2. Do livro "A Criação do Mundo" (2000) (que o Miguel Torga começou a escrever, como romance autobiográfica, em meados dos anos 30), vamos publicar, com a devida vénia, três pequenos excertos relativos à sua ida para (e os seus primeiros tempos em) o seminário de Lamego, em 1918. É uma descrição antológica, e nomeadamente a viagem de Agarez (nome ficcionado de São Martinho de Anta, terra natal do escritor) a Lamego.
A ida para o seminário de Lamego, em 1918
(Miguel Torga, A Criação do Mundo", 2000. Excertos)
[…] Pouco tempo depois dos exames, o senhor Botelho mandou chamar o meu Pai, e teve com ele uma longa conversa na minha presença. Era pena que eu não seguisse os estudos. Sabia das dificuldades em que vivíamos, que os tempos iam maus, e tudo o mais. Em todo o caso, que visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila.Meu Pai sorriu tristemente. O senhor Botelho estava a mangar... Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada.. Gostava, gostava, de me ver professor, ou médico, ou advogado.. Mas, nicles, faltava o melhor! E onde o não há, el-rei o perde... Já se lembrara do seminário. Aí é que talvez pudesse ser. Se arranjasse a maneira de meter-me de graça ou a pagar qualquer coisa pouca...
O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso! Os melhores alunos, que lhe passavam pelas mãos, ou ficavam ali amarrados à terra, a embrutecer, ou eram arrebanhados pela Santa Madre Igreja. Não! Tudo, menos papa-hóstias. Então, antes o Brasil.
– É o que terá mais certo... concluiu meu Pai, resignado. – A cavar é que não fica. Bem bastou eu. [pág. 40]
[…] Ia na frente, de fato preto, montado na jumenta, a segurar o baú de roupa que levava adiante de mim. Meu Pai e minha Mãe vinham atrás, a pé, ele com os ferros da cama às costas, e ela de colchão e cobertores à cabeça. Assim percorremos as seis léguas que vão de Agarez a Lamego, pelo caminho velho. Senhora da Guia, Senhor do Bom Caminho, Senhor da Boa Morte, Vila Seca, Poiares, Régua… De alma negra, olhava a paisagem grandiosa que nos acompanhava , e via nela apenas a minha sombra. Papa-hóstias, como dissera o senhor Botelho... Era tudo o que eu poderia vir a ser na vida.
Recebeu-nos no pátio da casa do senhor cónego Faria, a quem íamos dirigidos, um sacerdote novo e magricela, que mais tarde vim a saber que se chamava padre Monteiro. Meus Pais cumprimentaram-no respeitosamente, mas, em vez de lhes seguir o exemplo, fiquei ostensivamente calado. O desespero que sentira toda a viagem transformara-se numa raiva cega, que me estrangulava a voz. Meu Pai reparou na má criação, repreendei-me. Lá arranjei fala e gaguejei:
– O senhor passou bem ?
O sujeito olhou-me de esguelha, disse que sim, e perguntou se eu era piedoso. Ao que o meu o Pai respondeu solícito que, quanto a isso... Além de ser bom rapaz e muito inteligente.
Comprometido, pus-me a arranjar o cabresto à burra e a relancear as janelas da casa solarenga, a ver se via o bispo. Era uma das minhas aspirações em pequeno: ver um bispo.
Por fim, o homem deu-nos um bilhete para irmos entregar ao número quarenta e dois de uma rua assim, quem subia, à esquerda.
Lá fomos, e lá fiquei.
Lavado em lágrimas, despedi-me de meus Pais, que meteram afoitamente pela ladeira acima a tanger a burra, que queria ficar. Ainda em soluços, vi-os dobrar a esquina e desaparecer. A enxugar os olhos, subi os três lanços da escada que levava ao segundo andar, onde encontrei os companheiros que iria ter.
Passei o resto do dia à espera de ouvir daqueles desconhecidos uma palavra de consolo. Mas eram infelizes como eu, que a pobreza trouxera até ali, sem calor no coração para repartir. Benzeram-se e rezaram antes e depois do jantar, e eu imitei-os. Quando bateram as dez, enfiaram-se na cama. O que fiz também.
Dormi mal. Pela manhã, o prefeito mandou-me rapar o cabelo à escovinha. Depois fui submetido a um rigoroso inventário, que escancarou à luz do sol os meus haveres materiais e espirituais. Fiquei no primeiro ano.
O nosso vigilante chamava-se senhor Ramos. Estava no fim do curso e namorava a filha do dono da casa, que tinha alfaiataria no rés-do-chão. A República tomara conta do edifício do seminário e transformara-o em quartel. Por isso víviamos em grupos de dez e doze, espalhados pela cidade, comandados por um mais velho, e íamos às aulas à residência dos professores.
No dormitório havia apenas um bacio para cada duas camas. O que me pertencia ficava debaixo da do Arménio que, quando eu acordava, já o tinha cheio. O recurso, claro, era ir à varanda. A primeira vez que tal me aconteceu, fiquei aflito. Quem é que se atrevia a mijar lá para baixo, diante do palácio das Brolhas, de fachada imponente e brasão coberto de luto, ali a ver-nos ? Mas a natureza apertava e o frio também. E abri a torneira. [pp. 53/55]
[…] De novo no seminário, agarrei-me ao estudo com unhas e dentes. À febre de aprender, juntara-se um sentimento surdo de revolta, e só encontrava sossego a devorar laudas. Aos Domingos, ensacado na batina do primo santo, que o dono da casa arranjara à medida do meu corpo, ia passear. Juntávamo-nos todos na Sé, assistíamos à missa, e no fim, a ouvir obscenidades dos caixeiros aperaltados, que tocavam no cotovelo do vizinho a passar o enguiço – Lagarto! Lagarto! –, seguíamos a dois e dois para a Meia Laranja, ao fundo da escadaria da Senhora dos Remédios, e aí nos divertíamos.
Numa dessas ocasiões, jogava-se o rim cavalo.
– Quem joga o rim cavalo?
– Há cá quem!
– E se bater na burra?
– Fica tudo bem.
Como andava fraco, a certa altura fui substituído e fiquei a ver. Às tantas por acaso, dei falta do senhor Ramos. Relancei os olhos à volta, e nada. Onde diabo se teria metido? Fiquei admirado daquela ausência, mas acabei por me distrair. Até que passado um grande pedaço ele apareceu.
No passeio seguinte, repetiu-se a mesma cena. E aquilo começou a meter-me confusão. Deixei os companheiros na brincadeira e, como quem não quer a coisa, meti pelas alamedas do parque à procura do prefeito, de olhos afiados para dentro das moitas mais espessas. Mas não fui longe. Quando menos esperava, tive de retroceder a galope. Dum maciço de acácias começaram a chover pedradas sobre mim. Não contei nada aos outros, e quando o sujeito apareceu fiz-me desentendido.
Já na forma, acabei de saber o resto. Por um carrocho íngreme, descia da mata para a cidade uma rapariga nova, vestida de preto. Era a filha do alfaiate.
Foi então que me apareceram aquelas súbitas saudades da Aurora que, no jogo das escondidas, levantava o vestido na casa da lenha, onde nos refugiávamos.
– Ó Aurora, mostra, mostra… [pp.61/62]
In: Miguel Torga - A criação do Mundo, volume I. Lisboa: Editora Planeta de Agostini, 2002, pp. 40, 53/55, 61/62
(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos e itálicos, parênteses retos, links, para efeitos de edição deste poste: LG)
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Nota do editor:
Último poste da série > 11 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24548: Antologia (97): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: O caso da ajuda ao PAIGC – Parte VIII