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sexta-feira, 21 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26604: Humor de caserna (107): "Teixeira Pinto colonizou a Guiné sem arcas frigoríficas", disse o Intendente em Bissau... Ao que o capitão, no mato, retorquiu: "Solicito envio urgente do Teixeira Pinto" (Aníbal José da Silva, ex-fur mil SAM, Vagomestre, CCAV 2383, Nova Sintra e Tite, 1969/70)



Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CCAV 2483 (1969/70) > O magarefe Feio a desmanchar um javali, apanhado numa armadilha...Foto (e legenda): © Aníbal José da Silva (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CART 2711 (1970/72) > s/d > Largada de frescos e correio, de paraquedas... Foto do álbum de Herlânder Simões, ex-fur mil d"Os Duros de Nova Sintra", de rendição individual, tendo estado no TO da Guiné, em Nova Sintra e depois Guileje, entre maio de 1972 e janeiro e 1974.

Foto (e legenda): © Herlânder Simões (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Quínara > Carta São João (1955) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bolama, São João, Nova Sintra, Serra Leoa, Lala, Rio de Lala (afluemte do Rio Grande de Buba)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)





Aníbal José (Soares) da Silva, ex-fur mil SAM, vagomestre,
CCAV 2483 / BCAV 2867, "Cavaleiros e Nova Sintra", Nova Sintra e Tite, fev 1969/ dez 1970); técnico de seguros reformado; mora em Vila Nova de Gaia; é nosso grão-tabanqueiro nº 898; é autor da série "Vivências em Nova Sintra"; coautor do livro "A Guiné que conhecemos: na sequência do livro Histórias dos 'Boinas Negras' ",  ed. lit. Jorge Martins Barbosa. Porto: Fronteira do Caos, 2022, il, 402 pp.)


1. No último poste da série "Vivências em Nova Sintra" (*), o Aníbal José da Silva publicou um texto sobre a nossa alimentação, que eu comentei nestes termos:

(...) Fabuloso este texto do nosso vagomestre!... Dou-lhe os parabéns... Já o li e reli e vou comentar com mais calma. 

Os nossos filhos e netos, criados felizmente com mais fartura, deviam lê-lo e comentá-lo. Esta era realidade (brutal, em matéria de alimentação) de quem vivia no mato... 

Sei o que era receber, só para mim e o cabo das transmissões, uma lata de 5 kg de fiambre (dinamarquês...) numa Sinchã Qualquer Coisa onde estive destacado com a minha  seção de soldados fulas, muçulmanos, "desarranchados" (e que não comiam carne de porco)... 

Eu mais o cabo empanturrámo-nos de fiambre, num só dia... o resto foi para os cães e os "djubis" da tabanca, que lhe chamaram um figo...Um ou outro soldado lá terá quebrado o tabu alimentar religioso... Já não posso garantir, com total certeza, se algum deles provou o fiambre dinamarquês que me mandou o vagomestre da CCAÇ 12, o Jaime Soares Santos,  no reabastecimento semanal ou quinzenal... (Devo lá ter estado uma semana ou duas em reforço do sistema de autodefesa, logo no princípio da comissão (...).


Também o "(António) Carvalho de Mampatá" (que era fur mil enf,  CART 6250/2, 1972/74) comentou o poste valorizando a abordagem da questão da alimentação das NT no TO da Guiné e dos tratos de polé que tinham de dar-se os pobres dos vagomestres para nos encher o prato (e a barriga):

(...) O retrato que nos faz o Aníbal Silva do exercício da sua comissão enquanto vagomestre , é precioso ou até preciosíssimo. 

É a primeira vez que leio um depoimento com esta qualidade de pormenor. Fez-me bem lê-lo porque, desde logo, me fez imaginar no lugar dele ou de qualquer outro furriel vagomestre, numa aflição permanente, a tentar dar o melhor aos seus camaradas, sem ter onde comprar fosse o que fosse. 

A partir de hoje verei com outros olhos esses camaradas, os quais muitas vezes levavam com a revolta de toda a companhia quando, a maior parte das vezes não podiam fazer melhor. (...)  (*)


2. Um excerto deste poste merece figurar na nossa série "Humor de caserna" (**)...

O Aníbal, para além de ter sido um esforçado,  imaginativo e honestíssimo vagomestre que foi parar, ingenuamente, a Nova Sintra, por troca com outro camarada que ficou em Jabadá, na margem esquerda do rio Geba,  é um bom contador de histórias e tem sentido de humor. 

A gente aprendeu, na Guiné, a rir-se da porca miséria do nosso quotidiano  e das "mordomias" que a tropa nos dava... desde os "hotéis de cinco estrelas" em noites de raios e coriscos, às intragáveis rações de combate e aos vegetais "liofilizados" pelo Natal... 

Com tantas agruras por que passámos,  não valia a pena chorar... Bem, ao menos hoje a gente ri-se...ou sorri.

Com esta partilha de memórias sobre as agruras da vida de um vagomestre (que eram por tabela também as nossas agruras...), o Aníbal vai ajudar a abrir a "porta"  do nosso blogue a outros vagomestres, camaradas que devem ser credores da nossa gratidão por, na generalidade dos casos, terem feito o melhor que podiam e sabiam para nos garantir "o pão nosso de cada dia".. 

Como o António Carvalho diz, eram, pelo contrário, e  muitas vezes, o "bode expiatória" da nossa raiva, no rancho e na messe... Quantas pragas não rogámos aos "filhos da p*ta do nosso primeiro e do nosso furriel vagomestre"!...

É uma história "kafkiana", a do quotidiano dos nossos vagomestres... Dá para rir, com um sorriso amarelo e meia-cara... 

De qualquer modo, e ao fim de 20 anos a blogar,  não chegam a 4 dezenas as referências a esta figura da tropa, que era/é, o vagomestre (do francês, vaguemestre, do alemão, Wagenmeister: originalmente, o oficial, no Antigo regime, responsável pela gestão das colunas logísticas e, portanto, das provisões; depois, o sargento, responsável pelo correio militar, no exército francês; ou o responsável da alimentação de uma subunidade, no exército, português).

Já o Napoleão dizia que “um exército marcha sobre seu estômago” (""une armée marche avec son estomac"). Ou, por outras palavras, não se faz (e muito menos se ganha) a guerra de barriga vazia... (***)


As agruras da vida de um vagomestre

por Aníbal José da Silva


A alimentação para 160 homens, pela qual eu era responsável, era má. Lá diz o ditado que sem ovos não se pode fazer omeletes, nem transformar pedras em pão. Não podia transformar o chouriço enlatado num bom bife. 

Todos os géneros alimentares vinham da Manutenção Militar de Bissau. Não havia em Nova Sintra população civil a quem, eventualmente, pudesse comprar o que quer que fosse. As populações mais próximas estavam em Tite a 20 km, mas a estrada estava inoperacional tendo sido abandonada. Havia ainda, também a 20 km, o destacamento de S. João que ficava defronte a Bolama, mas separado pelo largo rio. 

No inicio da comissão ainda cheguei a comprar galináceos e porcos, quando lá fomos buscar o primeiro reabastecimento, mas foi sol de pouca dura, porque o CIM  (Centro de Instrdução Militar) em Bolama comprava tudo. 

Para além disso a estrada Nova Sintra a S. João estava normalmente minada e era por ela que as colunas de reabastecimento eram feitas. Lembro que por duas vezes nesta estrada foram acionadas minas que provocaram a morte a quatro camaradas e vários feridos, pelo que fazer uma coluna para ir às compras estava fora de questão.

Durante um mês, em vinte e sete dias eram fornecidas refeições à base de enlatados: chouriço, sardinha e atum de conserva, dobrada liofilizada, que era intragável, e eventualmente fiambre. 

As refeições de bacalhau eram sempre bem vindas, pena é que a Manutenção, em Bissau, só fornecesse metade do que era pedido.

Uma vez por mês eram recebidos géneros frescos (sardinha ou carapau, frango, ovos e alguns legumes), que tinham de ser consumidos em três dias, dada a precariedade das arcas congeladoras que funcionavam a petróleo e entupiam com facilidade. 

Luz elétrica só havia à noite. Durante esses três dias e à noite, dois homens faziam vigilância ao bom funcionamento das arcas. 

Um frango (por homem) podia dar para duas refeições, mas tinha de ser consumido quase de imediato, porque senão estragava-se. O grão-de-bico, o feijão frade e branco, o arroz e o esparguete, eram a base diária das refeições. Depois era só juntar o chouriço. Pela Intendência nunca nos foi fornecida carne de bovino ou de porco.

(...) Foi decidido que eu fosse a Bissau comprar carne congelada, na Manutenção Militar ou em talho civil. Assim foi feito. Aproveitando a passagem semanal da avioneta de sector, que trazia e levava o correio, desloquei-me a Bissau. Consegui comprar alguma carne de vaca. Transportei-a na bagageira e no  banco traseiro de um táxi até à base de Bissalanca, onde aluguei uma avioneta civil. Depois carreguei as peças de carne, às costas, desde o táxi até à avioneta. 

Enviei uma mensagem para Nova Sintra para que as arcas ficassem vazias, diga-se, de Coca-Cola, Fanta e principalmente cerveja, o que constituía outro sacrifício. 

Chegado ao quartel,  e dada a temperatura e humidade, já não se podia dizer que a carne estivesse totalmente congelada. Dada a precariedade das arcas, alguma carne estragou-se e a restante teve de ser consumida à pressa. Chamava-lhe eu a tortura da carne. 

Meses depois repeti a façanha, só que desta vez estragou-se mais carne. Dada a dificuldade de conservação e os custos,  inviabilizaram-se novas façanhas.

A caça tornou-se um filão a explorar. Liderada pelo António Soares (já falecido),  foi criada uma equipa de caça. Conseguimos abater algumas gazelas, pois não havia animais de maior porte. Mas durou pouco tempo porque as gazelas desapareceram da região.

Em determinado dia uma equipa de caça constituída por furriéis, foi tentar apanhar javalis. Mas nem vê-los ou sinal deles. Os javalis que conseguimos apanhar foram através de armadilhas. 

Numa zona de mangais, onde à noite eles iam comer o fruto caído, era colocado um arame de tropeçar preso a duas árvores. Ao arame prendiam-se granadas de mão sem cavilha. 

Na procura de alimento os javalis tocavam no arame e as granadas explodiam provocando-lhes a morte. No quartel que distava mais ou menos dois quilómetros, ouviamos os rebentamentos e dizíamos: “amanhã temos carne fresca”.

 O Feio, magarefe na vida civil, tratava de os abrir, limpar e esquartejar.

Todas as gazelas e javalis foram para outras paragens. Em toda a comissão foram pouco mais de uma dúzia destes animais que conseguimos caçar.

Restava a pesca. Não havia barcos nem canas mas havia granadas de mão. Aproveitando a maré baixa do rio e as represas que se formavam, eram lançadas granadas e o rebentamento elevava no ar uma espécie de repuxo de água, juntamente com umas dezenas de peixes, que depois ficavam a boiar na água. Depois era só apanhar, meter em sacos de linhagem, amanhar e cozinhar. Esta atividade foi a mais duradoira.

Para além do infortúnio da falta de géneros frescos, havia um outro problema que agravava a situação: a deterioração de alimentos. Um bacalhau com batatas caía sempre bem, tal como batatas fritas e fatias de fiambre. Mas muitas vezes ao abrir um caixote de madeira com 25 quilos de bacalhau ou uma lata grande de fiambre,  estes produtos estavam totalmente estragados e lá se iam os petiscos.

No que diz respeito à batata, produto também muito fácil de apodrecer, dados os trambolhões que levava no transporte e a humidade, para evitar grandes perdas, dia sim dia não, dois soldados retiravam as podres das prateleiras.

Os ovos que recebíamos mensalmente, em doses razoáveis, também se estragavam muito. Numa das vezes, porque havia algumas dúzias com a probabilidade de deitar ao lixo e coincidindo com o Dia da Cavalaria, o 21 de Julho, também data do meu aniversário, resolvi antecipar o Natal, mandando confecionar rabanadas. E mais um azar aconteceu. 

Alguns soldados estavam a assistir à fritura das ditas, muito próximos das grandes fritadeiras, lambendo os lábios à guloseima, quando se iniciou uma flagelação ao aquartelamento. 

O pessoal na ânsia de procurar uma vala onde se proteger ou o seu abrigo, bateu com as pernas nas pegas das fritadeiras,  virando-as. Após o ataque e refeitos do susto, ainda se aproveitaram algumas que não tiveram contacto com a terra e restou o cheiro para consolar.

O pão. Tivemos dois padeiros. O primeiro foi o Pedroso de Almeida, que habitava no meu abrigo e dormia no primeiro andar do meu beliche. Teve dois azares. Num dia ao acender o forno com gasolina virou-se de costas e a chama queimou-o. Foi evacuado para o Hospital Militar em Bissau. O segundo foi-lhe fatal. Morreu no acidente do rebentamento da mina de 24 de julho de 1969.

O segundo padeiro foi o José Manuel Bicho que exercia a profissão na vida civil. A farinha, dadas as temperaturas e humidade elevadas,  criava muitos pequenos bichos e na peneira não era fácil tirá-los todos e alguns apareciam no pão. Dizia ele que todo o pão levava a sua assinatura.

Para amenizar o desagrado das ementas, resolvi mandar fazer tabuleiros grandes para ir ao forno do pão, com a chapa dos bidões de azeite. Conseguimos assar bacalhau com batatas, carne de caça e peixe da bolanha.

 (...) Ainda relativamente à questão das arcas, conta-se como verdadeira a seguinte história. Determinada companhia, tal como nós, isolada no mato, tinha ficado sem arcas e frigoríficos e feito vários pedidos para que fossem substituídas. 

Em resposta a uma mensagem mais agressiva, por parte do capitão que estava no mato, a Intendência em Bissau, respondeu que "Teixeira Pinto colonizara a Guiné sem frigoríficos", ao que o capitão retorquiu: "Solicito envio urgente de Teixeira Pinto"...

Um mês antes de deixarmos o inferno de Nova Sintra, num reabastecimento de géneros, para além das rações de combate que havia requisitado, para a atividade operacional expectável e manter o stock, recebi a mais umas boas centenas de rações, com a agravante de algumas já terem excedido o prazo de validade e outras estarem quase. 

Era impossível consumi-las até à transferência do depósito de géneros à companhia que nos iria render,  a CCAV 2765, “Os Pica na Burra”. 

Servi-las em substituição da refeição quente, embora precária, seria estar a assinar a minha sentença de morte, pois o pessoal enforcava-me no embondeiro mais alto. 

Colocada a questão ao capitão e ao 1.º sargento, foi decidido colocar as caixas com as rações de combate, viradas para a parede escondendo o prazo de validade.

Fiz a transferência do depósito ao vagomestre “periquito”, que as “comeu de cebolada”,  mas tudo o resto estava em conformidade. Só que o 1.º sargento deles não era burro e,  como já tinha feito outras comissões, resolveu confirmar a passagem do testemunho e deu com a marosca.

Durante duas noites não dormi a pensar num eventual castigo e porque tinha colaborado numa situação que era contra os meus princípios, embora tivesse as costas quentes, pelo aval dado pelo nosso capitão. 

Os capitães e os 1.ºs sargentos das duas companhias lá chegaram a um entendimento e eu lá continuei a dormir descansado. 

Se revoltado estava com tudo por que passara até então, mais fiquei com os filhos da p*ta  da Manutenção de Bissau, que no descanso do ar condicionado, em vez de comerem as rações de combate,  as enviavam para os escravos que estavam no mato, mas condicionado ao ar. (...)

(Seleção / revisão e fixação de texto / título: LG)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 18 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26595: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (3): A Alimentação

quarta-feira, 5 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26555: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (11): A fome era má conselheira... e apertava mais no tempo das chuvas, em Sangué Cabomba, subsector de Cancolim




Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Carta de Bafatá (  1955) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Bafatá e de Sangué Cabomba a sudeste, na estrada para Galomaro e Cancolim

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



1. O Rui Felício, um dos históricos da Tabanca Grande, é autor da série "Estórias de Dulombi", de que se publicarm 10 postes, até abril de 2013 (*). 

Está na altura de dar continuidade à série, com mais algumas "estórias" que vamos recuperando da sua página do Facebook...

 É o caso desta, que merece honras de blogue. Levou-nos algum tempo a descobrir onde ficava Cabomba. Afinal, já cá tínhamos o descritor, Sangué Cabomba. 

Espero que o Rui  não se zangue por este "roubo", que não é descarado, é discreto, sem á G3...  Digamos que é uma estória "emprestadada", já que ele se "esqueceu" de a mandar para o blogue..  É uma estória deliciosa, como é norma do autor, e que para mais envolve um outro histórico do nosso blogue, a quem saúdo: o nosso Paulo Raposo (também ele tem andado arredio das nossas lides bloguísticas). 

Um e o outro foram alf mil da CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852 (Dulombi, 1968/70). 

Vivam os "baixinhos de Dulombi"!  (Era a divisa da companhia, que pertencia ao batalhão a que eu estive adido um ano em Bambadinca.)


A DIFICIL SOBREVIVÊNCIA NA GUINÉ

Por Rui Felício


Cabomba era uma tabanca estrategicamente situada num entroncamento de picadas que ligavam Galomaro e Bangacia a Cancolim. O Paulo Raposo que antes tinha estado destacado em Campata, foi deslocado com o seu pelotão para este novo local.

Há mais de quinze dias que as chuvas tropicais intensas não paravam de varrer a zona, tornando intransitáveis os caminhos, impossibilitando o reabastecimento de viveres armazenados em Bafatá e Galomaro.

As reservas alimentares estavam na penúria e havia trinta soldados para alimentar. O Raposo, sensível a garantir o mínimo de bem-estar possivel aos militares sob a sua responsabilidade, vivia a cada dia uma preocupação maior.

Certa manhã, ciente de que tinha de encontrar uma solução de emergência, depois de em dias anteriores ter tentado sem sucesso vencer o lamaçal da picada para Galomaro, decidiu dirigir-se a uma pequena tabanca das imediações, montado num pequeno Unimog juntamente com meia dúzia de soldados.

Lá chegado, falou com o chefe da tabanca,  que sabia possuir algumas vacas. Propôs-lhe que lhe vendesse uma delas, mas o homem recusava terminantemente desfazer-se de qualquer uma das suas vacas, que, aliás, eram um sinal de riqueza do proprietário e que dela, teimosamente, não abdicava.

O Raposo insistiu, oferecendo-lhe um valor justo pela compra. Mas o chefe de tabanca estava irredutivel. Não era uma questão de preço. Simplesmente, não a queria vender.

Já impaciente, o Raposo invocou a sua autoridade militar e a necessidade absoluta de levar a vaca. Pegou num punhado de notas e, como o homem não as quisesse receber, atirou-lhas aos pés e mandou atar a vaca ao Unimog com uma corda.

Arrancou em direcção a Cabomba, em marcha lenta, com a vaca a trotar atrelada pela corda.

Chegado ao destacamento, desmontou e caminhou em direcção ao abrigo quando um soldado o abordou:

− Oh meu alferes, então e agora? Como fazemos para abater a vaca?

O Raposo, irritado com toda aquela complicada negociação, virou-se para trás, pegou na G3 e abateu a malfadada vaca.

Encarou o soldado e vociferou:

 A vaca está morta. Vê lá se também queres que seja eu a esfolá-la !

Rui Felício

NB - Que me perdoe o meu amigo Raposo. Mas estou a vender o peixe pelo mesmo preço que na altura o comprei. RF

Fonte: Página do Facebook do Rui Felício > 6 de dezembro de 2024 ·

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)

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Nota do editor LG:

(*) Último poste da série > 23 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11447: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (10): Regresso a Samba Cumbera, a sudoeste de Galomaro, 42 anos depois...

domingo, 2 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26543: Humor de caserna (106): "Senhora enfermeira, quero fazer chichii!"... (Leite Rodrigues, 1945-2025 / José Teixeira)


1. Dizem que os bois se conhecem pelos cornos, e os homens pela(s) palavra(s)...

Os homens também também se conhecem pelo humor, mais fino ou mais alarve, mais inteligente ou mais brejeiro (*), mais "soft" ou mais "hard"... E não importa as situações: em casa ou no trabalho, na rua ou no salão, à mesa ou no cama do hospital, na paz ou na guerra... 

Mal de nós, humanos, quando perdermos o sentido de humor, coisa que os robôs nunca terão, espero bem... Nem têm os ditadores e aprendizes de ditadores, os censores, os arrogantes, e os que pensam que são donos disto tudo...

Esta "história" do nosso já saudoso Leite Rodrigues (1945-2025) que, além de grande senhor do hipismo e do olimpismo, foi nosso camarada (e continua a sê-lo, respousando agora à sombra do nosso poilão), diz muito sobre ele, a sua personalidade, a sua história de vida...É aqui reconstituída (ou recontada) pelo régulo da Tabanca de Matosinhos, José Teixeira:

Excerto do poste P26523 (**):


Senhora enfermeira,  quero fazer chichi!  

(Leite Rodrigues, 1945-2025 / José Teixeira)


O Leite Rodrigues era um exímio contador de histórias, não só da guerra, mas também...

Contava ele que o avião que o trouxe, ferido, da Guiné, veio de noite de modo a chegar a Lisboa no escuro da alta madrugada, para não serem notados, e vinha carregado de feridos muito graves. 

O que estava em melhores condições era ele, que apenas vinha com uma fome de criar bicho, com a língua traçada e a boca selada com arames, pois os ossos do queixo ficaram em bocados. 

Entre os feridos, vinha um grande grupo de queimados em grau elevado, devido ao rebentamento de uma granada incendiária num embate com o inimigo, creio que em Bula. Todos embrulhados em gaze, pareciam múmias, era assustador e doloroso olhar para aquelas criaturas, comentava com ar pesado o Leite Rodrigues, nas suas lembranças, passados tantos anos…

Acompanhavam-nos duas zelosas enfermeiras, que tudo tentavam para lhes amenizar as dores. Às tantas ouve-se um gemido. 

– Senhora enfermeira,  quero mijar! 

E logo uma sorridente bata branca se aproximou, desapertou-lhe a carcela, e o pobre do rapaz aliviou-se. De seguida, todos os queimados, em carreirinha, apelaram às enfermeiras para os pôr a mijar…

 E foi assim durante o resto da noite. E, ele que nem falar podia, apreciava silenciosamente a paciência e o zelo das queridas enfermeiras.

Quando chegaram a Lisboa, desembarcaram e seguiram para o Hospital em ambulâncias militares, sem fazer o tradicional ninau! ninau!ninau!, para não incomodar os lisboetas.

Encaminharam-no para uma camarata, e atribuíram-lhe uma cama no R/C. Ao pousar os seus haveres tocou em uma coisa dura, que tombou ruidosamente.

O Camarada que dormia no primeiro andar disparou:

– Deste-me cabo da perna, amanhã vou foder-te o juízo!

O Leite Rodrigues tentou dizer-lhe que foi sem querer, mas apenas consegui balbuciar, nh! nh! nh!

– Tu grunhas,  meu filho da...p*ta!... Quando me levantar vou te partir os queixos!

No dia seguinte de manhã, cruzaram o olhar calmamente, e descobriram que tinham sido colegas do mesmo pelotão na recruta em Mafra. Um abraço não esperado, sem palavras, mas sentido. Do Leite Rodrigues apenas se viam os olhos; o camarada chegara uns tempos antes vindo de Moçambique, sem uma perna que fora levada por uma mina antipessoal. estado do povo e sobretudo de nós os jovens dessa altura. 

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)
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Notas  do editor LG:

(*) Último poste da série > 28 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26537: Humor de caserna (105): Ir às meninas ao Pilão, todo pipi, de calça e camisinha branca, e pingalim debaixo do braço... Mas o terreno estava "minado"... (José Ferraz de Carvalho, Tabanca da Diáspora Lusófona)

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26537: Humor de caserna (105): Ir às meninas ao Pilão, todo pipi, de calça e camisinha branca, e pingalim debaixo do braço... Mas o terreno estava "minado"... (José Ferraz de Carvalho, Tabanca da Diáspora Lusófona)


1. O José Marçal Wang de Ferraz de Carvalho, ou apenas José Ferraz de Carvalho é um camarada da diáspora lusófona: ex-Fur Mil, Op E Esp, CART 1746, e QG/CTIG Xime e Bissau, 1968/70); radicado em Austin, Texas, EUA, desde meados de 1970; tem duas dezenas de referências no nosso blogue; faz parte da Tabanca Grande desde 19 de novembro de 2011; é autor da série "Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz", de que se publicaram 13 postes, de novembro a dezembro de 2011. Ainda há tempos nos contactou, espero que continue a seguir o nosso blogue.

É um homem com um especial sentido de humor como se comprova com esta "história pícara" de uma ida noturna ao Pilão, com um amigo do peito (e de farras). Ele chamou-lhe um "acidente" (*)... Eu acho que é um eufemismo... E mais: uma parábola sobre a nossa guerra... Na altura, escrevi o seguinte comentário: 

(...) Quer se goste ou não, o Pilão fazia parte do "anedotário" e do "imaginário" do Zé Tuga...

Pergunto-me: como é que tu, 40 anos depois, te foste lembrar desse "acidente", associado à "friday night fever" (febre de sexta feira à noite) ?...

Sim, porque no Pilão, no nosso tempo, todos os dias da semana eram de "febre de sexta-feira à noite", de segunda a domingo, sobretudo para os "desenfiados" do mato como o teu amigo A.T....

Confesso, sem qualquer pinga de pudor, que ri sozinho que nem um perdido ao editar o teu poste... Tens um piadão a contar esta cena (caricata) e ao descreveres o infortunado mas pimpão do teu amigo como "o maestro do cagalhão"...

Podemos discutir por é que os seres humanos têm uma especial temdência para se rirem do ridículo, do grotesco, do burlesco, do pícaro,  do caricato... A tua "pequena história", que nada tem de heróico, ajuda a compreender a necessidade que nós, os operacionais, a malta que vinha do mato, tínhamos de "humanizar" o nosso absurdo quotidiano e de mantermos algumas das rotinas que nos prendiam ao fio da vida... 

Como diria um sisudo académico que eu conheço, isto dava uma tese de doutoramento... se a academia portuguesa tivesse um bocadinho do teu "sense of humor"...


Luis Graça sábado, 26 de novembro de 2011 às 21:01:00 WET 



Humor de caserna >  Ir às meninas ao Pilão, todo pipi, de calça e camisinha branca e pingalim debaixo do braço... Mas o terreno estava "minado"... 

por José Ferraz de Carvalho (Austin, Texas)



Um dos meus amigos fixes desse tempo era um furriel miliciano, destacado no Cacheu, que sempre que conseguia,  desenfiava-se e aparecia em Bissau, quase sempre de madrugada.

Abreviadamente, era o A. T....Vinha bater a porta do meu quarto sempre com a burra e o mesmo grito:

 Zé, acorda vamos pró Pilão que as meninas estão à miii...nha espera!!!

Ora bem, quase sempre durante a minha estadia em Bissau, conseguia que o "nosso primeiro", responsável pela distribuição de alojamentos, se esquecesse de que no meu quarto havia duas camas. Portanto, quando os meus amigos vinham a Bissau, sabiam que tinham onde ficar...

Numa dessas visitas, o A.T. comprou um pingalim de pau santo, igual ao meu, que usava quando eu ia ao Pilão. Era uma excelente arma de defesa porquanto,  se houvesse necessidade, partia-se com o joelho e tinhamos dois punhais improvisados...(truque aprendido em Lamego).

Como eu ia dizendo, numa dessa visitas, depois de se recompor e depois do jantar, era da ordem a visita ao Pilão, depois de o A.T. ter feito, durante o dia, o respectivo reconhecimento. Dizia ele então:

   Ó Zé, descobri estas meninas e temos que lá ir hoje à noite, pá. 

 A.T. estava convencido que era o Adónis de toda a Guiné, não só do Pilão. Nessa noite parece que o estou a ver vestido a rigor, todo pipi, de calças e camisinha  branca,  e de pingalim debaixo do braço. 

Arrancámos pró Pilão e fomos para uma área que eu desconhecia, o que me preocupava e perguntava-lhe:

 Ó pá, tu sabes para onde vais ? Parece-me bem que não...

O A.T. respondia-me:

  Sei, sei, é por aqui...

E lá íamos cada vez mais embrenhados em território inimigo... Noite de lua nova, escuro como breu, a única coisa que eu via era o branco do A.T.... De repente o A.T. desaparece da minha vista (ia vários passos à minha frente) e, antes que eu pudesse falar, ouvi-o vociferar:

− Ah, foda-se!| Porra! C... ! Ó Zé,  ajuda-me!...

 − Porra, onde é que estás ?   pergunto eu...

 − Aqui, pá!

Acendi o isqueiro e com a pouca luz que dava vi que o A. T. tinha caído numa fossa de merda, atascando-se até ao peito e de pingalim na mão a gesticular... Parecia o maestro dos cagalhões!...

−  Ó Zé, ajuda-me! Foda-se!...

Tirei o meu cinto, passei-lhe uma ponta e ajudei-o a vir para terra firme... Ah, meu Deus, e o cheiro..., poça!

E aí fomos os dois andando em busca de lugares conhecidos com o A.T., caminhando de pernas abertas, e deixando um rasto de merda... E os dois, às gargalhadas. 

Lá chegámos ao pé do quartel da PSP onde entrei para chamar um táxi para o levar para o hospital militar onde recebeu um banho de antibióticos e mais não sei quantos medicamentos.

O resto deste acidente: o taxista que chegou quando viu o estado em que estava o A. T., disse logo:

 Não, senhor, não entra no carro, nunca mais tiro esse cheiro do assento!

Por sua vez, os cabrões da PSP não deixaram o A. T. usar os seus chuveiros. Lá consegui uma mangueira da PSP. O A.T. despiu-se e eu de mangueira na mão a dar-lhe um duche como se estivesse a lavar um cavalo...

Já mais limpo e tremer de frio, lá o meti no táxi e toca a ir pró hospital... Arrancámos, e agora imaginem a malta do hospital quando aí chegámos, de táxi, com um passageiro nu em pelota e a tremer de frio... Disse o médico que o viu:

 Teve muita sorte e lavar-se foi muito boa ideia...

 OK, o que não sabe é que, sem essa lavagem, tínhamos que vir à pata para o hospital.

Graças a Deus o A.T. não só sobreviveu a este acidente como recuperou a sua saúde. Em 1974 quando levei a minha então esposa a Portugal para conhecer o resto da minha família e amigos, tive o prazer de o convidar para vir jantar connosco e estivemos noite fora à conversa:

 − E lembras-te disto... e lembras-te daquilo ?...

Sinto enormes saudades desse amigo e camarada. (**)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, título)

______________

Notas do editor:


(*) Vd. poste de 26 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9101: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (7): Um acidente... no Pilão

(**) Último poste da série > 23 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26522: Humor de caserna (104 ): "Ontem fui ao Pilão, o que não quer dizer que fui às p..." (Bissau, 16 de dezembro de 1973, in: António Graça de Abreu, "Diário da Guiné", Lisboa, Guerra e Paz, 2007).

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26529: As nossas geografias emocionais (47): Bissau, Cupelon / Pilão: histórias pícaras - Parte I (Rogério Cardoso, ex-fur mil mec auto, CCAÇ 643, Bissorã, 1964/66)



Guiné-Bissau > Bissau >  Planta de Bissau (edição, Paris, 1981) (Escala: 1/20 mil) > Posição relativa do bairro do Cupelon, ou "pilão", como diziam os "tugas" (assinalado com retângulo a amarelo)... Hoje é conhecido como Cupelum. Fi
ca(va) à esquerda da nossa conhecida estrada de Santa Luzia, portanto paredes meias com o QG/CTIG, em Santa Luzia... O Pilão fazia parte das nossas geografias emocionais... A noroeste,  a seguir a Missirá, no sentido de Brá e Bissalanca, ficava o bairro da Ajuda, reconstruído entre 1965 e 1968 (assinalado a azul).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)


1. Há escritos dispersos, no nosso blogue, sobre o Pilão, bairro popular de Bissau, que merecem ser aqui relembrados, na série "As nossos geografias emocionais" (*)... São historietas  pícaras que também servem para descontruir o mito de que o Pilão (corruptela do crioulo Cupelon, hoje Cupelum) era um antro de prostituição, marginalidade e "terrorismo"... 

A primeira crónica pícara que escolhemos é do Rogério Cardoso, ex-fur mil, Cart 643 / BART 645, "Águias Negras" (Bissorã, 1964/66)... O autor tem 6 dezenas de referências no nosso blogue, que integra desde dezembro de 2009. 

Faz também parte da Magnífica Tabanca da Linha. Era do Serviço de Material / Manutenção Auto. Tem uma cruz de guerra de 4ª classe,  No nosso blogue é autor da série "Notas Soltas da CART 643" de que se publicaram 26 postes, entre janeiro e julho de 2010.

Pelo que se deduz do texto (**),  o Pilão já fazia parte do roteiro da noite de Bissau, em 1964, tal como o Café Bento (o Rogério Cardoso esteve no CTIG entre março de 1964 e fevereiro de 1966).  

O autor faz referência a um grande incêndio que lá teria ocorrido. Trata-se provavelmente do incêndio que devastou o antigo bairro da Ajuda. Mas isso foi no início de 1965. Um novo bairro foi  construído, por iniciativa das Obras Públicas locais e com a ajuda da tropa,  para os desalojados (140 casas e equipamentos sociais estavam prontos em 1968). 

O bairro da Ajuda ficava localizado a oeste da cidadezinha colonial do nosso tempo, a seguir ao Cupelon e a Missirá, mais ou menos a seis quilómetros do centro, a caminho de Brá e do aeroporto de Bissalanca, a noroeste; em frente ao bairro da Ajuda, no lado esquerdo da estrada, ficava o HM 241.

O que importa sublinhar, da leitura desta "visita obrigatória" ao Pilão, é que também nessa época havia militares pouco disciplinados que iam provocar desacatos ao bairro que, de resto, era patrulhado pela tropa.  

Dois figurões da noite de Bissau desse tempo seriam o "Mouraria", fuzileiro, e o "Braga", paraquedista. O Rogério Cardoso ("periquito" ou "maçarico", como ainda se dizia nos primórdios  da guerra na Guiné...)  foi lá com eles, e parece que não ganhou para o susto... 

De qualquer modo, ir ao Pilão fazia parte dos  "comportamentos de bravata" de alguns militares que, em caso algum, eram representativos das NT...



Pilão, uma visita obrigatória


por Rogério Cardoso (*)


Quem não se lembra do célebre Bairro do Pilão, junto às bombas de gasolina da Sacor ?!

Bairro situado à saida da cidade de Bissau, junto à estrada para Bissalanca, problemático pois diziam esconder elementos inimigos, que não era difícil porque eles não estavam rotulados, eram iguais em tudo aos restantes residentes.

Estas afirmações têm fundamento, na medida em que em certa altura houve um incêndio de grandes proporções, em que se assistiu ao rebentamento de munições e granadas.

Mas não estou escrevendo estas "Notas Soltas" para contar o que foi o Pilão, todos nós o sabemos de sobra, mas sim para narrar uma cena que poderia ser fatal para mim.

Certa noite, sendo eu ainda muito "maçarico" , tendo talvez pouco mais de um mês de Guiné, e sendo o Café Bento,  na avenida principal,  o meu local preferido para depois de jantar, fui abordado por dois ex-combatentes, solicitando a minha permissão para se sentarem nas duas cadeiras junto à minha mesa, já que estava a esplanada cheia.

Claro,  eu respondi-lhes afirmativamente e de imediato os três bebemos umas cervejas frescas. Eles eram sobejamente conhecidos, um o Fuzileiro de alcunha "Mouraria",  e o outro o Pára "Braga", dois elementos que desde logo me pareçeram uns camaradões, mas que mais tarde vim a saber serem individuos complicados no aspeto disciplinar, estavam sempre prontos para a pancada por tudo e por nada.

Entretanto e depois das cervejas, fui convidado por eles para uma visita ao Pilão, havia lá um bailarico com mornas e coladeiras e,  claro, material feminino.

Lá fomos entusiasmados pela juventude dos 23 anos, de facto era verdade e a nossa integração no bailarico foi imediata.


Entretanto o Mouraria arranja logo um desaguizado com um elemento cabo-verdiano que dançava com uma guineense de alcunha  a "Muda". O nosso amigo queria a toda a força dançar com ela e, palavra puxa palavra, com empurrões à mistura, rapidamente passaram à agressão fisica.

Os amigos do cabo-verdiano, cerca de 20, igualmente entraram na luta, assim como o Braga e claro logicamente eu também. A desvantagem como facilmente se percebe era abismável e os dois,  com conhecimento de sobra, tanto da nossa desvantagem como do terreno para uma fuga com êxito, não esperaram e evaporaram-se em segundos. 

Eu não tive alternativa, fugi também e rapidamente, sem saber para onde ir, e depois de andar deambulando pelos becos com uma noite com escuridão total, decidi esconder-me debaixo de uma "casa" (ou morança), pois elas estavam implantadas sobre pilotis de madeira.

Depois de uns minutos que me pareciam horas, porque ouvia e sentia que era perseguido por um grupo numeroso, pelas vozes e barulho, aproveitei um silêncio repentino e saí. Foi então  que senti um pouco mais à frente uma mão no meu braço e uma voz dizendo:

 
−  Oh,  meu furriel,  venha já comigo.

Senti que era um amigo e segui-o rapidamente, finalmente estava a umas escassas dezenas de metros da estrada principal. Quem me ajudou, estava presenciando a cena de longe, conheceu-me porque eu tinha sido seu instrutor em Santa Margarida uns meses atrás.

Serviu-me de lição: primeiro,  não me meter em terrenos desconhecidos; e, segundo, saber escolher os companheiros de farra.

(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)


______________

Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 22 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26517: As nossas geografias emocionais (46): Quem se lembra do Café Portugal, junto ao Hotel com o mesmo nome, na Praça Honório Barreto (hoje Che Guevara) ?

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26522: Humor de caserna (104 ): "Ontem fui ao Pilão, o que não quer dizer que fui às p..." (Bissau, 16 de dezembro de 1973, in: António Graça de Abreu, "Diário da Guiné", Lisboa, Guerra e Paz, 2007).




Guiné-Bissau > Bissau >  Planta de Bissau (edição, Paris, 1981) (Escala: 1/20 mil) > Posição relativa do bairro do Cupelon,. ou "pilão", como diziam os "tugas".. Fica(va) à esquerda da nossa conhecida estrada de Santa Luzia, portanto paredes meias com o QG/CTIG, em Santa Luzia... O Pilão fazia parte das nossas geografias emocionais...





Capa do Livro Diário da Guiné - Lama, Sangue e Água Pura. 
Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.


1. O nosso camarada António Graça de Abreu (ex-alf mil, no CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, jun 1972/ abr 74), enviou-nos há muitos anos (há 17)  alguns excertos (e depois cópia integral do seu "Diário da Guiné", com autorização de reprodução no nosso blogue).

Há uma entrada sobre o Pilão. Merece ser reeditada depois da "crónica" do Abílio Magro sobre os seus "desastrados" patrulhamentos nocturnos naquele bairro...

Temos apenas umas trinta e tal referências sobre o Pilão: famigerado, para uns; triste, para outros, vergonhoso, para os mais puritanos e conservadores... Houve um presidente da Câmara municipal de Bissau, o major Matos Guerra, que por volta de 1966 o quis arrasar (segundo  o comerciante Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai", vereador na altura) ... Ainda bem que prevaleceu o bom senso... (A ideia teria partido do próprio Governador e Comandante-Chefe, Arnaldo Schulz: alegava-se que o Pilão era umn "ninho de terroristas.)

O Pilão existia no nosso tempo...Era um bairro de gente honesta, como todos os nossos bairros populares... Mas ficava já fora do asfalto, com ruas de terra batida e moranças, mais ou menos alinhadas, em geral feitas de adobe, com cobertura de colmo, umas, as mais pobres, ou de chapa de zinco, as dos menos pobres... 

Em 1970, deviam morar em Bissau umas 70 mil pessoas, com a tropa incluída... (Não sabemos quantas no Pilão ou Cupelom)... 55 anos depois é preciso multiplicar por sete a população dos bissauenses...

Em 1973, quando o António Graça de Abreu passou por lá (como quase todos passámos, não havia museus nem monumentos para visitar  nas horas de cultura e lazer da nossa tropa), era mais ou menos equivalente ao nosso Bairro Alto dos anos 50, só com a diferença de que aqui havia "casas de passe" (proibidas pela hipocrisia da época a partir de 1963)... 

Dizer que o Pilão era um gigantesco bordel é um insulto parar os seus habitantes da época... E para as NT. E que se cortavam cabeças de "tugas", era outra enormidade... Que havia alguma animação noturna por aqueles lados, havia, e às vezes alguns distúrbios: não vale a pena negar, escamotear, branquear a realidade de uma prostituição, tolerada, a começar pelas autoridades militares e civis...e pelo próprio PAIGC (viviam lá simpatizantes e militantes, dizia-se)...

Nunca houve cabeças cortadas no Pilão, e a própria prostituição fazia parte da economia de guerra exercida sobretudo por cabo-verdianas, fugidas da miséria das ilhas...Como em todos os teatros de guerra...

Infelizmemnte não há estudos sobre esta realidade dita marginal... e eu até agora ainda estou â espera de descobrir a letra (já não digo a música) do Fado do Pilão, à semelhança do fado do Bairro Alto...

Mas demos a palavra a um dos nossos mais cronistas dessa época.


Diário da Guiné > Bissau, 16 de Dezembro de 1973

Ontem fui às p...!

Nestes dias em Bissau, com tanta tropa à solta, anda tudo num magnífico regabofe. Para estes homens, o fim da Guiné é a loucura. Aqui no “Biafra”, de madrugada ainda havia alferes a cair de bêbados, entrando pelos quartos em gritarias e choradeiras de pasmar. Não deixavam ninguém dormir.

Ontem o meu serviço foi fazer companhia ao alferes Tomé, meu antigo companheiro de quarto em Teixeira Pinto e em Mansoa. Era o seu último dia na Guiné, embarcou hoje para Lisboa no avião dos TAM e passou comigo as horas da derradeira festa guineense.

Fomos os dois até lá baixo à cidade, depois jantámos, bebemos bem e, entre pesaroso e alegre, o Tomé desatou a contar-me as suas aventuras com uma prostituta cabo-verdiana que o andava a encher de ilusões, ou o Tomé a ela. 

A rapariga gostava dele, sempre que vinha de Mansoa a Bissau ia visitá-la, de sexta para sábado dormiu a noite toda em casa da beldade, a menina desembrulhava-se em bolanhas de ternura e desdobrava-se em arrozais de dignidade. Existiria qualquer coisa de verdade nesse relacionamento oblíquo. A rapariga deve ter adivinhado no Tomé um homem que não lhe comprara apenas prazer para vinte minutos e talvez tenha gostado dele. 

Ontem o Tomé foi-se despedir e levou-me para eu conhecer a pérola dos seus sonhos reais. A moça tinha bom aspecto, pequena, redonda, um rosto suave e sorridente onde não se adivinhava o labor da mais velha profissão do mundo. O Tomé abraçou-a, entrou na casa dela e dedicou-se de imediato aos prazeres carnais, ia pela última vez comer o chocolate claro da sua princesinha.

Eu fiquei cá fora, à espera, aí uns quarenta e cinco minutos encostado a um monte de sucata, a carcaça desfigurada de um carro velho. Entretive-me a olhar à volta. Estava no Pilão, um bairro de Bissau habitado por muita miséria e alguma prostituição. 

O lugar é sujo, tem pouca luz e dizem os entendidos que é perigoso à noite. Ontem, sábado, havia muita tropa branca a fazer as despedidas da Guiné, à procura dos últimos prazeres do sexo negro ou mulato para levarem como recordação para Portugal. As prostitutas do Pilão trabalhavam heroicamente. Na casa em frente, vi uma mulher aviar três gajos em pouco mais de meia hora, entravam, saíam uns atrás dos outros. 

Não sou propriamente um puritano mas tudo aquilo com exceção da rapariga do Tomé, parecia boa menina me deixou um travo a desgosto, desconforto e imundície.

Enquanto esperava, uma das prostitutas meteu-se comigo. Chegou saracoteando-se dentro de um vestidinho vermelho, dengosa, um perfume barato, meloso, agarrou-me no braço e disparou: 

− Vá, amor, vem f...! 

Disse-lhe: 

− Não posso, já f.... 

Resposta pronta: 

− Vai apanhar no c... !

Andei pelo Pilão a cirandar junto às putas mas não fui às putas, não faz parte dos meus hábitos. E não segui o interessante conselho da prostituta do perfume oleoso e reles. Apanhar no c... também não faz parte dos meus hábitos. (...)

 

(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos, itálicos: MR / LG)
____________

Nota do editor LG:

Ultimo poste da série >  23 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26521: Humor de caserna (103): Conversa de barbeiro na metrópole: "Cuidado com o Pilão, um gajo entra e sai de lá com a cabeça debaixo do braço!" (Abílio Magro, ex-fur mil, CSJD/QQ/CTIG, set 734 / set 74)

Guiné 61/74 - P26521: Humor de caserna (103): Conversa de barbeiro na metrópole: "Cuidado com o Pilão, um gajo entra e sai de lá com a cabeça debaixo do braço!" (Abílio Magro, ex-fur mil, CSJD/QQ/CTIG, set 734 / set 74)


1. Quem disse que os portugueses não sabem rir-se de si próprios ?... Talvez os italianos não saibam, nem os alemães, ou os "amaricanos".., Mas os "tugas", desde o berço da nacionalidade até, pelo menos,  às "campanhas de pacificação" nos Algarves d'aquém e d'além-mar em África, depressa aprenderam que chorar no molhado não adiantava nada, dar de beber à dor podia ajudar, cantar o fado fazia bem à alma...  mas nada melhor do que  uma boa anedota "para desenrascar a coisa".... Uma anedota,  uma "estória", não sobre o vizinho mas sobre si próprio (o alentejano, o alfacinha, o tripeiro, o marafado, o bimbo, o ilheu...).

O Abílio Magro é um rapaz do Norte, e escreveu aqui alguns peças de antologia do nosso bom humor de caserna, na série "Um amanuense em terras de Kako Baldé"...(Claro que o mau humor não nos  interessa, dispensa-lo, não ajuda o moral da tropa quando está enrascada...).

Para quem não o conhecer (ou já não o reconhece) o Abílio Magro foi fur mil, CSJD/QG/CTIG, 1973/74)... Trocado por miúdos: Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina do Quartel-General do Comando Territorial Independente da Guiné (e não da Guiné Independente!)... Entrou para a Tabanca Grande em 2013 e tem mais seis dezenas de referências no blogue (*).

Seguramente caso único na história das nossas "guerras da descolonização" (como dizem agora os senhores historiadores...), ele é proveniente de "uma grande família de combatentes, pois, de 8 irmãos (6 rapazes e 2 raparigas) todos os machos foram dar com os costados nos vários TO (Angola, Moçambique e Guiné), chegando a estar 5 irmãos (todos milicianos) ao mesmo tempo, a cumprir serviço militar, dos quais 4 no Ultramar)"...

Dos 8 irmãos ele era (e é, felizmente está vivo) "o mais novo" e regressou da Guiné "em setembro de 1974, com a Guiné já independente e com guerrilheiros do PAIGC a fazerem patrulhas em Bissau, em conjunto com a nossa PM" (sic)...

Não tem nenhum cruz de guerra, mas gaba-se de ter honrado a sua família, e os seus pergaminhos, como Valente e Magro que é... Leiam ou releiam esta história que o Raul Solnado, se fosse vivo, adoraria por certo contar... (**).

 
Humor de Caserna - Um patrulhamentos no Pilão

por Abílio Magro


Durante os cerca de 30 meses em que permaneci nas fileiras do Exército, em cumprimento do Serviço Militar Obrigatório, muito enriqueci o meu vocabulário à custa da chamada "linguagem de caserna", particularmente na Guiné. E se, em relação aos vocábulos "ordinários", pouco tinha a aprender, confesso, já no que se refere a expressões mais "pacíficas", o ganho foi substancial.

Efetivamente aprendi e usei expressões (e ainda uso algumas) que, embora sendo consideradas calão, não são pejorativas e fazem, também elas, parte integrante da história de uma época e de um contexto onde todos nós, ex-combatentes, vivemos durante algum tempo da nossa juventude. Com o fim da guerra colonial, muitas daquelas expressões caíram em desuso e, para que se preserve este valioso património, tentarei usar e abusar, nesta Tabanca. de expressões usadas entre os militares em serviço na Guiné e que me ficaram na memória.

Dito isto, vamos aos "famosos" patrulhamentos no Pilão.

O Pilão (assim designávamos habitualmente o Cupilom) era o maior bairro negro de Bissau e situava-se perto das instalações militares de Santa Luzia, onde estava instalado o QG/CTIG. Era composto por numerosas tabancas, sem energia eléctrica, sem água canalizada e sem rede de esgotos. Era ali que vivia a maior parte da população pobre de Bissau. Era também ali que havia "manga de fudi-fud
i" (1) e onde muitos militares iam "desenferrujar o prego". À noite era perigoso andar por ali sozinho.

Recordo-me de, ainda na Metrópole e terminadas as férias que antecediam o embarque, ter-me deslocado a uma barbearia para um corte de cabelo curto, e o barbeiro que me atendeu ter-me perguntado se ia para a tropa. Tendo-lhe respondido que não, que já lá andava há quase um ano, mas que ia para a Guiné, ele logo me avisou:

− Cuidado com o Pilão, um gajo entra e sai de lá com a cabeça debaixo do braço!

Fiquei esclarecido.

Efetivamente, vim a constatar depois que, à noite no Pilão, havia constantes conflitos por variadíssimas razões, entre as quais o "fudi-fudi". Era também habitual o rebentamento de granadas naquela bairro e constava até que por lá havia muita gente simpatizante do PAIGC e que alguns guerrilheiros ali vinham passar os fins de semana, recolhendo informações.

Os patrulhamentos estavam a cargo do pessoal da CCS do QG/CTIG e eram efectuados em três turnos; 20h-24h, 24h-04h, 04h-08h e eram controlados por um Capitão do COMBIS (Comando de Defesa de Bissau).

E é neste contexto que este vosso camarada "operacional do ar condicionado", apenas com alguns dias de Guiné, é chamado a efetuar o seu primeiro patrulhamento nocturno ao Pilão. 

"Piriquito"(2) como era, estava decidido a seguir à risca todas as instruções que me fossem transmitidas para o efeito.

Munido de G3, telemóvel matulão (já não sei como se chamava aquilo, talvez "banana") e um croquis mal-ajambrado, com notas escritas à máquina e envolto num plástico transparente, lá vou eu comandar uma patrulha de seis homens, transformados em guardas-nocturnos.

Vamos de Unimog e largam-nos no local indicado no croquis. Este, tinha aspeto de já ter cumprido dezassete comissões e apresentava-se com a farda toda esfarrapada. Isto é: o plástico estava a desfazer-se e o papel mal se conseguia ler. Então de noite, sem luz, era giro!

Mas eu estava determinado a fazer tudo certinho e direitinho (era mesmo muito "pira"!
(2)...  E esforço-me por estudar o croquis, quando um elemento da patrulha me diz que o télélé tinha lanterna, o que me levou a concluir que, afinal, a tropa portuguesa estava bem equipada. 

Às apalpadelas tentei acertar com o botão respetivo, mas acabou por ser o tal elemento da patrulha a dar à luz. Logo pensei: 

− Este deve ser engenheiro.

Os caracteres esbatidos daquele croquis já se me apresentavam mais legíveis e tratei de perceber qual o trajecto que teria de seguir para cumprir cabalmente a missão que me havia sido confiada, quando dou com o seguinte fragmento de texto: 
"(...) junto a um mangueiro com uma faixa branca (...)."

− Porra! Esta merda está toda rota, a luz é fraca comó caraças, um gajo num bê a ponta dum chabelho e, ainda por cima, estes gajos num sabem escreber, ou estom a gozar comigo?!...  Como é que bou encontrar uma mangueira com uma risca branca, no meio desta escuridom?! Tá tudo doido!,,, 

Em 1973, com 4 ou 5 dias de Guiné, sabia lá eu que existiam mangueiros!

Fartei-me de olhar para o chão à cata da tal mangueira! Resumindo: perdi-me completamente e, a páginas tantas:

 
Kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto!... Kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto.

O télélé tinha acordado:  era o Capitão do COMBIS!... Respondo:

−  Celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto!... Celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto!...  (Duas vezes,  tinham-me dito que era assim).

Do outro lado respondem:

− Kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto!... Kalar, kalar, aqui celta, diga se me ouve, escuto.

E eu novamente:

 Celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto! ... Celta, celta, aqui kalar, diga se me ouve, escuto!

Aquilo até estava a ser giro, mas o tal engenheiro diz-me:

− Meu Furriel, tem de carregar num botão aí ao lado!... 

O  tipo sabia mesmo daquilo!.. Carreguei no botão, mas a conversa continuava monótona como tinha começado:

− Kalar, kalar para cá, celta, celta para lá...

 E já começava a chatear!... Então o engenheiro diz:

 Meu furriel, tem um botão de cada lado, tem de carregar nos dois ao mesmo tempo!

Aí convenci-me mesmo que o bacano era engenheiro, e dos bons! Talvez electrotécnico.

Bom, lá consegui chegar à fala com o Capitão que me perguntou onde é que eu estava, e eu lá tive de lhe dizer que me tinha enganado no autocarro, que era a primeira vez, etc. e tal... E ele lá me disse que estava junto à igreja, o que me deixou mais sossegado pois, provavelmente, estaria em meditação e dava-me algum tempo para lá chegar. Como não fazia a mínima ideia onde ficava a igreja, perguntei ao pessoal e um dos negros que compunham a patrulha lá nos encaminhou.

Chegados lá, nem Capitão, nem Padre, nem Sacristão, nem o raio que os parta! Recomeça a cantoria:

 Kalar, kalar...

A sério que me apeteceu mesmo mandá-lo calar, mas lá carreguei nos dois botões (a gente está sempre a aprender) e o Capitão pergunta-me:

− Então, onde é que você anda?!

O tom de voz dele já não me estava a agradar. Respondi-lhe com alguma sobranceria:

 Estou junto à igreja!

E ele:

− Junto à igreja estou eu e não vejo aqui ninguém!

Eu, afinal, estava junto a uma mesquita!!!

- Ai meu Deus que desta é que eu vou parar a São Crincalho!... (Já me estava a imaginar no centro de Madina de Boé a fazer patrulhamentos com uma moca de Rio Maior na mão e uma fisga no bolso!)

Lá me explicou mais ou menos onde ficava a igreja e, como o pessoal mostrou conhecer o caminho, para lá avançamos a todo o vapor! Lá chegados, continuei com as minhas desculpas e não notei nele grande ressentimento. Julgo que era capitão miliciano. Assinei o mapa de controlo e lá me embrenhei novamente na "densa mata", até ser rendido.

 
Guiné > Bissau > Tabanca do Pilão > s/d (c. 1968/70)

Foto do álbum do ex-1º cabo mec auto, CCAÇ 2381 (1968/70)

Foto (e legenda): © Arménio Estorninho (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Eu era de rendição individual, estava há três ou quatro dias na Guiné e ainda não tinha tido tempo para conhecer todos os "cantos à casa". Vim mais tarde a saber como a "coisa" funcionava e, até ao fim da comissão, agi de acordo com as regras vigentes e..., "tá na mala!"(3)

Então era assim: o Capitão do COMBIS ligava para o Oficial de Prevenção, alferes miliciano, informando-o da hora e local onde seria efectuado o controlo. O Oficial de Prevenção avisava o Sargento de Ronda. Este seguia diretamente com a patrulha para perto do local de controlo e, minutos antes da hora marcada, avançava destemido para o "objetivo". Nunca falhava!

Eu nunca dormia (forte sentido de responsabilidade), mas algum pessoal era "tiro e queda!".  Uma das vezes dei comigo a guardar seis bacanos a ressonar! 

− Oh c'um carago, mas que é isto?! Tudo a ferrar o galho e eu aqui feito camelo, de sentinela,  a velar por eles?!... Toca a acordar, pessoal, vamos dar uma volta que estou a ficar com frio! 

Acordaram e lá foram, meio a resmungar.

Em setembro de 1973, vim de férias à Metrópole e, regressado a Bissau, "tugas, bora lá alinhar" numa rondazinha ao Pilão.

Era o turno das 20h às 24h, o pior em termos de conflitos. Eu tinha regressado no dia anterior e estava atarefado a tentar descansar da azáfama das férias. Sossegadinhos no canto de uma tabanca (do lado de fora, claro), fomos sobressaltados com o rebentamento de uma granada. Ouvi, registei e esperei. Logo de seguida, rebenta outra, depois outra... 


− Mau, vim ontem de férias e ainda me sinto em convalescença e com pouca vontade de entrar em "festas"!... Continuam a rebentar - tenho de ir, pois vai aparecer o COMBIS de certeza.

Inicio, então, a deslocação das tropas exatamente em sentido contrário ao do som dos rebentamentos (cautelas e caldos de galinha...). O pessoal alerta-me, mas eu não ouço. É para este lado e "mai nada!"

Rebenta mais outra e aqueles "camelos" insistem:

 Meu Furriel é para ali!...   (Militares impreparados!).

Lá tive de inverter o sentido da marcha. Aqueles gajos não estavam a facilitar nada.

 Calma, nada de pressas 
− ordenei eu!

Entretanto rebenta uma granada incendiária que provocou um grande clarão e pude ver que já lá se encontrava alguma tropa e,  aí sim, acelerei a marcha. Não façam já juízos precipitados! Acelerei a marcha, não porque me sentisse mais seguro, mas porque estavam lá camaradas meus que podiam necessitar da minha ajuda (a isto chama-se altru~ismo!).

O Capitão da COMBIS manda-me fazer um cordão de segurança ao local (eu mais 6 homens, quando muito uma cordinha!), pois estava uma granada descavilhada junto à porta de entrada da casa de um 1º Sargento e era preciso fazer segurança aos homens que iriam tentar resolver o assunto. Aquela granada podia rebentar por simpatia a qualquer momento. Colocaram sacos de areia junto à entrada da casa.

Pensou-se em dar um tiro de longe à granada, mas não seria fácil acertar-lhe e, além disso, parece que havia uma determinação qualquer que não permitia tiros em Bissau.

Se algum tabanqueiro tiver informações acerca do assunto, seria interessante divulgá-las aqui na Tabanca, pois sempre me pareceu absurda a ideia, tanto mais que era frequente o rebentamento de granadas, mas realmente e apesar da quantidade de armas que por ali circulavam, nunca tive conhecimento de cenas de tiroteio em Bissau. Talvez eu andasse distraído, não sei.

Aquilo demorou uma eternidade. Toda a gente dava palpites e eu, experimentado como era no assunto, também dou o meu.

 
− E se se abrissem algumas munições e se fizesse no chão um carreiro de pólvora até à granada e se espalhasse em cima desta alguma pólvora ? !... Depois, era só chegar fogo à pólvora no início do carreiro e protegermo-nos.

A sugestão foi bem recebida, mas o pior veio a seguir. Era preciso um voluntário... 

− Querem ver que estes gajos estão a pensar na minha pessoa para pôr em prática o meu plano?!...Estão doidos!

Realmente, isto de fazer planos para os outros executarem é muito lindo. Não deixavam de ter razão, mas eu tinha regressado de férias no dia anterior, carago! Era só por isso, mais nada. E não é que um bacano do meu grupo de combate se oferece como voluntário?! 

− Este gajo é maluco! Esta merda ainda rebenta, o gajo vai pelos ares, e eu fico com um molho de brócolos nas mãos, do carago!

O bacano lá começa a fazer o carreiro de pólvora até à granada e eu sempre a rezar para que ela se aguentasse muda e queda e a pedir que o bacano se despachasse. Quando chega à granada e começa a despejar pólvora em cima dela, eu já tremia todo só de imaginar a gaja a explodir, o bacano a ficar feito em fricassé e eu a  sentar o cu no mocho...

Lá terminou sem problemas aquela tarefa e, então, chegou fogo à pólvora. Todos nos abrigamos a aguardar os acontecimentos. A pólvora lá foi ardendo pelo carreiro e, quando chegou à granada, dá-se um clarão e... um autêntico flato em pantufas!... A gaja não rebentou, chegou o pelotão para me render, eu regressei a quartéis e no dia seguinte soube que lá tinha ido o pessoal das minas e armadilhas que tratou do assunto.

A esta distância (40 anos, em 2013) estes episódios são relatados com esta ligeireza da "calma, descontração e estupidez natural", mas não deixei de apanhar alguns cagaços, pois temos de levar em conta que o meu nome completo inclui os apelidos Valente e Magro e que, o último me assentava na perfeição, à época.
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Notas do autor:

(1) - "manga de fudi-fudi" - muito sexo

(2 - "piriquito" ou "pira" (abrev.) - expressões que designavam um militar recém chegado à Guiné e cujo camuflado, com pouco uso, nos levava a assemelhá-lo ao periquito verde da
 Guiné (papagaio do Senegal).

(3) - "tá na mala!" - Está feito, siga! 

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Notas do editor:

(*) 13 de janeiro de 2013 > Guiné 63/74 - P10935: Tabanca Grande (381): Abílio Magro, ex-Fur Mil Amanuense do CSJD/QG/CTIG (1973/74), 600.º tabanqueiro desta tertúlia

(**) 11 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26485: Humor de caserna (102): o macaco-fidalgo ou "fatango"... "ó meu alferes, parecia que era um gajo... dos turras!" (Alberto Branquinho)