O Café ainda existe, 64 anos depois de abrir. Abriu portas no dia 11 de novembro de 1961, já com início da guerra em Angola, e um mês e tal antes da invasão do Estado Português da Índia em 18 de dezembro de 61.
Esse amigo, 3 anos mais novo que eu, era de boas famílias, burguesia do Porto, mas ele próprio era um bocado desbocado, diferente de todos nós que ali frequentávamos o Café para estudar, tendo ainda hoje várias placas nas paredes dos diversos cursos universitários que por lá fizeram em parte a sua vida, tal como havia em muitos cafés do Porto, sem esquecer o Piolho, o Progresso, o Ceuta, o Avis, e tantos outros.
O A... (omito o seu nome por razões óbvias) estudava engenharia no ISEP (Instituto Superior de Engenharia do Porto), e já tinha a sua panca acentuada antes de chegar à Guiné.
Era o alferes miliciano A... L... que pertencia à Cheret – para quem não sabe, como eu não sabia, estava ligado a encriptação e desencriptação de menagens – e tem muitas histórias de conseguir pôr as transmissões do IN à volta da cabeça, com sucessivos códigos novos. (Cheret é o acrónimo de "Chefia do Serviço de Reconhecimento das Transmissões".)
Isto porque um "cheret" anterior a ele, mas furriel miliciano, teria sido capturado, e isso significava que o mais provável era ter passado tudo para os seus carcereiros.
Este colega e amigo, como estamos numa de "piadas de caserna", tenho dele uma de partir a moca.
Conta ele que, depois de mobilizado, nada disse em casa, nem nem ele nem a namorada, os pais eram austeros e gente de dinheiro. Ele namorava a rapariga, e antes de sair, casou sem conhecimento de nenhum dos familiares de ambas as partes, não souberem de nada, só quando lá estavam em Bissau deram notícias.
Então ele não esperou pelo seu embarque gratuito, comprou bilhetes da TAP e lá foram eles para Bissau, onde passaram a sua Lua de Mel na Pensão da Dona Berta.
Andou assim uns 15 dias e nunca se apresentou no QG, como seria normal. Conta ele que passeava na marginal com a mulher, e encontrou um militar muito zangado e com muita raiva, e dizia ele, que estava há mais de um mês à espera do seu substituto, e ele não aparecia nem ninguém sabia dele
– Possivelmente já desertou e eu aqui à espera dele!
O resto não sei, mas foi uma alegria para o outro, e o A... nunca contou o que lhe aconteceu no QG.
Quando chegou aos 15 meses arranjou forma de ir parar ao HM 241 em Bissau, para a Psiquiatria, lá para maio ou junho de 69. Encontrou lá o outro A..., o F... da Companhia de Transportes, que vivia lá com a mulher e filha E..., que eu levava comigo a passear de mota, quando ia a Bissau. Tinha 3 anos, tem hoje 60.
Nessa altura estaria eu também na mesma zona da Psiquiatria. Eles foram mais espertos e lá conseguiram vir embora de avião militar, com destino ao Hospital da Estrela.
Mas em vez disso, resolveram ir para o Algarve e desenfiaram-se uns dias. O A... F.... já tinha mandado a mulher e filha para cá, e o A... L... já tinha mandado a mulher para a metrópole, a mulher tinha vindo muito antes. Como não ficou em Bissau, penso eu que ela veio recambiada.
O F..., depois de cá chegar, uns anos depois volta a frequentar a FEP (Faculdade de Economia do Porto) e acaba o curso e passa a ser um quadro importante do antigo BPA, depois BCP. Saiu reformado muito cedo com a pensão completa.
Ainda fiz alguns negócios com ele – com o Banco – em contratos "leasing" quer para mim quer para clientes. Não sei porquê, separou-se da mulher, que lá em Bissau trabalhava na Farmácia. Ficou solteiro. A mulher que casou com um juiz de Ovar, veio a falecer há um ano atrás.
Somos amigos e temos o nosso blogue – uma conta no WhatsApp com 7 amigos.
Em Bissau o F.... morava numa casa junto com o cunhado, o P... G..., da CC e com a mulher dele, a Ac..., irmã da mulher do F... Parece que não correu muito bem esta convivência conjunta.
Agora as irmãs já morreram, com um mês de diferença. O P...G... também aparece nos almoços do grupo, junto com o cunhado F...
A E.... casou e tem dois filhos, netos do F..., e encontramo-nos apenas nos
funerais das mulheres. Ela quase não me conhece, não se lembra, era muito miúda, é arquiteta e apresentou-me o marido, que tem como virtude ser mais um fanático do FCPorto, e que convida o sogro para ir ver os jogos do Porto na TV. O F... não gosta de futebol, mas puxa pelo Porto. O genro agradece.
Estou a fugir da conversa do A...L... da Cheret. Passaram à peluda, os dois A... (têm o mesmo nome). Eu e eles somos amigos do Café Cenáculo, desde os anos de 60. (Fica na Rua Antero de Quental.)
O A...L... perdi-lhe um bocado o rasto pois entretanto venho para Vila do Conde trabalhar numa multinacional sueca, e depois casei e mudámos para cá, e assim se foram perdendo lentamente os nossos amigos mais importantes, "longe da vista, longe do coração", quer para mim bem como para a minha mulher que já não tem amigas da infância e adolescência.
O A... entretanto divorciou-se, teve um filho da primeira mulher, que já adulto acabou com a vida, foi um rude golpe. Foi o A... que me contou cá em Vila do Conde, numa garrafeira de um amigo dele, onde nos encontramos. Fiquei chocado.
Entretanto ele vai abrindo o cofre e começa a contar a sua vida, com 3 casamentos e 3 divórcios à mistura. Tem filhas das duas últimas mulheres mulheres, encontrando-se a viver em diversos países da Europa.
Ele ainda mantém relações de amizade com todas as suas mulheres e os filhos, mesmo a mãe do falecido, a sua primeira mulher que eu conheci em Bissau.
Há uns anos, cinco talvez, juntou-se com outra mulher, 5 anos mais nova do que ele, que era divorciada de um tal Virgílio – não sou eu – que também passou pela Guiné.
Alugou aqui uma casa, a 500 metros da minha, e está a viver com a dita – chamamos- lhe H...L... Passado um ano mais ou menos casaram pelo civil. O A... tem uma quinta em Entre-os-Rios , que tem um caseiro e está à venda mais ninguém lhe pegou ainda.
A atual mulher vivia no Porto, na Rua de Camões, e tem um filho, que é surdo-mudo, casado com outra mulher com a mesma deficiência. O filho, que não conheço, não gostou deste ajuntamento da mãe e durante uns anos não se viam. O A... não se importava, porque não sabia como falar com ele em linguagem gestual, e assim festas e natais era tudo separado.
Quando o A... se juntou com a H...L... foram mudar para casa alugada para os lados de Monte dos Burgos, perto do RI6, da Senhora da Hora.
Depois mudaram-se para Vila do Conde, e hoje estamos todos os domingos de tarde, juntos, os quatro, em cafés cá em Vila do Conde.
Assim a minha mulher já tem com quem falar, pois entendem-se bem. Mas ela já vai dizendo que está cheia do A..., não sabe até quando o vai aturar.
O A...é bom rapaz, só tem dois defeitos:
(i) é do Benfica e abominava o Pinto da Costa, mesmo quando eles eram vizinhos nas Antas no mesmo prédio;
Mas lá vamos continuando com os nossos encontro, e agora que se juntou também o nosso Padre Bártolo, antigo capelão-mor na Guiné, Angola e Moçambique, e que depois viveu 30 anos em Genebra e tem altíssima cultura, e por isso agora eles falam um com o outro, eu vou ouvindo sem nada perceber sobre as pessoas que falam.
O A... é de uma grande inteligência, formou-se em engenharia de sistemas digitais e afins, mas nunca pegou num computador e muito menos num "smart phone", tem apenas um telemóvel desses antigos da Nokia como tem a minha mulher, que não se deu com os outros.
Quando formamos o grupo do WhatsApp – Os veteranos da Guerra da Guiné – partilhamos mensagens e tudo o mais que vem à cabeça, especialmente coisas do outro mundo, fotos e vídeos de fazer corar um santo.
Como ele não tinha esse dispositivo, ficou associado ao da mulher, pois ele nunca tem o seu telefone ligado, nem servia para integrar o grupo WhatsApp.
Assim a partilha destas coisas todas que nós falamos e publicamos, quem as via era a sua mulher, a H...L, , até que um dia viu algo que não gostou mesmo, e telefona-me a perguntar o que era aquilo, por que razão recebia aquelas coisas obscenas...
Não tem estes dispositivos nem quer, ele diz que nunca abriu um computador!...
Foi sempre professor universitário e chegou a sê-lo do meu genro, em algumas
disciplinas, ele formou-se em engenharia civil.
Para a Cheret só iam dois tipos de pessoas e com características bem vincadas:
- quem era muito afecto ao sistema salazarista e agora até chamam de fascistas;
- ou quem tinha inteligência excecional, especialmente ligada a números, para a função de encriptar mensagens.
Na primeira não cabia, mas sim na segunda e assim passou a ser um homem do sistema e bem controlado, digo eu.
Agora o que resta é esta quinta mulher, mas não têm filhos em comum, obviamente.
Ele é muito perfeccionista, tanto anda com uma T-shirt do Che Guevara, como um blusão camuflado, e tem como defeito principal, na perspetiva da mulher, o de comer muito e a toda a hora, e nós vemos isso nos lanches de domingo.
Fazem as despesas a meio, ela era bancária e recebe a sua reforma e a do falecido. Ele, dizem eles, que nem sabe quanto ganha, porque nunca consulta as contas!
A mulher, entretanto, arrendou a sua casa da Rua de Camões, e quando dá por ela, "já lá viviam dois gays: não pagam a renda e os advogados não veem maneira de os por de lá para fora, além de que são perigosos"...
Acho que, se ela recuperar a casa dela, vai acabar com tudo. Isto é a nossa versão.
E assim vão as coisas.
Muito mais poderia aqui acrescentar, mas para já chega de conversa. Fim da novela, ao fim de um mês de a começar.
Em, 27 de março de 2025
Último poste da série > 16 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26693: HIstória de vida (58): Henrique Pereira Rosa (Bafatá, 1946- Porto, 2013): o fur mil OE, CCAÇ 2614 (Nhala e Aldeia Formosa / Quebo, 1969/71), católico praticante, luso-guineense, que chegou a presidente da república, interino (2003-2005), da Guiné-Bissau