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quinta-feira, 17 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26695: Histórias de vida (59): O meu amigo A..., do Café Cenáculo, no Porto, e depois alferes da Cheret no QG/CCFAG (Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAÇ 1933, Nova Lamego e São Domingos, 1967/69)

 


Praia de Vila do Conde, 1963...


Vila do Conde, Av Brasil, 17/3/2020...


Fotos (e legendas): © Virgílio Teixeira (2025). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar de: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Histórias de vida > O  meu amigo A...,  do Café Cenáculo, no Porto, e depois alferes da Cheret no QG/CCFAG

por Virgílio Teixeira



O Café ainda existe, 64 anos depois de abrir. Abriu portas no dia 11 de novembro de 1961, já com início da guerra em Angola, e um mês e tal antes da invasão do Estado Português da Índia em 18 de dezembro de 61.

Esse amigo, 3 anos mais novo que eu, era de boas famílias, burguesia do Porto, mas ele próprio era um bocado desbocado, diferente de todos nós que ali frequentávamos o Café para estudar, tendo ainda hoje várias placas nas paredes dos diversos cursos universitários que por lá fizeram em parte a sua vida, tal como havia em muitos cafés do Porto, sem esquecer o Piolho, o Progresso, o Ceuta, o Avis, e tantos outros.

O A...  (omito o seu nome por razões óbvias) estudava engenharia no ISEP (Instituto Superior de Engenharia do Porto), e já tinha a sua panca acentuada antes de chegar à Guiné.

Era o alferes miliciano A... L... que pertencia à Cheret – para quem não sabe, como eu não sabia, estava ligado a encriptação e desencriptação de menagens – e tem muitas histórias de conseguir pôr as transmissões do IN à volta da cabeça, com sucessivos códigos novos
. (Cheret é o acrónimo de "Chefia do Serviço de Reconhecimento das Transmissões".)

Isto porque um "cheret" anterior a ele, mas furriel miliciano, teria sido capturado, e isso significava  que o mais provável era ter passado tudo para os seus carcereiros. 

Estes combatentes não usavam armas, nem faziam serviços, estavam ligados ao QG/CCFAG– Rep não sei quantos,  das transmissões ou informações. Nem lhes era permitido ir em colunas ou outros meios de transporte terrestes ou fluviais, só por avião. 

Esteve em Bissau, depois em Catió e finalmente em Piche, quando aquilo já estava muito feio, já não era nada como no meu tempo, em que ia a Piche em colunas à boleia, só para conhecer melhor o que era a terra que me viu de G3 e farda camuflada.

Este colega e amigo, como estamos numa de "piadas de caserna", tenho dele uma de partir a moca. 

Quando o encontrei em Bissau, talvez dezembro de 67, eu não sabia que ele tinha ido para lá, encontro-o na Pensão da Dona Berta, acompanhado com a sua jovem esposa.

Conta ele que, depois de mobilizado, nada disse em casa, nem nem ele nem a namorada, os pais eram austeros e gente de dinheiro. Ele namorava a rapariga, e antes de sair, casou sem conhecimento de nenhum dos familiares de ambas as partes, não souberem de nada, só quando lá estavam em Bissau deram notícias.

Então ele não esperou pelo seu embarque gratuito, comprou bilhetes da TAP e lá foram eles para Bissau, onde passaram a sua Lua de Mel na Pensão da Dona Berta.

Andou assim uns 15 dias e nunca se apresentou no QG,  como seria normal. Conta ele que passeava na marginal com a mulher, e encontrou um militar muito zangado e com muita raiva, e dizia ele, que estava há mais de um mês à espera do seu substituto, e ele não aparecia nem ninguém sabia dele

– Possivelmente já desertou e eu aqui à espera dele!

Logo se desfizeram as dúvidas quando o outro disse que estava à espera de um alferes da Cheret!... Disse o A...:

 – Sou eu!!!

O resto não sei, mas foi uma alegria para o outro, e o A... nunca contou o que lhe aconteceu no QG.

Quando chegou aos 15 meses arranjou forma de ir parar ao HM 241 em Bissau, para a Psiquiatria, lá para maio ou junho de 69. Encontrou lá o outro A..., o F... da Companhia de Transportes, que vivia lá com a mulher e filha E..., que eu levava comigo a passear de mota, quando ia a Bissau. Tinha 3 anos, tem hoje 60.

Nessa altura estaria eu também na mesma zona da Psiquiatria. Eles foram mais espertos e lá conseguiram vir embora de avião militar, com destino ao Hospital da Estrela.

Mas em vez disso, resolveram ir para o Algarve e desenfiaram-se uns dias. O A... F....  já tinha mandado a mulher e filha para cá, e o A... L... já tinha mandado a mulher para a metrópole, a mulher tinha vindo muito antes. Como não ficou em Bissau, penso eu que ela veio recambiada.

O F...,  depois de cá chegar,  uns anos depois volta a frequentar a FEP (Faculdade de Economia do Porto) e acaba o curso e passa a ser um quadro importante do antigo BPA, depois BCP. Saiu reformado muito cedo com a pensão completa.

Ainda fiz alguns negócios com ele – com o Banco – em contratos "leasing" quer para mim quer para clientes. Não sei porquê, separou-se da mulher, que lá em Bissau trabalhava na Farmácia. Ficou solteiro. A mulher que casou com um juiz de Ovar, veio a falecer há um ano atrás.

Somos amigos e temos o nosso blogue – uma conta no WhatsApp com 7 amigos.

Em Bissau o F.... morava numa casa junto com o cunhado, o P... G...,  da CC e com a mulher dele,  a Ac..., irmã da mulher do F... Parece que não correu muito bem esta convivência conjunta.

Agora as irmãs já morreram, com um mês de diferença. O P...G... também aparece nos almoços do grupo, junto com o cunhado F...

A E.... casou e tem dois filhos, netos do F..., e encontramo-nos apenas nos
funerais das mulheres. Ela quase não me conhece, não se lembra, era muito miúda, é arquiteta e apresentou-me o marido, que tem como virtude ser mais um fanático do FCPorto, e que convida o sogro para ir ver os jogos do Porto na TV. O F... não gosta de futebol, mas puxa pelo Porto. O genro agradece.

Estou a fugir da conversa do A...L... da Cheret. Passaram à peluda, os dois A... (têm o mesmo nome). Eu e eles somos amigos do Café Cenáculo, desde os anos de 60. (Fica na Rua Antero de Quental.)

O A...L... perdi-lhe um bocado o rasto pois entretanto venho para Vila do Conde trabalhar numa multinacional sueca, e depois casei e mudámos para cá, e assim se foram perdendo lentamente os nossos amigos mais importantes, "longe da vista, longe do coração", quer para mim bem como para a minha mulher que já não tem amigas da infância e adolescência.

O A... entretanto divorciou-se, teve um filho da primeira mulher, que já adulto acabou com a vida, foi um rude golpe. Foi o A... que me contou cá em Vila do Conde, numa garrafeira de um amigo dele, onde nos encontramos. Fiquei chocado.

Entretanto ele vai abrindo o cofre e começa a contar a sua vida, com 3 casamentos e 3 divórcios à mistura. Tem filhas das duas últimas mulheres mulheres,   encontrando-se a viver em diversos países da Europa.

Ele ainda mantém relações de amizade com todas as suas mulheres e os filhos, mesmo a mãe do falecido, a sua primeira mulher que eu conheci em Bissau.

Há uns anos, cinco talvez, juntou-se com outra mulher, 5 anos mais nova do que ele, que era divorciada de um tal Virgílio – não sou eu – que também passou pela Guiné.

Alugou aqui uma casa, a 500 metros da minha, e está a viver com a dita – chamamos- lhe H...L... Passado um ano mais ou menos casaram pelo civil. O A... tem uma quinta em Entre-os-Rios , que tem um caseiro e está à venda mais ninguém lhe pegou ainda.

A atual mulher vivia no Porto, na Rua de Camões,  e tem um filho, que é surdo-mudo, casado com outra mulher com a mesma deficiência. O filho, que não conheço, não gostou deste ajuntamento da mãe e durante uns anos não se viam. O A... não se importava, porque não sabia como falar com ele em linguagem gestual, e assim festas e natais era tudo separado. 

Depois do último Natal, onde o A... foi passar com um amigo em Viseu, a mulher recebeu o filho em casa deles. Agora já se conhecem e tiveram nos anos de algum deles.

Quando o A... se juntou com a H...L...  foram mudar para casa alugada para os lados de Monte dos Burgos, perto do RI6, da Senhora da Hora.

Depois mudaram-se  para Vila do Conde, e hoje estamos todos os domingos de tarde, juntos, os quatro, em cafés cá em Vila do Conde.

Assim a minha mulher já tem com quem falar, pois entendem-se bem. Mas ela já vai dizendo que está cheia do A..., não sabe até quando o vai aturar.

 O A... tem apenas as filhas que estão ausentes, e os dois irmãos , um mais velho que "deu o salto"(para fugir da tropa) e já morreu recentemente, e o outro mais novo, que também ‘se safou da tropa’ por cunhas do pai dele, também já morreu. O A... andou também fugido, mas voltou ao serviço, não eram muito do sistema, nem o seu próprio pai e mãe, já falecidos.

O A...é bom rapaz, só tem dois defeitos:

(i) é do Benfica e abominava o Pinto da Costa, mesmo quando eles eram vizinhos nas Antas no mesmo prédio;

(ii) tem uma paixão, são os livros e vai a tudo que seja relacionado com a literatura e afins, pelo que só fala disso, e pouco se importa com a conversa dos outros: conhece os maiores nomes da nossa literatura, os mortos de os ler, e os vivos de conviver, o que não agrada nem à mulher, e muito menos a mim.

Mas lá vamos continuando com os nossos encontro, e agora que se juntou também o nosso Padre Bártolo, antigo capelão-mor na Guiné, Angola e Moçambique, e que depois viveu 30 anos em Genebra e tem altíssima cultura, e por isso agora eles falam um com o outro,  eu vou ouvindo sem nada perceber sobre as pessoas que falam.

O A... é de uma grande inteligência, formou-se em engenharia de sistemas digitais e afins, mas nunca pegou num computador e muito menos num "smart phone", tem apenas um telemóvel desses antigos da Nokia como tem a minha mulher, que não se deu com os outros.

Quando formamos o grupo do WhatsApp – Os veteranos da Guerra da Guiné – partilhamos mensagens e tudo o mais que vem à cabeça, especialmente coisas do outro mundo, fotos e vídeos de fazer corar um santo.

Como ele não tinha esse dispositivo, ficou associado ao da mulher, pois ele nunca tem o seu telefone ligado, nem servia para integrar o grupo WhatsApp.

Assim a partilha destas coisas todas que nós falamos e publicamos,  quem as via era a sua mulher,  a H...L, , até que um dia viu algo que não gostou mesmo, e telefona-me a perguntar o que era aquilo, por que razão recebia aquelas coisas obscenas... 

Lá lhe expliquei o engano e acabou-se a sua participação. Tudo o que tenho de lhe comunicar,  faço, diretamente a ele, para o telefone dela, mas jamais houve contactos, ninguém sabia disso e era tudo a abrir.

Não tem estes dispositivos nem quer, ele diz que nunca abriu um computador!...
Foi sempre professor universitário e chegou a sê-lo do meu genro, em algumas
disciplinas, ele formou-se em engenharia civil.

Para a Cheret só iam dois tipos de pessoas e com características bem vincadas:

  • quem era muito afecto ao sistema salazarista e agora até chamam de fascistas;
  • ou quem tinha inteligência excecional, especialmente ligada a números, para a função de encriptar mensagens.

Na primeira não cabia, mas sim na segunda e assim passou a ser um homem do sistema e bem controlado, digo eu.

Agora o que resta é esta quinta mulher, mas não têm filhos em comum, obviamente.

Ele é muito perfeccionista, tanto anda com uma T-shirt do Che Guevara, como um blusão camuflado, e tem como defeito principal, na perspetiva da mulher, o de comer muito e a toda a hora, e nós vemos isso nos lanches de domingo.

Fazem as despesas a meio, ela era bancária e recebe a sua reforma e a do falecido. Ele, dizem eles, que nem sabe quanto ganha, porque nunca consulta as contas!

A mulher, entretanto, arrendou a sua casa da Rua de Camões, e quando dá por ela, "já lá viviam dois gays: não pagam a renda e os advogados não veem maneira de os por de lá para fora, além de que são perigosos"...

Acho que, se ela recuperar a casa dela, vai acabar com tudo. Isto é  a nossa versão.

E assim vão as coisas.

Muito mais poderia aqui acrescentar, mas para já chega de conversa. Fim da novela, ao fim de um mês de a começar.

Em, 27 de março de 2025

Virgílio Teixeira

(Revisão / fixação de texto: LG)

_________________

Nota do editor:

Último poste da série > 16 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26693: HIstória de vida (58): Henrique Pereira Rosa (Bafatá, 1946- Porto, 2013): o fur mil OE, CCAÇ 2614 (Nhala e Aldeia Formosa / Quebo, 1969/71), católico praticante, luso-guineense, que chegou a presidente da república, interino (2003-2005), da Guiné-Bissau

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Guiné 61/74 - P26677: Humor de caserna (198): Carlos Fabião, um oficial duplamente superior, grandalhão e brincalhão (António Novais, ex-fur mil trms, Cmd Agr 2951, Cmd Agr 2952 e Combis, Mansoa e Bissau, 1968/70)

 

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Bambadinca >  CIM >  c. 1971/73 > A nova força africana... O major inf Carlos Fabião, na altura,  comandante do Comando Geral de Milícias, e o gen Spínola, passando revista a uma formatura de novos milícias.

Fonte:  Autor da foto: desconhecido. In: Afonso, A., e Matos Gomes, C. - Guerra colonial: Angol,a Guiné, Moçambique. Lisboa: Diário de Notícias, s/d. , pp. 332 e 335.. (Reproduzidas com a devida vénia).



1. O António Novais Ribeiro, engenheiro técnico (ISEP), reformado, morador na Senhora da Hora, Matosinhos, amigo da Quinta de Candoz, e agora maestro de um grupo coral e outro de cavaquinhos, contou-me, há um ano atrás,  várias histórias  divertidas do então major de operações Carlos Fabião com quem trabalhou no âmbito do Comando de Agrupamento 2952, em Mansoa, entre março e julho de 1968.

 São pequenas histórias que revelam muito do seu  caráter, sentido de humor, ar brincalhão, afabilidade, mas também da sua postura como homem, cidadão e  militar...  Merecem ser reproduzidas aqui na série "Humor de caserna" (*).

Parafraseando um conhecido provérbio popular ("Os homens conhecem-se pelas palavras e os bois pelos cornos"), poderíamos dizer que a um bom militar também não fica mal a boa disposição e o bom humor, qualidades que não têm que ser  incompatíveis com o exercício da liderança.

2. O Carlos Fabião apresentou-se no Cmd Agr  2952, em Mansoa, no dia 25mar68, com a patente de major, para ocupar o lugar de Of Op Inf (**). O António Novais era fur mil trms, trabalhando sob a dependência do alf mil trms, Luís Reis Torgal, hoje conhecido historiador e professor da Universidade de Coimbra, reformado.


Um dia chamou o fur mll Novais (era assim que o António era tratado) e entregou-lhe um "aviãozinho de papel" , pintado a cores e tudo:

− Novais, guarde-me aí na sua gaveta este aviãozinho.

− Para quê, meu major?

− Quando você tiver 53 aviões, avise-me para eu ir de férias!...

... E todos os dias lhe confiava um aviãozinho de papel, pintado às cores, até à véspera da sua ida de férias à metrópole...

3. Também era brincalhão, e gostava de pregar partidas aos seus subordinados, incluindo alferes e furriéis.
 
A sala de operações do Com Agr, em Mansoa, tinha um postigo de ligação ao gabinete onde estavam o Torgal e o Novais.

A secretária do Torgal estava encostada à parede que tinha o postigo, o qual, por sua vez, estava tapado com uma tampa do lado da sala de operações e com uma placa de platex perfurado, do lado do gabinete de transmissões.

O Fabião abeirou-se do postigo e disse ao Torgal:

− Torgal, chegue-se aqui ao postigo, pois que lhe quero dar uma informação.

O Torgal respondeu:

 − Diga, meu major!  

Ao que o Fabião lhe disse do outro lado:

− Encoste-se mais ao postigo…

O Torgal encostou a cabeça ao postigo e, do outro lado, o Fabião, que tinha preparado uma seringa com água, logo borrifou a cara do Torgal…

4. O Carlos Fabião costumava mandar aprontar uma viatura, aos sábados, e convidava alguns elementos do Agrupamento  para o acompanharem em visitas às tabancas de Mansoa para conviver com a população, em ações de psicossocial.  (O Novais disse-me que nunca foi.)

Nessas viagens, o Carlos Fabião, com a sua lendária coragem e empatia, costumava levar garrafas de aguardente de cana, para distribuir pelos balantas, os quais se manifestavam alegremente com exclamações de “Olha o nosso Fabião!", enquanto iam beberricando a aguardente…

5. Também desenhava muito bem... Um dia fez um "boneco" com a chegada do Nuno Tristão à costa da Guiné, em 1446... 

O navegador português morreria pouco depois com uma flecha, possivelmente envenenada. Antes de morrer, o Nino Tristão ainda tem tempo, no "cartoon" do Carlos Fabião, de exclamar:

−   Oh! Nem me deram tempo para fundar a Casa Gouveia…

6. Outro “cartoon” que fez, mostrava um quarto, uma mulher de joelhos na cama e com um lençol a tapar-lhe parte do corpo, bem como o seu amante a enfiar um punhal no buraco da fechadura do quarto, sendo que, do outro lado,  estava o Camões a espreitar. 

A legenda dizia: 

− Como Luiz Vaz perdeu um olho…

7.  Outra do Fabião:

O Cmd Agrup 2952 recebe uma mensagem Zulu ("Relâmpago"), secreta... O 1º cabo cripto decifrou-a, imediatamente, e logo a entrega, descodificada e em envelope fechado, ao furriel de transmissões, para ser entregue ao oficial de operações, major Fabião.

O Novais procura, a correr, o Fabião. Em vão, vasculhou tudo o que era sítio no quartel de Mansoa....

Esbaforido, já desesperado, acaba finalmente por o localizar na Secretaria do Agrupamento, onde não seria suposto estar.

Exclamou o Novais, à beira de um ataque de nervos:

− Porra, meu major, onde é que o senhor se meteu? Tenho aqui uma mensagem relâmpago para si, ando há duas horas à sua procura....

Ao que o Fabião responde:

− Novais, você sabe que a mensagem relâmpago tem o grau máximo de procedência, mas isso é para o cripto, e lá na tropa... Agora, aqui na Guiné, você tem 24 horas para ma entregar... Como só lá vão duas, ainda tem 22 horas de avanço...

Após a entrega da msg e,  quando o Novais chegava à porta de saída da Secretaria, o Fabião chamou:

− Novais!

Quando este se virou para atender à sua chamada, estava o Fabião com um mata-borrão, tipo bola de rugby que, chutando, disse: 

− Apanhe!...

A propósitos das mensagens... Recorde-se que a Z,  de ZULU (= Relâmpago) no centro cripto passava à frente de todas as outras: grau máximo de urgência.

 9.  Outra ainda que me contou o António Novais Ribeiro, membro da Tabanca de Candoz (e próximo grão-tabanqueiro)...  

Grandalhão de corpo e espírito, bem humorado  (ou já "apanhado do clima", como todos nós...), o major Fabião chamou o alferes Torgal, comandante do pelotão de transmissões do Agrupamento,  dizendo-lhe:

 − Torgal, quero o pelotão de transmissões todo formado, mas o Novais forma ao lado.

 Meu major, então porque é que o Novais forma ao lado, se eu é que sou o comandante do pelotão?

−  Porque eu quero correr-vos todos à chapada, mas o Novais forma ao lado porque não tem cara para aguentar duas chapadas!

[Texto: recolha, revisão e fixação: LG]

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Notas do editor:

(*) Último poste da série : 28 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26624: Humor de caserna (108): dicas da "medicina do viajante"...(Do blogue "Africanidades", do nossso amigo e histórico da Tabanca Grande, Jorge Rosmaninho Neto, desaparecido do nosso radar)

(**) Último poste da série > 30 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18965: (De)Caras (115): O Carlos Fabião que eu conheci (António Novais Ribeiro, ex-Fur Mil Trms, Cmd Agr 2951, Cmd. Agr 2952 e Combis, Mansoa e Bissau, 1968/70)

sexta-feira, 28 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26624: Humor de caserna (108): dicas da "medicina do viajante"...(Do blogue "Africanidades", do nossso amigo e histórico da Tabanca Grande, Jorge Rosmaninho Neto, desaparecido do nosso radar)



Jorge Rosmaninho Neto, andarilho africanista...agora desaparecido do nosso radar. Era (é) um dos 111 da Tabanca Grande.




1. José Rosmaninho Neto: "jornalista, independentista, alentejano" (sic),   viajante, professor (ocasional ?) na Guiné-Bissau, autor do blogue "Africanidades"... Um dos históricos do nosso blogue. Tem 20 referências. Com perfil no Blogger desde 2003... Nunca soubemos ao certo o seu poiso... Creio que era de  Évora. Em 2021 vivia na Suiça. Se calhar continua por lá.  Como muitos dos nossos "emigras"...

 Em suma, deixou de estar no nosso radar, desde finais de 2007... De qualquer modo, um homem não poder ser andarilho toda a vida... Para onde quer ele esteja, aqui vai o nosso "alfabravo".

Até finais de 2007 ainda trocámos algumas mensagens e publicámos algumas das suas fotos da Guiné-Bissau. Ofereceu-se inclusive para nos ajudar a organizar uma possível viagem àquele país onde, na altura, era cooperante (professor, se não erramos).

Sempre tivemos muito apreço pelo seu blogue Africanidades (vd. aqui no Arquivo.pt) de que se publicaram cerca de 300 postes, entre setembro de 2006 e maio de 2009.  Depois passou a ter uma página no Facebook mas perdemos o seu rasto.

Para "matar saudades", aqui vai com a devida vénia um texto do nosso amigo (que nunca fez tropa, pelo que ele nos contava nem teria idade para isso)... Um pequeno texto bem humorado sobre a "medicina do viajante"...


por Jorge Rosmaninho Neto


Tenho um desaguisado antigo com um certo tipo de médicos que trabalham no Instituto de Medicina Tropical, em Lisboa. Já aqui o assumi, depois de certo amigo, pela primeira vez em África, ter sido aconselhado a viajar para estes trópicos....

  • de gola alta (ridículo!);
  • botas por cima das calças (estúpido!) 
  • e camisola grossa, de noite, para se proteger dos mosquitos (idiota!).

Há lá pelo Instituto muita gente competente, avisada de África, conhecedora da realidade. Mas há também muita maçariquice, por parte de um certo tipo de gente que (arrisco a dizer) nunca foi nem sequer à Trafaria, ali em frente, do outro lado do Tejo.

Uns amigos que por aqui passaram na última semana, confessaram-me que a médica que os (des)aconselhou, no Instituto, lhes perguntou a certa altura onde ficariam instalados. Perante a resposta (“ficaremos em casa de amigos”), a doutorazeca disse:

- Então têm que ter mais cuidado ainda, porque essas pessoas que vivem em África têm a mania que nada lhes faz mal.

Néscios comentários como este provocam dois tipos de reacções:

  • uma, menos grave: um sorriso, por parte de quem aqui habita, pois de facto África não é papão de boca larga à espera da melhor oportunidade para comer tenros ocidentais!;
  • outra, mais grave: constrange quem viaja, obrigando as pessoas a adoptarem atitudes e comportamentos que afectam as suas férias (há quem traga água de Portugal e só beba dessa, desconfiada da água engarrafada que aqui se vende).

Na falta de camas em hospitais psiquiátricos para estes médicos, sugiro que sejam enviados para África. Desta forma poderiam: por um lado conhecer na prática a realidade local; por outro dar consultas de “medicina ocidental” aos que cá moram (os tais que “têm a mania que nada lhes faz mal”), antes de estes efectuarem viagens para a Europa.

Os verdadeiros perigos para a saúde dos viajantes estão lá, no primeiro mundo. Em primeiro lugar no plástico que se come e bebe. Depois, nas opiniões de médicos como estes.

Postado por Jorge Rosmaninho às 01:13 

(Seleção, revisão / fixação d e texto: LG)

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Nota do editor:

Ultimo poste da série > 21 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26604: Humor de caserna (107): "Teixeira Pinto colonizou a Guiné sem arcas frigoríficas", disse o Intendente em Bissau... Ao que o capitão, no mato, retorquiu: "Solicito envio urgente do Teixeira Pinto" (Aníbal José da Silva, ex-fur mil SAM, Vagomestre, CCAV 2383, Nova Sintra e Tite, 1969/70)

sexta-feira, 21 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26604: Humor de caserna (107): "Teixeira Pinto colonizou a Guiné sem arcas frigoríficas", disse o Intendente em Bissau... Ao que o capitão, no mato, retorquiu: "Solicito envio urgente do Teixeira Pinto" (Aníbal José da Silva, ex-fur mil SAM, Vagomestre, CCAV 2383, Nova Sintra e Tite, 1969/70)



Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CCAV 2483 (1969/70) > O magarefe Feio a desmanchar um javali, apanhado numa armadilha...Foto (e legenda): © Aníbal José da Silva (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Quínara > Nova Sintra > CART 2711 (1970/72) > s/d > Largada de frescos e correio, de paraquedas... Foto do álbum de Herlânder Simões, ex-fur mil d"Os Duros de Nova Sintra", de rendição individual, tendo estado no TO da Guiné, em Nova Sintra e depois Guileje, entre maio de 1972 e janeiro e 1974.

Foto (e legenda): © Herlânder Simões (2007). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Quínara > Carta São João (1955) > Escala de 1/50 mil > Posição relativa de Bolama, São João, Nova Sintra, Serra Leoa, Lala, Rio de Lala (afluemte do Rio Grande de Buba)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2020)





Aníbal José (Soares) da Silva, ex-fur mil SAM, vagomestre,
CCAV 2483 / BCAV 2867, "Cavaleiros e Nova Sintra", Nova Sintra e Tite, fev 1969/ dez 1970); técnico de seguros reformado; mora em Vila Nova de Gaia; é nosso grão-tabanqueiro nº 898; é autor da série "Vivências em Nova Sintra"; coautor do livro "A Guiné que conhecemos: na sequência do livro Histórias dos 'Boinas Negras' ",  ed. lit. Jorge Martins Barbosa. Porto: Fronteira do Caos, 2022, il, 402 pp.)


1. No último poste da série "Vivências em Nova Sintra" (*), o Aníbal José da Silva publicou um texto sobre a nossa alimentação, que eu comentei nestes termos:

(...) Fabuloso este texto do nosso vagomestre!... Dou-lhe os parabéns... Já o li e reli e vou comentar com mais calma. 

Os nossos filhos e netos, criados felizmente com mais fartura, deviam lê-lo e comentá-lo. Esta era realidade (brutal, em matéria de alimentação) de quem vivia no mato... 

Sei o que era receber, só para mim e o cabo das transmissões, uma lata de 5 kg de fiambre (dinamarquês...) numa Sinchã Qualquer Coisa onde estive destacado com a minha  seção de soldados fulas, muçulmanos, "desarranchados" (e que não comiam carne de porco)... 

Eu mais o cabo empanturrámo-nos de fiambre, num só dia... o resto foi para os cães e os "djubis" da tabanca, que lhe chamaram um figo...Um ou outro soldado lá terá quebrado o tabu alimentar religioso... Já não posso garantir, com total certeza, se algum deles provou o fiambre dinamarquês que me mandou o vagomestre da CCAÇ 12, o Jaime Soares Santos,  no reabastecimento semanal ou quinzenal... (Devo lá ter estado uma semana ou duas em reforço do sistema de autodefesa, logo no princípio da comissão (...).


Também o "(António) Carvalho de Mampatá" (que era fur mil enf,  CART 6250/2, 1972/74) comentou o poste valorizando a abordagem da questão da alimentação das NT no TO da Guiné e dos tratos de polé que tinham de dar-se os pobres dos vagomestres para nos encher o prato (e a barriga):

(...) O retrato que nos faz o Aníbal Silva do exercício da sua comissão enquanto vagomestre , é precioso ou até preciosíssimo. 

É a primeira vez que leio um depoimento com esta qualidade de pormenor. Fez-me bem lê-lo porque, desde logo, me fez imaginar no lugar dele ou de qualquer outro furriel vagomestre, numa aflição permanente, a tentar dar o melhor aos seus camaradas, sem ter onde comprar fosse o que fosse. 

A partir de hoje verei com outros olhos esses camaradas, os quais muitas vezes levavam com a revolta de toda a companhia quando, a maior parte das vezes não podiam fazer melhor. (...)  (*)


2. Um excerto deste poste merece figurar na nossa série "Humor de caserna" (**)...

O Aníbal, para além de ter sido um esforçado,  imaginativo e honestíssimo vagomestre que foi parar, ingenuamente, a Nova Sintra, por troca com outro camarada que ficou em Jabadá, na margem esquerda do rio Geba,  é um bom contador de histórias e tem sentido de humor. 

A gente aprendeu, na Guiné, a rir-se da porca miséria do nosso quotidiano  e das "mordomias" que a tropa nos dava... desde os "hotéis de cinco estrelas" em noites de raios e coriscos, às intragáveis rações de combate e aos vegetais "liofilizados" pelo Natal... 

Com tantas agruras por que passámos,  não valia a pena chorar... Bem, ao menos hoje a gente ri-se...ou sorri.

Com esta partilha de memórias sobre as agruras da vida de um vagomestre (que eram por tabela também as nossas agruras...), o Aníbal vai ajudar a abrir a "porta"  do nosso blogue a outros vagomestres, camaradas que devem ser credores da nossa gratidão por, na generalidade dos casos, terem feito o melhor que podiam e sabiam para nos garantir "o pão nosso de cada dia".. 

Como o António Carvalho diz, eram, pelo contrário, e  muitas vezes, o "bode expiatória" da nossa raiva, no rancho e na messe... Quantas pragas não rogámos aos "filhos da p*ta do nosso primeiro e do nosso furriel vagomestre"!...

É uma história "kafkiana", a do quotidiano dos nossos vagomestres... Dá para rir, com um sorriso amarelo e meia-cara... 

De qualquer modo, e ao fim de 20 anos a blogar,  não chegam a 4 dezenas as referências a esta figura da tropa, que era/é, o vagomestre (do francês, vaguemestre, do alemão, Wagenmeister: originalmente, o oficial, no Antigo regime, responsável pela gestão das colunas logísticas e, portanto, das provisões; depois, o sargento, responsável pelo correio militar, no exército francês; ou o responsável da alimentação de uma subunidade, no exército, português).

Já o Napoleão dizia que “um exército marcha sobre seu estômago” (""une armée marche avec son estomac"). Ou, por outras palavras, não se faz (e muito menos se ganha) a guerra de barriga vazia... (***)


As agruras da vida de um vagomestre

por Aníbal José da Silva


A alimentação para 160 homens, pela qual eu era responsável, era má. Lá diz o ditado que sem ovos não se pode fazer omeletes, nem transformar pedras em pão. Não podia transformar o chouriço enlatado num bom bife. 

Todos os géneros alimentares vinham da Manutenção Militar de Bissau. Não havia em Nova Sintra população civil a quem, eventualmente, pudesse comprar o que quer que fosse. As populações mais próximas estavam em Tite a 20 km, mas a estrada estava inoperacional tendo sido abandonada. Havia ainda, também a 20 km, o destacamento de S. João que ficava defronte a Bolama, mas separado pelo largo rio. 

No inicio da comissão ainda cheguei a comprar galináceos e porcos, quando lá fomos buscar o primeiro reabastecimento, mas foi sol de pouca dura, porque o CIM  (Centro de Instrdução Militar) em Bolama comprava tudo. 

Para além disso a estrada Nova Sintra a S. João estava normalmente minada e era por ela que as colunas de reabastecimento eram feitas. Lembro que por duas vezes nesta estrada foram acionadas minas que provocaram a morte a quatro camaradas e vários feridos, pelo que fazer uma coluna para ir às compras estava fora de questão.

Durante um mês, em vinte e sete dias eram fornecidas refeições à base de enlatados: chouriço, sardinha e atum de conserva, dobrada liofilizada, que era intragável, e eventualmente fiambre. 

As refeições de bacalhau eram sempre bem vindas, pena é que a Manutenção, em Bissau, só fornecesse metade do que era pedido.

Uma vez por mês eram recebidos géneros frescos (sardinha ou carapau, frango, ovos e alguns legumes), que tinham de ser consumidos em três dias, dada a precariedade das arcas congeladoras que funcionavam a petróleo e entupiam com facilidade. 

Luz elétrica só havia à noite. Durante esses três dias e à noite, dois homens faziam vigilância ao bom funcionamento das arcas. 

Um frango (por homem) podia dar para duas refeições, mas tinha de ser consumido quase de imediato, porque senão estragava-se. O grão-de-bico, o feijão frade e branco, o arroz e o esparguete, eram a base diária das refeições. Depois era só juntar o chouriço. Pela Intendência nunca nos foi fornecida carne de bovino ou de porco.

(...) Foi decidido que eu fosse a Bissau comprar carne congelada, na Manutenção Militar ou em talho civil. Assim foi feito. Aproveitando a passagem semanal da avioneta de sector, que trazia e levava o correio, desloquei-me a Bissau. Consegui comprar alguma carne de vaca. Transportei-a na bagageira e no  banco traseiro de um táxi até à base de Bissalanca, onde aluguei uma avioneta civil. Depois carreguei as peças de carne, às costas, desde o táxi até à avioneta. 

Enviei uma mensagem para Nova Sintra para que as arcas ficassem vazias, diga-se, de Coca-Cola, Fanta e principalmente cerveja, o que constituía outro sacrifício. 

Chegado ao quartel,  e dada a temperatura e humidade, já não se podia dizer que a carne estivesse totalmente congelada. Dada a precariedade das arcas, alguma carne estragou-se e a restante teve de ser consumida à pressa. Chamava-lhe eu a tortura da carne. 

Meses depois repeti a façanha, só que desta vez estragou-se mais carne. Dada a dificuldade de conservação e os custos,  inviabilizaram-se novas façanhas.

A caça tornou-se um filão a explorar. Liderada pelo António Soares (já falecido),  foi criada uma equipa de caça. Conseguimos abater algumas gazelas, pois não havia animais de maior porte. Mas durou pouco tempo porque as gazelas desapareceram da região.

Em determinado dia uma equipa de caça constituída por furriéis, foi tentar apanhar javalis. Mas nem vê-los ou sinal deles. Os javalis que conseguimos apanhar foram através de armadilhas. 

Numa zona de mangais, onde à noite eles iam comer o fruto caído, era colocado um arame de tropeçar preso a duas árvores. Ao arame prendiam-se granadas de mão sem cavilha. 

Na procura de alimento os javalis tocavam no arame e as granadas explodiam provocando-lhes a morte. No quartel que distava mais ou menos dois quilómetros, ouviamos os rebentamentos e dizíamos: “amanhã temos carne fresca”.

 O Feio, magarefe na vida civil, tratava de os abrir, limpar e esquartejar.

Todas as gazelas e javalis foram para outras paragens. Em toda a comissão foram pouco mais de uma dúzia destes animais que conseguimos caçar.

Restava a pesca. Não havia barcos nem canas mas havia granadas de mão. Aproveitando a maré baixa do rio e as represas que se formavam, eram lançadas granadas e o rebentamento elevava no ar uma espécie de repuxo de água, juntamente com umas dezenas de peixes, que depois ficavam a boiar na água. Depois era só apanhar, meter em sacos de linhagem, amanhar e cozinhar. Esta atividade foi a mais duradoira.

Para além do infortúnio da falta de géneros frescos, havia um outro problema que agravava a situação: a deterioração de alimentos. Um bacalhau com batatas caía sempre bem, tal como batatas fritas e fatias de fiambre. Mas muitas vezes ao abrir um caixote de madeira com 25 quilos de bacalhau ou uma lata grande de fiambre,  estes produtos estavam totalmente estragados e lá se iam os petiscos.

No que diz respeito à batata, produto também muito fácil de apodrecer, dados os trambolhões que levava no transporte e a humidade, para evitar grandes perdas, dia sim dia não, dois soldados retiravam as podres das prateleiras.

Os ovos que recebíamos mensalmente, em doses razoáveis, também se estragavam muito. Numa das vezes, porque havia algumas dúzias com a probabilidade de deitar ao lixo e coincidindo com o Dia da Cavalaria, o 21 de Julho, também data do meu aniversário, resolvi antecipar o Natal, mandando confecionar rabanadas. E mais um azar aconteceu. 

Alguns soldados estavam a assistir à fritura das ditas, muito próximos das grandes fritadeiras, lambendo os lábios à guloseima, quando se iniciou uma flagelação ao aquartelamento. 

O pessoal na ânsia de procurar uma vala onde se proteger ou o seu abrigo, bateu com as pernas nas pegas das fritadeiras,  virando-as. Após o ataque e refeitos do susto, ainda se aproveitaram algumas que não tiveram contacto com a terra e restou o cheiro para consolar.

O pão. Tivemos dois padeiros. O primeiro foi o Pedroso de Almeida, que habitava no meu abrigo e dormia no primeiro andar do meu beliche. Teve dois azares. Num dia ao acender o forno com gasolina virou-se de costas e a chama queimou-o. Foi evacuado para o Hospital Militar em Bissau. O segundo foi-lhe fatal. Morreu no acidente do rebentamento da mina de 24 de julho de 1969.

O segundo padeiro foi o José Manuel Bicho que exercia a profissão na vida civil. A farinha, dadas as temperaturas e humidade elevadas,  criava muitos pequenos bichos e na peneira não era fácil tirá-los todos e alguns apareciam no pão. Dizia ele que todo o pão levava a sua assinatura.

Para amenizar o desagrado das ementas, resolvi mandar fazer tabuleiros grandes para ir ao forno do pão, com a chapa dos bidões de azeite. Conseguimos assar bacalhau com batatas, carne de caça e peixe da bolanha.

 (...) Ainda relativamente à questão das arcas, conta-se como verdadeira a seguinte história. Determinada companhia, tal como nós, isolada no mato, tinha ficado sem arcas e frigoríficos e feito vários pedidos para que fossem substituídas. 

Em resposta a uma mensagem mais agressiva, por parte do capitão que estava no mato, a Intendência em Bissau, respondeu que "Teixeira Pinto colonizara a Guiné sem frigoríficos", ao que o capitão retorquiu: "Solicito envio urgente de Teixeira Pinto"...

Um mês antes de deixarmos o inferno de Nova Sintra, num reabastecimento de géneros, para além das rações de combate que havia requisitado, para a atividade operacional expectável e manter o stock, recebi a mais umas boas centenas de rações, com a agravante de algumas já terem excedido o prazo de validade e outras estarem quase. 

Era impossível consumi-las até à transferência do depósito de géneros à companhia que nos iria render,  a CCAV 2765, “Os Pica na Burra”. 

Servi-las em substituição da refeição quente, embora precária, seria estar a assinar a minha sentença de morte, pois o pessoal enforcava-me no embondeiro mais alto. 

Colocada a questão ao capitão e ao 1.º sargento, foi decidido colocar as caixas com as rações de combate, viradas para a parede escondendo o prazo de validade.

Fiz a transferência do depósito ao vagomestre “periquito”, que as “comeu de cebolada”,  mas tudo o resto estava em conformidade. Só que o 1.º sargento deles não era burro e,  como já tinha feito outras comissões, resolveu confirmar a passagem do testemunho e deu com a marosca.

Durante duas noites não dormi a pensar num eventual castigo e porque tinha colaborado numa situação que era contra os meus princípios, embora tivesse as costas quentes, pelo aval dado pelo nosso capitão. 

Os capitães e os 1.ºs sargentos das duas companhias lá chegaram a um entendimento e eu lá continuei a dormir descansado. 

Se revoltado estava com tudo por que passara até então, mais fiquei com os filhos da p*ta  da Manutenção de Bissau, que no descanso do ar condicionado, em vez de comerem as rações de combate,  as enviavam para os escravos que estavam no mato, mas condicionado ao ar. (...)

(Seleção / revisão e fixação de texto / título: LG)

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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 18 de março de 2025 > Guiné 61/74 - P26595: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (3): A Alimentação

quarta-feira, 5 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26555: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (11): A fome era má conselheira... e apertava mais no tempo das chuvas, em Sangué Cabomba, subsector de Cancolim




Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Carta de Bafatá (  1955) (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Bafatá e de Sangué Cabomba a sudeste, na estrada para Galomaro e Cancolim

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



1. O Rui Felício, um dos históricos da Tabanca Grande, é autor da série "Estórias de Dulombi", de que se publicarm 10 postes, até abril de 2013 (*). 

Está na altura de dar continuidade à série, com mais algumas "estórias" que vamos recuperando da sua página do Facebook...

 É o caso desta, que merece honras de blogue. Levou-nos algum tempo a descobrir onde ficava Cabomba. Afinal, já cá tínhamos o descritor, Sangué Cabomba. 

Espero que o Rui  não se zangue por este "roubo", que não é descarado, é discreto, sem á G3...  Digamos que é uma estória "emprestadada", já que ele se "esqueceu" de a mandar para o blogue..  É uma estória deliciosa, como é norma do autor, e que para mais envolve um outro histórico do nosso blogue, a quem saúdo: o nosso Paulo Raposo (também ele tem andado arredio das nossas lides bloguísticas). 

Um e o outro foram alf mil da CCAÇ 2405 / BCAÇ 2852 (Dulombi, 1968/70). 

Vivam os "baixinhos de Dulombi"!  (Era a divisa da companhia, que pertencia ao batalhão a que eu estive adido um ano em Bambadinca.)


A DIFICIL SOBREVIVÊNCIA NA GUINÉ

Por Rui Felício


Cabomba era uma tabanca estrategicamente situada num entroncamento de picadas que ligavam Galomaro e Bangacia a Cancolim. O Paulo Raposo que antes tinha estado destacado em Campata, foi deslocado com o seu pelotão para este novo local.

Há mais de quinze dias que as chuvas tropicais intensas não paravam de varrer a zona, tornando intransitáveis os caminhos, impossibilitando o reabastecimento de viveres armazenados em Bafatá e Galomaro.

As reservas alimentares estavam na penúria e havia trinta soldados para alimentar. O Raposo, sensível a garantir o mínimo de bem-estar possivel aos militares sob a sua responsabilidade, vivia a cada dia uma preocupação maior.

Certa manhã, ciente de que tinha de encontrar uma solução de emergência, depois de em dias anteriores ter tentado sem sucesso vencer o lamaçal da picada para Galomaro, decidiu dirigir-se a uma pequena tabanca das imediações, montado num pequeno Unimog juntamente com meia dúzia de soldados.

Lá chegado, falou com o chefe da tabanca,  que sabia possuir algumas vacas. Propôs-lhe que lhe vendesse uma delas, mas o homem recusava terminantemente desfazer-se de qualquer uma das suas vacas, que, aliás, eram um sinal de riqueza do proprietário e que dela, teimosamente, não abdicava.

O Raposo insistiu, oferecendo-lhe um valor justo pela compra. Mas o chefe de tabanca estava irredutivel. Não era uma questão de preço. Simplesmente, não a queria vender.

Já impaciente, o Raposo invocou a sua autoridade militar e a necessidade absoluta de levar a vaca. Pegou num punhado de notas e, como o homem não as quisesse receber, atirou-lhas aos pés e mandou atar a vaca ao Unimog com uma corda.

Arrancou em direcção a Cabomba, em marcha lenta, com a vaca a trotar atrelada pela corda.

Chegado ao destacamento, desmontou e caminhou em direcção ao abrigo quando um soldado o abordou:

− Oh meu alferes, então e agora? Como fazemos para abater a vaca?

O Raposo, irritado com toda aquela complicada negociação, virou-se para trás, pegou na G3 e abateu a malfadada vaca.

Encarou o soldado e vociferou:

 A vaca está morta. Vê lá se também queres que seja eu a esfolá-la !

Rui Felício

NB - Que me perdoe o meu amigo Raposo. Mas estou a vender o peixe pelo mesmo preço que na altura o comprei. RF

Fonte: Página do Facebook do Rui Felício > 6 de dezembro de 2024 ·

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)

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Nota do editor LG:

(*) Último poste da série > 23 de abril de 2013 > Guiné 63/74 - P11447: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (10): Regresso a Samba Cumbera, a sudoeste de Galomaro, 42 anos depois...

domingo, 2 de março de 2025

Guiné 61/74 - P26543: Humor de caserna (106): "Senhora enfermeira, quero fazer chichii!"... (Leite Rodrigues, 1945-2025 / José Teixeira)


1. Dizem que os bois se conhecem pelos cornos, e os homens pela(s) palavra(s)...

Os homens também também se conhecem pelo humor, mais fino ou mais alarve, mais inteligente ou mais brejeiro (*), mais "soft" ou mais "hard"... E não importa as situações: em casa ou no trabalho, na rua ou no salão, à mesa ou no cama do hospital, na paz ou na guerra... 

Mal de nós, humanos, quando perdermos o sentido de humor, coisa que os robôs nunca terão, espero bem... Nem têm os ditadores e aprendizes de ditadores, os censores, os arrogantes, e os que pensam que são donos disto tudo...

Esta "história" do nosso já saudoso Leite Rodrigues (1945-2025) que, além de grande senhor do hipismo e do olimpismo, foi nosso camarada (e continua a sê-lo, respousando agora à sombra do nosso poilão), diz muito sobre ele, a sua personalidade, a sua história de vida...É aqui reconstituída (ou recontada) pelo régulo da Tabanca de Matosinhos, José Teixeira:

Excerto do poste P26523 (**):


Senhora enfermeira,  quero fazer chichi!  

(Leite Rodrigues, 1945-2025 / José Teixeira)


O Leite Rodrigues era um exímio contador de histórias, não só da guerra, mas também...

Contava ele que o avião que o trouxe, ferido, da Guiné, veio de noite de modo a chegar a Lisboa no escuro da alta madrugada, para não serem notados, e vinha carregado de feridos muito graves. 

O que estava em melhores condições era ele, que apenas vinha com uma fome de criar bicho, com a língua traçada e a boca selada com arames, pois os ossos do queixo ficaram em bocados. 

Entre os feridos, vinha um grande grupo de queimados em grau elevado, devido ao rebentamento de uma granada incendiária num embate com o inimigo, creio que em Bula. Todos embrulhados em gaze, pareciam múmias, era assustador e doloroso olhar para aquelas criaturas, comentava com ar pesado o Leite Rodrigues, nas suas lembranças, passados tantos anos…

Acompanhavam-nos duas zelosas enfermeiras, que tudo tentavam para lhes amenizar as dores. Às tantas ouve-se um gemido. 

– Senhora enfermeira,  quero mijar! 

E logo uma sorridente bata branca se aproximou, desapertou-lhe a carcela, e o pobre do rapaz aliviou-se. De seguida, todos os queimados, em carreirinha, apelaram às enfermeiras para os pôr a mijar…

 E foi assim durante o resto da noite. E, ele que nem falar podia, apreciava silenciosamente a paciência e o zelo das queridas enfermeiras.

Quando chegaram a Lisboa, desembarcaram e seguiram para o Hospital em ambulâncias militares, sem fazer o tradicional ninau! ninau!ninau!, para não incomodar os lisboetas.

Encaminharam-no para uma camarata, e atribuíram-lhe uma cama no R/C. Ao pousar os seus haveres tocou em uma coisa dura, que tombou ruidosamente.

O Camarada que dormia no primeiro andar disparou:

– Deste-me cabo da perna, amanhã vou foder-te o juízo!

O Leite Rodrigues tentou dizer-lhe que foi sem querer, mas apenas consegui balbuciar, nh! nh! nh!

– Tu grunhas,  meu filho da...p*ta!... Quando me levantar vou te partir os queixos!

No dia seguinte de manhã, cruzaram o olhar calmamente, e descobriram que tinham sido colegas do mesmo pelotão na recruta em Mafra. Um abraço não esperado, sem palavras, mas sentido. Do Leite Rodrigues apenas se viam os olhos; o camarada chegara uns tempos antes vindo de Moçambique, sem uma perna que fora levada por uma mina antipessoal. estado do povo e sobretudo de nós os jovens dessa altura. 

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)
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Notas  do editor LG:

(*) Último poste da série > 28 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26537: Humor de caserna (105): Ir às meninas ao Pilão, todo pipi, de calça e camisinha branca, e pingalim debaixo do braço... Mas o terreno estava "minado"... (José Ferraz de Carvalho, Tabanca da Diáspora Lusófona)

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26537: Humor de caserna (105): Ir às meninas ao Pilão, todo pipi, de calça e camisinha branca, e pingalim debaixo do braço... Mas o terreno estava "minado"... (José Ferraz de Carvalho, Tabanca da Diáspora Lusófona)


1. O José Marçal Wang de Ferraz de Carvalho, ou apenas José Ferraz de Carvalho é um camarada da diáspora lusófona: ex-Fur Mil, Op E Esp, CART 1746, e QG/CTIG Xime e Bissau, 1968/70); radicado em Austin, Texas, EUA, desde meados de 1970; tem duas dezenas de referências no nosso blogue; faz parte da Tabanca Grande desde 19 de novembro de 2011; é autor da série "Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz", de que se publicaram 13 postes, de novembro a dezembro de 2011. Ainda há tempos nos contactou, espero que continue a seguir o nosso blogue.

É um homem com um especial sentido de humor como se comprova com esta "história pícara" de uma ida noturna ao Pilão, com um amigo do peito (e de farras). Ele chamou-lhe um "acidente" (*)... Eu acho que é um eufemismo... E mais: uma parábola sobre a nossa guerra... Na altura, escrevi o seguinte comentário: 

(...) Quer se goste ou não, o Pilão fazia parte do "anedotário" e do "imaginário" do Zé Tuga...

Pergunto-me: como é que tu, 40 anos depois, te foste lembrar desse "acidente", associado à "friday night fever" (febre de sexta feira à noite) ?...

Sim, porque no Pilão, no nosso tempo, todos os dias da semana eram de "febre de sexta-feira à noite", de segunda a domingo, sobretudo para os "desenfiados" do mato como o teu amigo A.T....

Confesso, sem qualquer pinga de pudor, que ri sozinho que nem um perdido ao editar o teu poste... Tens um piadão a contar esta cena (caricata) e ao descreveres o infortunado mas pimpão do teu amigo como "o maestro do cagalhão"...

Podemos discutir por é que os seres humanos têm uma especial temdência para se rirem do ridículo, do grotesco, do burlesco, do pícaro,  do caricato... A tua "pequena história", que nada tem de heróico, ajuda a compreender a necessidade que nós, os operacionais, a malta que vinha do mato, tínhamos de "humanizar" o nosso absurdo quotidiano e de mantermos algumas das rotinas que nos prendiam ao fio da vida... 

Como diria um sisudo académico que eu conheço, isto dava uma tese de doutoramento... se a academia portuguesa tivesse um bocadinho do teu "sense of humor"...


Luis Graça sábado, 26 de novembro de 2011 às 21:01:00 WET 



Humor de caserna >  Ir às meninas ao Pilão, todo pipi, de calça e camisinha branca e pingalim debaixo do braço... Mas o terreno estava "minado"... 

por José Ferraz de Carvalho (Austin, Texas)



Um dos meus amigos fixes desse tempo era um furriel miliciano, destacado no Cacheu, que sempre que conseguia,  desenfiava-se e aparecia em Bissau, quase sempre de madrugada.

Abreviadamente, era o A. T....Vinha bater a porta do meu quarto sempre com a burra e o mesmo grito:

 Zé, acorda vamos pró Pilão que as meninas estão à miii...nha espera!!!

Ora bem, quase sempre durante a minha estadia em Bissau, conseguia que o "nosso primeiro", responsável pela distribuição de alojamentos, se esquecesse de que no meu quarto havia duas camas. Portanto, quando os meus amigos vinham a Bissau, sabiam que tinham onde ficar...

Numa dessas visitas, o A.T. comprou um pingalim de pau santo, igual ao meu, que usava quando eu ia ao Pilão. Era uma excelente arma de defesa porquanto,  se houvesse necessidade, partia-se com o joelho e tinhamos dois punhais improvisados...(truque aprendido em Lamego).

Como eu ia dizendo, numa dessa visitas, depois de se recompor e depois do jantar, era da ordem a visita ao Pilão, depois de o A.T. ter feito, durante o dia, o respectivo reconhecimento. Dizia ele então:

   Ó Zé, descobri estas meninas e temos que lá ir hoje à noite, pá. 

 A.T. estava convencido que era o Adónis de toda a Guiné, não só do Pilão. Nessa noite parece que o estou a ver vestido a rigor, todo pipi, de calças e camisinha  branca,  e de pingalim debaixo do braço. 

Arrancámos pró Pilão e fomos para uma área que eu desconhecia, o que me preocupava e perguntava-lhe:

 Ó pá, tu sabes para onde vais ? Parece-me bem que não...

O A.T. respondia-me:

  Sei, sei, é por aqui...

E lá íamos cada vez mais embrenhados em território inimigo... Noite de lua nova, escuro como breu, a única coisa que eu via era o branco do A.T.... De repente o A.T. desaparece da minha vista (ia vários passos à minha frente) e, antes que eu pudesse falar, ouvi-o vociferar:

− Ah, foda-se!| Porra! C... ! Ó Zé,  ajuda-me!...

 − Porra, onde é que estás ?   pergunto eu...

 − Aqui, pá!

Acendi o isqueiro e com a pouca luz que dava vi que o A. T. tinha caído numa fossa de merda, atascando-se até ao peito e de pingalim na mão a gesticular... Parecia o maestro dos cagalhões!...

−  Ó Zé, ajuda-me! Foda-se!...

Tirei o meu cinto, passei-lhe uma ponta e ajudei-o a vir para terra firme... Ah, meu Deus, e o cheiro..., poça!

E aí fomos os dois andando em busca de lugares conhecidos com o A.T., caminhando de pernas abertas, e deixando um rasto de merda... E os dois, às gargalhadas. 

Lá chegámos ao pé do quartel da PSP onde entrei para chamar um táxi para o levar para o hospital militar onde recebeu um banho de antibióticos e mais não sei quantos medicamentos.

O resto deste acidente: o taxista que chegou quando viu o estado em que estava o A. T., disse logo:

 Não, senhor, não entra no carro, nunca mais tiro esse cheiro do assento!

Por sua vez, os cabrões da PSP não deixaram o A. T. usar os seus chuveiros. Lá consegui uma mangueira da PSP. O A.T. despiu-se e eu de mangueira na mão a dar-lhe um duche como se estivesse a lavar um cavalo...

Já mais limpo e tremer de frio, lá o meti no táxi e toca a ir pró hospital... Arrancámos, e agora imaginem a malta do hospital quando aí chegámos, de táxi, com um passageiro nu em pelota e a tremer de frio... Disse o médico que o viu:

 Teve muita sorte e lavar-se foi muito boa ideia...

 OK, o que não sabe é que, sem essa lavagem, tínhamos que vir à pata para o hospital.

Graças a Deus o A.T. não só sobreviveu a este acidente como recuperou a sua saúde. Em 1974 quando levei a minha então esposa a Portugal para conhecer o resto da minha família e amigos, tive o prazer de o convidar para vir jantar connosco e estivemos noite fora à conversa:

 − E lembras-te disto... e lembras-te daquilo ?...

Sinto enormes saudades desse amigo e camarada. (**)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, itálicos, título)

______________

Notas do editor:


(*) Vd. poste de 26 de novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9101: Se bem me lembro... O baú de memórias do Zé Ferraz (7): Um acidente... no Pilão

(**) Último poste da série > 23 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26522: Humor de caserna (104 ): "Ontem fui ao Pilão, o que não quer dizer que fui às p..." (Bissau, 16 de dezembro de 1973, in: António Graça de Abreu, "Diário da Guiné", Lisboa, Guerra e Paz, 2007).

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26529: As nossas geografias emocionais (47): Bissau, Cupelon / Pilão: histórias pícaras - Parte I (Rogério Cardoso, ex-fur mil mec auto, CCAÇ 643, Bissorã, 1964/66)



Guiné-Bissau > Bissau >  Planta de Bissau (edição, Paris, 1981) (Escala: 1/20 mil) > Posição relativa do bairro do Cupelon, ou "pilão", como diziam os "tugas" (assinalado com retângulo a amarelo)... Hoje é conhecido como Cupelum. Fi
ca(va) à esquerda da nossa conhecida estrada de Santa Luzia, portanto paredes meias com o QG/CTIG, em Santa Luzia... O Pilão fazia parte das nossas geografias emocionais... A noroeste,  a seguir a Missirá, no sentido de Brá e Bissalanca, ficava o bairro da Ajuda, reconstruído entre 1965 e 1968 (assinalado a azul).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)


1. Há escritos dispersos, no nosso blogue, sobre o Pilão, bairro popular de Bissau, que merecem ser aqui relembrados, na série "As nossos geografias emocionais" (*)... São historietas  pícaras que também servem para descontruir o mito de que o Pilão (corruptela do crioulo Cupelon, hoje Cupelum) era um antro de prostituição, marginalidade e "terrorismo"... 

A primeira crónica pícara que escolhemos é do Rogério Cardoso, ex-fur mil, Cart 643 / BART 645, "Águias Negras" (Bissorã, 1964/66)... O autor tem 6 dezenas de referências no nosso blogue, que integra desde dezembro de 2009. 

Faz também parte da Magnífica Tabanca da Linha. Era do Serviço de Material / Manutenção Auto. Tem uma cruz de guerra de 4ª classe,  No nosso blogue é autor da série "Notas Soltas da CART 643" de que se publicaram 26 postes, entre janeiro e julho de 2010.

Pelo que se deduz do texto (**),  o Pilão já fazia parte do roteiro da noite de Bissau, em 1964, tal como o Café Bento (o Rogério Cardoso esteve no CTIG entre março de 1964 e fevereiro de 1966).  

O autor faz referência a um grande incêndio que lá teria ocorrido. Trata-se provavelmente do incêndio que devastou o antigo bairro da Ajuda. Mas isso foi no início de 1965. Um novo bairro foi  construído, por iniciativa das Obras Públicas locais e com a ajuda da tropa,  para os desalojados (140 casas e equipamentos sociais estavam prontos em 1968). 

O bairro da Ajuda ficava localizado a oeste da cidadezinha colonial do nosso tempo, a seguir ao Cupelon e a Missirá, mais ou menos a seis quilómetros do centro, a caminho de Brá e do aeroporto de Bissalanca, a noroeste; em frente ao bairro da Ajuda, no lado esquerdo da estrada, ficava o HM 241.

O que importa sublinhar, da leitura desta "visita obrigatória" ao Pilão, é que também nessa época havia militares pouco disciplinados que iam provocar desacatos ao bairro que, de resto, era patrulhado pela tropa.  

Dois figurões da noite de Bissau desse tempo seriam o "Mouraria", fuzileiro, e o "Braga", paraquedista. O Rogério Cardoso ("periquito" ou "maçarico", como ainda se dizia nos primórdios  da guerra na Guiné...)  foi lá com eles, e parece que não ganhou para o susto... 

De qualquer modo, ir ao Pilão fazia parte dos  "comportamentos de bravata" de alguns militares que, em caso algum, eram representativos das NT...



Pilão, uma visita obrigatória


por Rogério Cardoso (*)


Quem não se lembra do célebre Bairro do Pilão, junto às bombas de gasolina da Sacor ?!

Bairro situado à saida da cidade de Bissau, junto à estrada para Bissalanca, problemático pois diziam esconder elementos inimigos, que não era difícil porque eles não estavam rotulados, eram iguais em tudo aos restantes residentes.

Estas afirmações têm fundamento, na medida em que em certa altura houve um incêndio de grandes proporções, em que se assistiu ao rebentamento de munições e granadas.

Mas não estou escrevendo estas "Notas Soltas" para contar o que foi o Pilão, todos nós o sabemos de sobra, mas sim para narrar uma cena que poderia ser fatal para mim.

Certa noite, sendo eu ainda muito "maçarico" , tendo talvez pouco mais de um mês de Guiné, e sendo o Café Bento,  na avenida principal,  o meu local preferido para depois de jantar, fui abordado por dois ex-combatentes, solicitando a minha permissão para se sentarem nas duas cadeiras junto à minha mesa, já que estava a esplanada cheia.

Claro,  eu respondi-lhes afirmativamente e de imediato os três bebemos umas cervejas frescas. Eles eram sobejamente conhecidos, um o Fuzileiro de alcunha "Mouraria",  e o outro o Pára "Braga", dois elementos que desde logo me pareçeram uns camaradões, mas que mais tarde vim a saber serem individuos complicados no aspeto disciplinar, estavam sempre prontos para a pancada por tudo e por nada.

Entretanto e depois das cervejas, fui convidado por eles para uma visita ao Pilão, havia lá um bailarico com mornas e coladeiras e,  claro, material feminino.

Lá fomos entusiasmados pela juventude dos 23 anos, de facto era verdade e a nossa integração no bailarico foi imediata.


Entretanto o Mouraria arranja logo um desaguizado com um elemento cabo-verdiano que dançava com uma guineense de alcunha  a "Muda". O nosso amigo queria a toda a força dançar com ela e, palavra puxa palavra, com empurrões à mistura, rapidamente passaram à agressão fisica.

Os amigos do cabo-verdiano, cerca de 20, igualmente entraram na luta, assim como o Braga e claro logicamente eu também. A desvantagem como facilmente se percebe era abismável e os dois,  com conhecimento de sobra, tanto da nossa desvantagem como do terreno para uma fuga com êxito, não esperaram e evaporaram-se em segundos. 

Eu não tive alternativa, fugi também e rapidamente, sem saber para onde ir, e depois de andar deambulando pelos becos com uma noite com escuridão total, decidi esconder-me debaixo de uma "casa" (ou morança), pois elas estavam implantadas sobre pilotis de madeira.

Depois de uns minutos que me pareciam horas, porque ouvia e sentia que era perseguido por um grupo numeroso, pelas vozes e barulho, aproveitei um silêncio repentino e saí. Foi então  que senti um pouco mais à frente uma mão no meu braço e uma voz dizendo:

 
−  Oh,  meu furriel,  venha já comigo.

Senti que era um amigo e segui-o rapidamente, finalmente estava a umas escassas dezenas de metros da estrada principal. Quem me ajudou, estava presenciando a cena de longe, conheceu-me porque eu tinha sido seu instrutor em Santa Margarida uns meses atrás.

Serviu-me de lição: primeiro,  não me meter em terrenos desconhecidos; e, segundo, saber escolher os companheiros de farra.

(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)


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Notas do editor LG:

(*) Último poste da série > 22 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26517: As nossas geografias emocionais (46): Quem se lembra do Café Portugal, junto ao Hotel com o mesmo nome, na Praça Honório Barreto (hoje Che Guevara) ?