro).

Parece que também tínhamos direito a uma dose....de bagaço.  Mas eu nunca o vi nem o cheirei em parte nenhuma.

Em 17 de junho de 1974, na CCS/BART 6523/73 (Nova Lamego, 1973/74), segundo a relação dos víveres existentes (*), o "per diem" dava para "comprar" o equivalente a uma dúzia... de ovos (=24$30) (importados da metrópole, custavam tanto como uma garrafa de vinho verde de marca!)...

Era, pois, um luxo fazer uma generosa omeleta (que tinha que dar.... para  3 refeições)!...Já não dava para juntar umas rodelas de chouriço (1 kg = 64$80,  ou 10,85 euros, a preços de hoje).

E se quisesses beber um copo ? Quanto representava a tua ração diára de vinho no "per diem" ?

2. Façamos as contas:

(i) tinhas direito a dois copos de vinho por dia (tinto, mais frequentemente, branco às vezes, e oxidado), o equivalente a 0,25 dl em junho de 1974;

(ii) valor, de resto, que ainda está por confirmar: um ano depois, a ração diária de vinho, em Lisboa, era de 0,40 l, para qualquer militar dos 3 ramos das Forças Armadas); (**)

(iii) o preço de um litro de vinho, em Nova Lamego, era de 11$60 (o equivalente hoje a 1,94 euros);

(iv) o quarto de litro ficava, portanto, por 2$90 (=0,485 euros);

(v) se considerarmos o valor mais provável da ração diária de vinho,  no ultramar, no fim da guerra, que seria os 0,4 l (1 copo de 2 dl  a cada refeição principal), terias gasto 4$60 do teu "per diem"  (à volta de um 1 euro, sobravam-te 3,1 euros para o conduto...).

3. Não te assustes: em 1969/71, a verba para a alimentação diária da rapaziada do Exércita  já era insuficiente...No relatório anual do Comando-Chefe referente a 1971 já se pede a atualização da verba de alimentação diária para os 33$00 (!). Claro, no Terreiro do Paço devem ter-lhe feito orelhas moucas ou mandado apertar o cinto.

Com certeza que o gen António  Spínola não estava a fazer "humor de caserna", como nós aqui, no blogue...

De facto, a inflação , galopante, desde o início da década de 1970 (e que se vai agravar em finais de 1973) (**), já estava a baralhar as  contas do vagomestre, do 1º sargento, do capitão e por ai fora até ao  governador e comandante-chefe ,o gen António Spínola,  em Bissau,  e no topo da cadeia o ministro das Finanças, em Lisboa (que já ninguém sabe quem era) ... 

Pois é,  camaradas, é a economia (e o moral das tropas...) que faz ganhar ou perder guerras... É como na política, "o pão e o circo" é que fazem ganhar ou perder eleições...

E tu, camarada Zé Saúde (que foste vagomestre por um mês, se bem percebi) (***), com um "per diem" de 24$50, já lerpavas... em Nova Lamego, nessa altura.  De larica, galga, fomeca. (Não sabemos, nem isso agora é relevante,  se, em junho de 1974, a verba para a alimentação da tropa no CTIG ainda eram os desgraçados 24$50 diários "per capita", para o soldado e para o general, para o branco e para o preto, o "tuga" e o "nharro"...).

O que vale é que já estavas de abalada para Lisboa... (Recorde-se que o teu batalhão "comandou e coordenou a execução do plano de retracção do dispositivo e a desactivação e entrega dos aquartelamentos ao PAIGC, sucessivamente efectuadas nos subsectores de Madina Mandinga e Cabuca, em 20ag074,  e de Piche, em 29ag074", e que em 7 de setembro já estavas, em Lisboa, a caminho de Beja para comeres as tuas saudosas  migas...

Mas pergunto-te: quantas vezes passaste sede ? quantas vezes deixaste de beber a tua pinga ? e porquê ?

Nunca se davam explicações na tropa. Especulava-se: atrasou-se o barco, ou foi atacado em Mato Cão, acabou-se ou estragou-se o vinho que havia no barril de 100 litros, ou no bidão metálico de 200/210 litros, etc... (Estes bidões metálicos são do teu tempo, Zé Saúde, não são do meu, enfim "modernices" da Intendência, ou então já indícios da crise dos tanoeiros.)

E não havia Jesus Cristo para fazer milagres, ele  que não chegava para todas as encomendas e nunca parou (nem reparou) em Nova Lamego, para fazer o milagre da conversão da água em vinho e da multiplicação dos pães!...

Mas alguém terá ficado no bolso com os teus tostões, os teus cêntimos, do teu mísero "per diem"... 

4. Sabemos que a 3ª Cart / BART 6523 tinha, em 18/6/1974, na despensa da CCS, à sua guarda,  um stock de vinho na ordem dos 1145 litros... Se multiplicares por 11$60, dava a bonita soma de 13 contos e mais uns trocos: 13.282$00 (= 2593,00 euros, a preços de hoje).


Essa 3ª Companhia deveria ter uns 160 homens, mais coisa, menos coisa... Famintos, sequiosos...Se todos bebessem (e não houvesse coluna de reabastecimento), só teriam vinho para menos de um mês:

(i) 29 dias, se a  ração diária de vinho fosse de 0,25 l (2 copos pequenos);

(ii) 18 dias, se a ração diária fosse de 0,40 l (2 copos de 2 dl cada, como nos parece mais provável, até de acordo com o volume do copo da tropa que nos foi distribuído com o cantil).

De qualquer modo, havia apenas  vinho para menos de um mês... A menos que fosse  "batizado"... coisa que o Aníbal Silva, em Nova Sintra, desmente categoricamente. 

Enfim,  era mais um quebra-cabeças logístico:
  • tinha-se que ir buscá-lo, ao vinho,  a Bambadinca, onde havia o destacamento da Intendência mais próximo, noutra ponta da zona leste (a estrada já era alcatroada, passando por Bafatá, ao menos isso);
  • pensando em termos de recipientes, 1145 litros de vinho eram 5 bidões metálicos de 200 litros + 1 barril de 100 litros e uns tantos garrafões de 5 litros  ( parece que em 1969/71 já não se viam garrafões de 10 l)...

Aníbal Silva
Falando, por telemóvel com o Aníbal Silva, o ex-fur mil vagomestre, da  CCAV 2483 / BCAV 2867 (Nova Sintra e Tite, 1969/70), um rapaz do meu tempo, dizia-me ele que a malta, em Nova Sintra  "estafava" um barril de 100 litros em menos de 3 dias. 

Noutros sítios, a malta queixava-se que  às vezes o raio do vinho oxidava--se, envinagrava-se, estragava-se... Ou então evaporava-se, sumia-se, e ninguém sabia como... "Obra de profissionais" ? Para quê se não havia "mercado local" ou "regional" ? !... 

Não seria para revender à população,  que os de Nova Lamego, por exemplo,  não podiam beber "água de Lisboa", por serem muçulmanos... E em Nova Sintra não havia população. Muitas vezes era "pró petisco" dos "tugas" (sendo o cozinheiro sempre convidado)...

De qualquer modo, nada como falar com números ! (***). E sobretudo ouvir as histórias dos nossos tão bravos quão pacientes vagomestres, como o Aníbal Silva, que é catedrático nestas matérias...

_______________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 6 de fevereiro de 2020 > Guiné 61/74 - P20626: (Ex)citações (362): O ventre e o patacão da guerra, segundo duas preciosas listas de junho de 1974, guardadas pelo Zé Saúde... Cada um de nós tinha direito a um "per diem" de 24$50 para comer, o equivalente na época a um dúzia de ovos da Intendência (, a preços de hoje, 4,10 euros)

(**) Vd. este excerto do Relatório Anual do Cmd-Chefe das FAG, referente a 1971:

 (...) "Intendência

(i) Pessoal

A actual organização do Serviço de Intendência do CTIG é manifestamente deficiente. OS QO carecem de actualização, conforme proposta já apresentada por aquele Comando.

É premente a necessidade de montar no TO um Apoio Avançado eficiente, com níveis adequados, por forma a descentralizar o apoio logístico do serviço, descongestionando os órgãos-base. Para isso reconhece- se a necessidade, já há muito apresentada, de um reforço dos órgãos do Serviço de Intendência do CTIG.

(ii) Víveres

Ao longo do ano verificou-se uma melhoria do reabastecimento de víveres frescos às Unidades do TO pela utilização do sistema de reabastecimento aéreo com o lançamento em paraquedas.

Verificou-se também uma melhoria nos meios de frio nos órgãos-base avançados e Unidades, que permitiu que o reabastecimento de frescos às Unidades se processasse em condições mais eficientes.

(ii) Verba de alimentação

Em resultado do aumento do custo de géneros de 1a necessidade e ainda do aumento do custo dos transportes da Metrópole para a Província, tem--se vindo a agravar o custo da alimentação. Nesta conformidade e com vista a não baixar o nível de alimentação das tropas, toma-se necessário actualizar a verba diária actual para um valor da ordem dos 33$00" (...)

Fonte: Excerto de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 59. 

quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27323: O vinho... pró branco de 2ª e pró tinto de 1ª (1): o "vinho para o preto" em Lourenço Marques, a "água de Lisboa" em Bissau e a "cerveja Cuca" em Luanda...



Capa do livro do José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, 170 pp.




Esta é uma variante popular, pícara (e sem ofensa para os crentes...), da oração tradicional, rezada pelos nossos avós, há 100 anos, para pedir a benção de Deus ao deitar e ao acordar: "Com Deus me deito, com Deus me levanto, na graça de Deus e do Divino Espírito Santo"-


1. Fui desencantar este livrinho arrumado no sótão mas felizmente ainda sem estar  roído  pela traça. Lembro-me de o ter comprado, na feira do livro da Lourinhã, que eu próprio organizei, com outros jovens da terra, na "praça do coreto"... Em 1973 ! 

Não estava propriamente proibido, mas vendia-se por baixo do balcão como outros livros que corriam o risco de ser apreendidos, arbitrariamente, pela PIDE/DGS, dando um rombo nas "finanças" da organização... (Havia uma delegação a 18 km dali, em Peniche. E alguns dos pides eram mesmo burros: eram capazes de implicar com uma "bíblia protestante", como fizeram ao meu amigo Bernardino Anastácio, o meu barbeiro, que um dia foi dentro por ser "fala-barato" e do "reviralho". Revistada a barbearia e  a casa, só lhe levaram uma "bíblia protestante"...Acabou por ser solto, por falta de provas  ou indícios de ser um "perigoso comunista".)

É reconhecido hoje que este livrinho do José Capela dava já, na época, surpreendentes pistas para a compreensão das dinâmicas económicas e sociais da "nossa" África, particularmente de Moçambique.

 A guerra colonial estava ao rubro e tudo o que se escrevesse sobre as colónias (ou "províncias ultramarinas") , a sua história, a economia, a sua sociedade..., era lido com avidez. Só não se podia falar da guerra, essa, sim, tabu. Para mais, vindo de autores   "desalinhados" com o regime, como o José Capela.

Eu sabia, em 1973,  que o José Capela era  padre ou ex-padre. Mas pouco mais. Afinal é o pseudónimo de José Soares Martins (Feira, 1932–Porto, 2014), um historiador e jornalista português cuja vida e obra estão profundamente ligadas a Moçambique e à análise crítica do colonialismo português. 

Natural de Arrifana, concelho da Feira, concluiu aos 22 anos o curso de Teologia no seminário do Porto em 1954. Chegou a Moçambique  anos depois, como padre. Mas enveredou rapidamente para o jornalismo.  Foi chefe de redação e diretor-adjunto do "Diário de Moçambique", com sede na Beira, o  jornal fundado pelo primeiro bispo daquela Diocese, D. Sebastião Soares de Resende (1906-1967), e de resto seu tio. Sim, o  famoso Bispo da Beira que entrou em  rota de colisão com Salazar e o seu regime (tem mais  400  páginas o seu processo no arquivo da PIDE/DGS).

Em 1962 o José Capela  relançou naquela cidade moçambicana o semanário "Voz Africana", que dirigiu, de facto, até 1968. Este jornal teve nesse período um papel importantíssimo na consciencialização dos moçambicanos,  negros, sobretudo no que respeitava à exploração económica de que eram vítimas.

Com a morte prematura do bispo da Beira,  ficam praticamente  inviabilizados  aqueles dois projectos jornalísticos.  Por outro lado, com as crescentes pressões que as autoridades portuguesas  iam fazendo sobre vozes incómodas como a dele,  o José Capela teve de abandonar bruscamente Moçambique. Contudo, vai levar primeiro para o Brasil e depois para a Bélgica, documentação importante,  nomeadamente os escritos inéditos de D. Sebastião e a volumosa correspondência que reuniu, enviada pelos moçambicanos, negros,  para a "Voz Africana" sob a forma de "cartas ao diretor". 

Essa documentação ajudou-o a  fazer  retrato da situação social que então ali se vivia, e de que ele foi também testemunha direta. Com a censura em vigor,  não puderam ser publicadas na altura. Mas dessa correspondência, ele vai reunir uma amostra significativa  no livro "Moçambique pelo Seu Povo" (1971). Não conheço a obra (nem outras do autor sobre a história colonial de Moçambique), pelo que não vou falar dela.

 De regresso a Portugal, em 1970, fundará no Porto  o  prestigiado jornal "Voz Portucalense" . Tornou-se editor (ajudou a fundar as editoras Confronto e Afrontamento), e participou também nos "Cadernos Anticoloniais". Depois da independência de Moçambique,  serviu entre 1978 e 1996 como Adido Cultural na Embaixada de Portugal em Maputo. 

O seu livrinho  "O Vinho para o Preto" (1973)  (disponível aqui, íntegra,em formato pdf) é, pois, o único que eu conheço do José Capela. Tem como  subtítulo: "Notas e textos sobre a exportação do vinho para África".  

As notas são sucintas (c. de 30 pp.): introdução, bebidas cafreais, vinho para o ultramar. Os textos preenchem o resto do livro, são cerca de 130 páginas, constituídos por  documentação diversa dos finais do séc. XIX e princípios do séc. XX,  nomeadamente  recortes de imprensa sobre a exportação de vinho, relatórios administrativos,  regulamentos, mapas estatísticos, etc.  Seria fastidioso ver tudo isto em detalhe.
 
Do livro para já, interessa-me reter o título e fazer aqui um brincadeira, um trocadilho, para inaugurar uma nova série, onde fundamentalmente se fale dos vinhos que consumíamos na Guiné, o da Intendência  (a famosa "água de Lisboa" ) e os vinhos comerciais, de marca,  que chegavam à cantina, à messes e as restaurantes de Bissau, Bafatá e pouco mais.

Era conhecido, esse vinho que era exportado para África, pela designação pejorativa de "vinho para o preto" (termo que, de resto, já vinha de finais do séc. XIX). Tinha uma clara conotação racista.  Mas também era bebido pelo branco, a que chamávamos de segunda. Na época os colonos de África não eram propriamente a "fina flor da Nação"... 

O ponto central da argumentação do José Capela é que o "vinho para o preto" não era apenas um produto de exportação; ele tipificava e espelhava toda uma situação global de relações económicas coloniais, tendo  servido como um mecanismo de exploração e controlo da população africana.

A exportação deste vinho, muitas vezes de qualidade inferior (quando não mesmo uma "mixórdia") era crucial para absorver o excedente da produção vinícola portuguesa (então em crise), beneficiando com isso sobretudo a burguesia mercantil do Porto e a economia metropolitana. 

O livro enquadra esta prática nas transformações por que estava a passar a economia  portuguesa, com o desenvolvimento do capitalismo industrial.

O vinho colonial tornou-se um dos principais mecanismos de extração indireta de riqueza da população africana. O dinheiro que os trabalhadores africanos, nomeadamente os mineiros que iam para a África do Sul, obtinham com o seu trabalho,  era depois absorvido pelo comércio colonial através da venda deste vinho nas cantinas e tascas.

O José Capela aprofunda as consequências sociais e morais deste comércio, nomeadamente em Moçambique:

(i) degradação e alcoolismo: a imposição e o consumo massivo deste vinho teriam contribuído para a degradação física e moral da população local; o  autor liga o abuso do álcool introduzido pela Europa a problemas sociais graves, um tema já debatido em conferências internacionais como a de Berlim (1885);

(ii) supressão das bebidas locais (ou "cafreais"): o sistema colonial, para garantir o mercado para o vinho importado, frequentemente recorria a medidas repressivas, como a taxação das bebidas destiladas e fermentadas indígenas, a proibição e a destruição sistemática de alambiques familiares e artesanais, etc.,  de modo a tornar  praticamente obrigatório o consumo do vinho português;

(iii) contexto suburbano: o consumo deste vinho nos subúrbios das cidades africanas em expansão, em condições de insalubridade, é descrito como um reflexo das péssimas condições de vida e de trabalho impostas pelo sistema colonial.

Em resumo, "O Vinho para o Preto" é um pequeno ensaio de  análise histórica, mais próximo do "estudo de caso", que utiliza o comércio do vinho para ilustrar a perversão do sistema  económico colonial. Que no essencial se baseava na exportação de produtos manufaturados na Europa, com alto valor acrescentado, e a importação de matérias-primas, extraídas  pelos indígenas a baixo custo.

2. Num artigo do jornal "O Século", de 15 de janeiro de 1899, sobre a "exportação de vinhos", pode ler-se:

(...) Em vista da baixa geral que tem havido nos preços dos vinhos dos mercados brasileiros muitos viticultores nos têm pedido informações referentes à exportação  para Lourenço Marques.

Devidamente esclarecidos  podemos aconselhar que os vinhos tintos devem ir em barris de quinto ou décimo (*), ou engarrafados, quando bem límpidos, sem exagerada força alcoólica, 12 graus em média, não carregados de cor nem maduros.

Os vinhos verdes, os  de Colares e os claretes têm fácil colocação  em Lourenço  Marques e no Transval. 

Em quanto a vinhos brancos, os de mesa melhor é que vão engarrafados, assim como os vinhos generosos.

O vinho branco, denominado "para preto". tem larguíssimo consumo, e pena é que a escala alcoólica ou limites para tais vinhos ainda não esteja  resolvida, o que tem causado gravíssimos  prejuízos aos exportadores e, assim, aos viticultores. (...).

In: José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, pág. 61

Num outro recorte do jornal "O Século", de 21 de janeiro de 1899, lê-se:

(...) Uma casa comercial  de Lisboa, com sucursal  em Lourenço Marques, lembrou-se de aguardentar muito os vinhos brancos, elevando a graduação a 17 e 18 por cento de álcool, na esperança de que o preto preferisse este vinho à aguardente, sua bebida habitual.

Generalizou-se  tão bem entre a raça negra o vinho assim preparado de preferência à aguardente,  que, começando a exportação do vinho chamado "vinho para o preto" por algumas dezenas de barris,  já se eleva a milhares de barris por mês  (....) 

In: José Capela, "O vinho para o preto: notas e textos sobre a exportação do vinho para África". Porto: Afrontamento, 1973, pág. 64

3. A questão que se pode pôr, num blogue de antigos combatentes, que partilham memórias (e afetos), é a seguinte: afinal, o vinho que nos chegava à mesa, no mato, era ou não uma variante do "vinho pró preto", uma espécie de "vinho pró branco de 2ª.", os expedicionários e a pequena comunidade de colonos brancos e assimilados  ?

O mercado ultramarino continuou a ter  um papel importante no escoamento da nossa produção vinícola, até à descolonização. Recorde-se que havia, ao tempo da guerra colonial, um problema de excesso de produção (e falta de qualidade)...

Dizia-se que Salazar dizia que "beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses"... O que em parte era verdade: antes do êxodo rural nos anos 60, a vitivinicultura dava trabalho a um exército de mão de obra barata nas aldeias... Em 1940, a vinha ocupava mais de 320 mil hectares e havia cerca de 337 mil produtores!... (Em termos de exportação de produtos agrícolas, só a cortiça ultrapassava o vinho; recorde-se que a superfície de vinha atualmente é pouco mais de metade da existente em 1940, c. 175 mil hectares.)

De facto, o trabalho na vinha, até ao fim de meados de 1960,  ainda ocupava muitos trabalhadores ao longo do ano... A mordernização da agricultura comneça tarde no nosso país.  Recordo-me quando era puto, em meados dos anos 50, de assistir à vinda de enormes ranchos de trabalhadores sazonais, homens e mulheres, para a minha zona (Lourinhã, Estremadura), na altura das vindimas... Eram os "ratinhos", vinham da Beira!... Recordo-me de ver, nos anos 60,os primeiros motocultivadores...

Em resumo, seria interessante saber mais sobre o vinho que a "metrópole" (Lisboa) nos mandava... A tropa era um segmento de mercado precioso, a partir do início da guerra em Angola... 

O que é que a malta sabe mais sobre isto ?

Em boa verdade, a generalidade dos nossos camaradas, no TO da Guiné, não se podia dar ao luxo de dizer o provérbio popular: "pão que sobre, carne que baste e vinho que farte"... Muitas vezes, faltava o pão, a carne e o vinho... Em quantidade e qualidade... 

Mas também se diz que "a fome é a melhor cozinheira"... Passou-se fome e sede na Guiné, todos estamos de acordo...Mas ninguém morreu de fome... Já de sede, desidratação, houve seguramente casos,,,

Que fique claro: não estão aqui em causa os nossos camaradas da Intendência que deram o seu melhor (e alguns morreram) no cumprimento da missão que lhes cabia no TO da Guiné...


4. O 'colon' António Rosinha, que foi para Angola nos idos de 50 do séc. XX,  e que foi depois  "retornado" à força, pode ser apresentado, sem ofensa, como  "branco de 2ª"  (...e eu como preto de 1ª na nossa "Guiné... zinha"). Já levantou aqui uma questão engraçada sobre o vinhinho que ia para as nossas Áfricas, o tal "vinho para o preto", de que nos fala o José Capela, e que dá o mote para esta nova série. De qualquer modo, em vez da "água de Lisboa", ele já preferia a "Cuca" (como bom angolano que era e que queria continuar a ser em 1975):


Angola bebe Cuca desde 1947...
(Imagem: BUS Creative Agency,
com a devida  vénia...)

(...) O único vinho verde possível de encontrar nas colónias, nos anos 50, antes do grito" Para Angola rapidamente e em força",  era apenas o Casal Garcia, caríssimo, e só em alguns restaurantes mais para o fino.

Com a ida dos militares para a guerra, começou a aparecer o Gatão e outras marcas engarrafadas, porque até ali foi sempre vinho "embarrilado", barris de 100 litros, nunca azedava, milhões de litros, desaparecia todo.

Ninguém distinguia se era martelado ou não, ninguém se queixava à ASAE (devia ter outro nome).

Embora, no caso de Angola,  a bebida nacional fosse a cerveja. A CUCA promovia 
frequentes mini Oktoberfest memoráveis para quem tomava parte. (...)  (**)


A história da Cuca remonta a1947, o ano dea fundação da Companhia União de Cervejas de Angola (CUCA), uma filial da Central de Cervejas, dona da marca Sagres. A Cuca foi a primeira cerveja produzida industrialmente em Angola. O nome seria uma homenagem à serpente Cuca, presente em tradições africanas, O  logotipo da marca  é um pássaro, simboliza a paz. A Cuca  tornou-se um "ícone cultural angolano (sic),  mas agora nas mãos da multinacional francesa Castel...  Todavia,   é paradoxal:  é mais barata a uma garrafa de cerveja (200 kwanzas) do que uma garrafa de água.. 

Curioso: uma marca colonial que os "tugas" lá deixaram... Outras duas cervejas de origem angolana são a Eka e Nocal.

Em suma,  o assunto parece que dá "pano para mangas", neste caso, garrafas e garrafas de vinho e cerveja, pires de tremoços  e muito paleio... Esperemos que  os leitores nos mandem os seus  contributos para esta nova série, que é uma variante da série "Comes & Bebes"... e do "Humor de caserna".  Que não nos falte, ao menos, o vinho, a cerveja e os tremoços.. E o humor. Sobretudo o humor.

_______________

Notas do editor LG:

(*) Um barril de quinto ou décimo era 1/5 ou 1/10 de uma pipa. Um recipiente mais pequeno que facilitava  o manuseio, o transporte em navio, a descarga, etc., nomeadamente com destino para o Brasil e África.  A pipa-padrão, na época, era a da Norte  do País (Porto, Douro), equivalente a 525/550 litros. Um barril de quinto ou décimo  seria, pois, c. 100 litros ou 50 litros, respetivamente.

(**) Vd. comentário ao poste de 3 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27280: Manuscrito(s) (Luís Graça) (274): Vindimas, ainda são o que eram ? - Em Candoz, sim, no essencial - II (e última) Parte

domingo, 12 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27311: Humor de caserna (215): A minha... G3trudes: uma peça em 3 atos e um final feliz (José Teixeira, CCAÇ 2381, ex-1º cabo aux enf, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá , Empada, 1968/70)


Guiné > Zona Sul > Região de Quínara > Sector S1 (Tite) > Empada > CCAÇ 2381, Os Maiorais ( Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) > O 1º  cabo aux enf Zé Teixeira em 1969, com a sua namorada, a G3trudes, com quem irá manter uma conflituosa relação que acabará em divórcio. 

Foto (e legenda): © José Teixeira  (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
Humor de caserna > A minha... G3trudes: uma peça em 3 atos e um final feliz

por Zé Teixeira



"O Maioral", Zé Teixeira
(i) Encontro e namoro

Na quinzena de campo, na IAO, que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que, afirmaram, me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra. Se houvesse alguma infelicidade, me acompanharia até ao caixão. Era uma G3, a Gertrudes ou a G3trudes.

Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.

Primeiro, trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que a baba, ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, não rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.

Segundo, pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos.

Terceiro, sempre travadinha, para não fazer asneiras.

Quarto, nunca a abandonar, pois, se perdida, dava origem no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com a G3trudes.

Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável:

  • pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro;
  • deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN;
  • ou no chão de cimento na caserna em Ingoré.

Antes da partida, prometera a mim mesmo não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos. 

Cantei de alegria, quando soube que as sortes me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra pura e dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e, quem sabe, salvar vidas.

Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.

(ii) O início do fim de uma relação de amor... impossível

Ao fim de três meses de companhia dedicada, algo de grave se passou que me levou a repudiar a G3trudes para sempre.

Estávamos em plena época das chuvas. Partimos de Buba às seis da matina com destino a Aldeia Formosa,  terra até então desconhecida, onde deveríamos chegar à tarde.

A CCAÇ 1792 veio buscar-nos. Os Lenços Azuis foram, assim, testemunhas no meu batismo de fogo em aquartelamento. Mal chegámos (tínhamos ido ao seu encontro), fomos recebidos com fogo cruzado das duas margens do Rio, mas foi só o susto. Uma amostra do que nos ia esperar no futuro.

Para além de uma enorme coluna de viaturas carregadas com mantimentos, seguiam três obuses de 14 cm. Toneladas de aço a atravessar lamaçais contínuos, pontes montadas e desmontadas por nós e o IN à espreita.

Ao meio da tarde, depois de uma tempestade de... abelhas, quando tínhamos andado apenas uns três quilómetros, uma traiçoeira mina destrói a 5.ª viatura, a das transmissões, levantando uma nuvem de lama. As transmissões terminaram a sua missão.

Ficámos isolados do mundo. Aparentemente, os quatro camaradas que voaram com o sopro, ficaram apenas combalidos, mas um deles, o radiotelegrafista, projectado com o forte impacto, ao cair, ficou ferido interiormente. A morte foi-se aproximando lentamente. A vida dele caminhava para o fim devido à perda de sangue, que não podíamos controlar. Só uma evacuação urgente o salvaria. Tínhamos ficado sem comunicações.

Foram tremendamente dolorosos, para mim e para os enfermeiros das duas companhias, viver estes momentos, horas, de vida, a lutar sem armas, pela vida de um camarada que se apagava. Ele sentia que as forças lhe estavam a escapar. Nós sentíamo-nos impotentes para o salvar. Só o milagre do helicóptero, que não aparecia, porque ninguém sabia, que aquela jovem vida se estava a apagar.

   Já não vejo !    gritava. 

E depois:

  Ajudem-me a levantar   balbuciava ele, mesmo no fim, com a esperança de ainda conseguir recuperar forças e poder gritar bem alto "Safei-me!"... Mas não. Não era possível. O seu destino fora traçado, quando alguém pegou num lápis e riscou o nome dele, assinalando-o para ser mobilizado para a guerra. A guerra que ele não queria...

O sol começou a esconder-se como que envergonhado e o camarada irmão disse adeus à vida, serenamente, sem pressas, em silêncio...

Na azáfama de tratar os feridos, esqueci-me da G3trudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Agora, era preciso procurá-la. Onde ? Tinha-lhe perdido o lugar.

Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.

Uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o IN à espreita. Até que o Sol raiou de novo e com ele a ordem de marcha. A partida para o desconhecido. Chão que eu nunca pisara. Lama e mais lama. Mata cerrada. Grandes palmeiras que furaram a selva verdejante à procura do sol, apontavam o céu...

Não demorou muito a aparecer o IN. A coluna era demasiado longa e pesada. Lentamente lá se ia movendo à procura do destino. Deu para emboscarem a frente. Recuaram face à forma como ripostamos e voltaram a atacar a retaguarda.

(iii) Ah! G3trudes de um raio!

Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos. A G3trudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado diretamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.

A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima.

  Ah! G3trudes de um raio! Anda cá!...

Apontar, disparar e... um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho. À minha frente jazia a G3trudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão.

Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.

Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa-chamas foi o empecilho que me salvou a vida. 

  Uf! Desta já escapei.

A G3 que no dia anterior tinha encontrado abandonada pertencia ao Salvaterra Bernardes,  natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental, que assassinos (não encontro nome mais apropriado)´apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na CCAÇ 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.

A arma na mão deste homem não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza,  para quê? O cano estava cheio de areia. A bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa-chamas.

Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e... talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me.

Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.

Não houve feridos de nossa parte. A coluna seguiu caminho.

(iv) O divórcio

A meio da tarde a aviação localizou-nos, o héli veio buscar os feridos do dia anterior e a vida continuou. Chegámos ao destino ao fim da tarde, ou seja vinte e quatro horas depois do previsto. 

Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída e... para não mais ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma porrada se me apanhasse sem a minha G3trudes.

Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão.

Zé Teixeira

(Revisão / fixação de texto, título: LG)(**)
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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 5 de agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2030: Estórias do Zé Teixeira (19): A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)