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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26532: In Memoriam (535): Leite Rodrigues (1945-2025), cap ref da GNR, cavaleiro olímpico, ex-alf mil cav, CCAV 1748 (1967/69), voltou, em abril de 2017, aquela "terra verde-rubra" que continuou a amar, apesar de lá ter sido ferido gravemente em combate, em outubro de 1967 (Fotos: José Manuel Cancela)


Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Zona Oeste >  Hotel Rural de Uaque, próximo de Mansoa > Abril de 2017 > O Leite Rodrigues e a sua "pileca" guineense...  Um cavaleiro olímpico mostra o saber-ser, o saber-estar,  o saber-fazer e o saber-montar-em-toda-a-sela... em qualquer parte do mundo!


 Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Bafatá > 4 de abril de 2017 > O Leite Rodrigues com a Célia e o João Dinis (1941-2021), donos do restaurante "Ponto de Encontro", porto de abrigo de muitos portugueses que voltam à Guiné em viagem de saudade... 

O João Dinis, nosso grão-tabanqueiro, era também dono da escola de condução automóvel de Bafatá. Era um militar português, da CART 496 (Cacine e Cameconde, 1963/65), integrada no BCAÇ 513 (com sede em Buba)... Vivia na Guiné desde 1963. Natural de Alvorninha, Caldas da Rainha (conterrâneo do cardeal José Policarpo, 1936-2014), casou em janeiro de 1972, aos 31 anos, com a Célia, de 18 anos de idade. O casal teve 3 filhos (um rapaz, falecido aos 25 anos, e duas raparigas mais velhas a viver em Portugal). Infelizmente, morreu de Covid-19, durante a pandemia.


Foto nº 7 > Guiné-Bissau > Bafatá > 4 de abril de 2017 >  No restaurante "Ponto de Encontro". O Leite Rodrigues ao fundo da mesa, do lado direito, tendo á sua esquerda o Antônio  Barbosa, também nosso grão- tabanqueiro.


Foto nº 8 > Guiné-Bissau > Região de Cache > São Domingos, a caminho da praia de Varela, com paragem em Susana  >  Abril de 2017 >  Parte do grupo vendo possivelmente um desafio de futebol na TV... O Leite Rodrigues, ao centro.



Foto nº 9 > Guiné-Bissau > s/l > Abril de 2017 > s/ legenda


Foto nº 10 > Guiné-Bissau >  Zona Oeste >  Hotel Rural de Uaque, próximo de Mansoa > Abril de 2017 >  


Foto nº 11 > Guiné-Bissau > s/l > Abril de 2017 > O grupo (que parece estar completo) com um líder político ou  religioso (?)... Talvez o PR da Guiné. A foto deve ter sido tirada por um dos 2 motoristas.


Foto nº 12 > Guiné-Bissau > s/l >  Abril de 2017  > O Zé Cancela


Foto nº 13 > Guiné-Bissau >  s/l >  Abril de 2017  > O Zé Cancela.


Foto nº 14 > Guiné-Bissau > Bissau >  Ponte Amílcar Cabral sobre o Rio Mansoa >  Abril de 2017  > O Zé Cancela.


Foto nº 15 > Guiné-Bissau > Região do Cacheu  >  Abril de 2017  > O Zé Cancela, de pé, encontados ao monumento que parece ser um antigo "padrão dos Descobrimentos", eventualmente transformado em monumento às vítimas da escravatura e trafico negreiro: o brasão de armas de Portugal terá sido picado, aproveitou-se a pedra... À esquerda, de costas, está o Leite Rodrigues e o Vitorino.


Fotos (e legendas): © José Cancela (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O nosso camarada Leite Rodrigues (1945-2025), que passou a integrar a Tabanca Grande a título póstumo, sob o nº 899,  voltou à Guiné-Bissau em abril de 2017, com mais camaradas da Tabanca de Matosinhos: o José Manuel Cancela, o  João Rebola (1945-2018) (ex-fur mil,  CCAÇ 2444, Bula, Có, Cacheu, Bissorã e Binar, 1968/70), o António Barbosa, o Angelino Silva, o José Manuel Samouco, o Eduardo Moutinho, o Rodrigo Teixeira e o Monteiro...

 Penso que ficaram instalados no Hotel Coimbra, alugaram dois jipes, e percorreram parte da Guiné (Bissau, Zona Oeste e Zona Leste). Não temos aqui â mão o percurso. Foi na época seca, abril de 2017.
 
O Zé  Cancela teve a gentileza, a meu pedido, de me mandar algumas fotos desta viagem. Já publicámos algumas no poste P26527 (*). 

 Recorde-se que o Leite Rodrigues foi ferido com gravidade  em outubro  de 1967,  no decurso da Op Invicta II  na região de Caresse, a  caminho de Sinchã Jobel no subsetor  de Geba, sector L2 (Bafatá),  quando a sua CCAV 1748 estava aquartelada em Contuboel...  (Foi evacuado para o HM 241 e depois para o HMP, já não tendo regressado à Guiné.) 

Seria interessante que um ou mais dos seus companheiros de viagem pudessem partilhar aqui, connosco, as reações do nosso camarada recentemente falecido. Seguramente partilhou nessa altura (e depois na Tabanca de Matosinho) as suas emoções com o grupo.  (**)

PS1 - O José Manuel Cancela foi ex-Soldado Apontador de Metralhadora, CCAÇ 2382 (Buba, Aldeia Formosa, Mampatá, 1968/70). Tem mais de 4 dezenas de referências no nosso blogue.

PS2 - Afinal o grupo que foi à Guiné-Bissau, de 30 de março a 7 de abril de 2017, era maior: "13 elementos, que englobavam os colegas Moutinho, Vitorino, Rebola, Ferreira, Marques Barbosa, Leite Rodrigues, Isidro, Monteiro, Cancela, Rodrigo, Angelino, Samouco (que embarcou em Lisboa) e eu próprio" (António Acílio Azevedo, ex-Cap Mil, cmdt da 1.ª CCAV/BCAV 8320/72, Bula e da CCAÇ 17, Binar, 1973/74): o nosso camarada, membro da Tabanca Grande, fez a reportagem completa desta viagem, em 11 postes, publicados em setembro e outubro de 2017.
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26527: Tabanca Grande (568): Homenagem ao capitão e cavaleiro Leite Rodrigues (Aveiro, 1945 - Matosinhos, 2025), ex-alf mil cav, CCAV 1748 (1967/69), membro da Tabanca de Matosinhos: passa a sentar-se, simbolicamente, no lugar n.º 899, sob o nosso poilão, a título póstumo

(**) Último poste da série > 24 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26523: In Memoriam (534): O Alberto Leite Rodrigues que eu conheci (José Teixeira/Tabanca de Matosinhos)

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25903: Manuel de Pinho Brandão: entre o mito e a realidade - Parte VII: A Bolama de finais dos anos 30


Os BVB tinham a sede na Rua Gov Sequeira


Não sabemos ao certo qual era avenida ou rua...


Em segundo plano, do lado direito a um dos imponentes "sobrados" da cidade


Onde ficava também o mercado municipal...

Guiné > Bolama > 1938 > Imagens da cidade, que foi capital da colónia  até 1941


Jornal-programa (sic) editado pelo "Sport Lisboa e Bolama", novembro de 1938. Composto e impresso pela Imprensa Nacional da Guiné, Bolama. Nº de páginas: 12 (doze).Visado pela Comissão de Censura,


Fonte: Câmara Municipal de Lisboa > Hemeroteca Digital >  Sport Lisboa e Bolama, novembro de 1938 (com a devida vénia).




1. Já fizemos referência ao jornal do Sport Lisboa e Bolama (**), com data de novembro de 1938. Foi feita na altura uma edição única, com o  propósito de comemorar  o 5.º aniversário do fundação do clube, em Bolama, em novembro de 1933.  

Pelo cabeçalho que acima se repoduz, vê-se que era uma filial  do Sport Lisboa e Benfica (fundado, por sua vez, em  28 de fevereiro de 1904).  (Com a transferência, em 1943,  da capital de Bolama para Bissau, irá nascer o Sport Bissau e Benfica, em 27 de maio de este1944, sendo este a vigésima nona filial do Sport Lisboa e Benfica.)
 
Mas a nós interessa-nos agora ter uma ideia da toponímia da cidade bem como do comércio local existente em meados dos anos 30. 



Croquis de Bolama que o António Estácio (Bissau, 1947-Algueirão, Sintram  2022) conheceu nos anos 1950 por lá ter morado com os pais, e lá ter feito a instrução primária. Este croquis permite-nos reconstituir a malha urbana, identificando  avenidas, ruas e edifícios (adminstração pública, comércio e habitaçáo). A cidade. já em decadência, com a transferência da capital para Bissau, em 1943,  era organizada numa malha ortogonal com dois grandes eixos de avenidas, e com ruas que se cruzavam dividindo-a em quatro setores. Vários pontos de referência são sinalizados: a ponte-cais,  a câmara municipal,  a alfândega, os bombeiros, o Sport Lisboa e Bolam, o BNU,  a praça Infante Domn Henrique, a estátua de Ulysses Grant, o Mercado, a Casa Gouveia, etc. 

Fonte:  Estácio (2012) (*)



Nada como selecionar e analisar as fotos (mesmo de fraca qualidade) da cidade e os anúncios que vêm inseridos nesta edição única.  Uma coisa que salta à vista, pelo conjunto de anúnciios, que reproduzimos abaixo,  é a ausência da Casa Brandão, de Manuel de Pinho Brandão. 

Ora, ele na época já era um comerciante conhecido, e dono  de um dos principais "sobrados" de Bolama, edifício que dava nas vistas. Em 1935 ele morava em Bolama, e devia ter já perto dos 45 anos de idade.  

Segundo uma fonte que nos acaba de chcgar às mãos (por intermédio do nosso camarada Manuel  Barros Castro, ex-fur mil enf, CCAÇ 414, que esteve em Catió, quase um ano antes da Op Tridente, entre abril de 1963 e fevereiro de 1964, e conheceu o velho Brandão), este terá chegado à Guiné em finais da década de 1910. Em 1963  teria já 71  anos, pelas nossas contas.  

Não sabemos ao certo quando, na década de 1930, se mudou para a zona de Catió, e se tornou um dos grandes agricultores da região de Tombali. No final da  década de 1950 produzia duas mil toneladas de arroz e tinha um efetivo de 50 trabalhadores (fora os sazonais). Mais: já dispunha de tractores e máquinas agrícolasm sem nunca ter  deixado também de ser comerciante, como se vê por este documento de 1934.



Guiné > Bolama > Direcção dos Serviços e Negócios Indígenas > Nota de dívida ao comerciante Manuel de Pinho Brandão, pelo "fornecimento de uma secretária americana e de uma cadeira", no valor de 3300 escudos, valor que foi liquidado em 11 de junho de 1934.


Portal Casa Comum | Fundação Mário Soares | Instituição: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, Bissau | Pasta: 10427.126 | Assunto: Nota de dívida da Direcção dos Serviços e Negócios Indígenas à empresa Manoel de Pinho Brandão, pelo fornecimento de mobiliário de escritório. | Data: Terça, 29 de Maio de 1934 | Fundo: C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas | Tipo Documental: DocumentosPágina(s): 1


Citação:
(1934), Sem Título, Fundação Mário Soares / C1.6 - Secretaria dos Negócios Indígenas, Disponível HTTP: http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=10427.126 (2024-9-1)



2. Podemos admitir que o Manuel de Pinho Brandão fosse forreta e não quisesse gastar patacão em publicidade... Por outro lado, podia não ser benquista e não querer, portanto,  contribuir para a festa do clube local. Mas, o mais provável, era já não viver na cidade, em  finais de 1938.

De entre os comerciantes e industriais que patrocionaram a edição (única) do jornal "Sport Lisboa e Bolama" , o destaque vai para alguns nossos conhecidos  como   Fausto [da Silva] Teixeira ("Serração Eléctro-Mecânica") e Júlio Lopes Pereira (representante na Guiné da máquina de escrever Royal).

Recorde-se que o Fausto Teixeira foi um dos primeiros militantes comunistas [segundo reivindicação do PCP] a ser deportado para a Guiné, logo em 1925, com 25 anos, ainda no tempo da I República.  

Era dono, em novembro de 1938, segundo o anúncio que abaixo se reproduz, de "a mais apetrechada de todas as Serrações existente nesta Colónia". E o anúncio acrescenta: "Em 'stock' sempre as mais raras madeiras. Preços especiais a revendedores. Agentes em Bolama, Bissau e nos principais centros comerciais da Guiné"... 

Na altura a sede ou o estabelecimento principal era no Xitole... Foi expandindo a sua rede de serrações pelo território: Fá Mandinga, Bafatá, Banjara... Era exportador de madeiras tropicais, colono próspero e figura respeitável na colónia em 1947, um dos primeiros a ter telefone em Bafatá, amigo de Amílcar Cabral, tendo inclusive ajudado o Luís Cabral a fugir para o Senegal, em 1960... Naturalmente, sempre vigiado pela PIDE

outros  nomes das empresas que patrocinaram o 5.º aniversário do Sport Lisboa e Bolama, como o libanês João Saad,  a casa Guedes, a casa Machado, a casa Antunes, a "Competidora", de António de Almeida, o Lourenço Marques Duarte, o José Lopes, o Cipriamo José Jacinto, o João Alves da Silva, etc. 

Outras firmas comerciais, por sua vez,  não estão aqui representadas como o BNU, a Casa Gouveia (a "poderosa empresa de António da Silva Gouveia"),  o António dos Santos Teixeira ("rico e respeitado comerciante guineense"), o Manuel Simões Marcelino, a casa Pintosinho (como era mais conhecido o português Ernesto Gonçaves de Carvalho"),  o guineense Carlos Domingos Gomes ("Cadogo Pai"). (**)

Em suma, não atribuímos particular significado à ausência da Casa Brandão nesta amostra de anúncios comerciais.

 
   















  














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Notas do editor:


Vd. também poste de 25 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23200: 18º aniversário do nosso blogue (5): Roteiro da nossa saudosa Bolama (Antonio Júlio Emerenciano Estácio, luso-guineense, nascido em 1947, e escritor)

(**) Vd. poste de 17 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20152: Jorge Araújo: memórias de Bolama: a imprensa e o comércio locais há oito décadas atrás.

domingo, 28 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25784: Antologia (98): A ida para o seminário de Lamego, em 1918 (Miguel Torga, A Criação do Mundo", 2000. Excertos)


Miguel Torga (1907-1995). Foto: Adapt.
de Wikimedia Commons 
(com a devida vénia...)

1. Miguel Torga (pseudónimo literário de Adolfo Correia Rocha) nasceu em 1907 em São Martinho de Anta, concelho de Sabrosa, distrito de Vila Real, filho de camponeses. Era médico. E morrerá em 1995, em Coimbra aos 87 anos. É um dos grandes escritores da Língua Portuguesa. Prémio Camões (1989).



Em 1917, fez, com distinção, o exame da instrução primária,na escola de Sabrosa. O professor, o "senhor Botelho" (personagem de "A Criação do Mundo") tem pena que o seu aluno não possa prosseguir os estudos no liceu. O pai não vê nenhuma saída para o filho, a não ser o seminário ou o Brasil. A mãe, que não acredita na vocação do filho, manda-o para o Porto, para servir como criado numa casa rica. Revoltado, fica lá pouco tempo.

Em tempos de anticlericalismo, consegue entrar no seminário de Lamego, em 1918, com uma uma recomendação do padre da aldeia. Perde a fé, sai ao fim de um ano. "A passagem por Lamego, como dirá mais tarde no Diário, foi decisiva; aí passou 'um dos anos cruciais' da sua 'vida de menino'. A problemática religiosa irá ocupar na obra de Miguel Torga um lugar digno de registo".





2. Do livro "A Criação do Mundo" (2000) (que o Miguel Torga começou a escrever, como romance autobiográfica, em meados dos anos 30), vamos publicar, com a devida vénia, três pequenos excertos relativos à sua ida para (e os seus primeiros tempos em) o seminário de Lamego, em 1918. É uma descrição antológica, e nomeadamente  a viagem de Agarez (nome ficcionado de São Martinho de Anta, terra natal do escritor) a Lamego.



A ida para o seminário de Lamego, em 1918

(Miguel Torga, A Criação do Mundo", 2000. Excertos)



[…] Pouco tempo depois dos exames, o senhor Botelho mandou chamar o meu Pai, e teve com ele uma longa conversa na minha presença. Era pena que eu não seguisse os estudos. Sabia das dificuldades em que vivíamos, que os tempos iam maus, e tudo o mais. Em todo o caso, que visse lá se podia fazer um sacrifício e mandar-me para o liceu da Vila.

Meu Pai sorriu tristemente. O senhor Botelho estava a mangar... Olha liceu! Só se empenhasse o cabo da enxada.. Gostava, gostava, de me ver professor,  ou médico, ou advogado.. Mas, nicles,  faltava o melhor! E onde o não há, el-rei o perde... Já se lembrara do seminário. Aí é que  talvez pudesse ser. Se arranjasse a maneira  de meter-me de graça ou a pagar qualquer coisa pouca...

O mestre reagiu. Padre! País desgraçado, o nosso! Os melhores alunos, que lhe passavam pelas mãos, ou ficavam ali amarrados  à terra, a embrutecer,  ou eram arrebanhados pela  Santa Madre Igreja. Não! Tudo, menos papa-hóstias. Então, antes o Brasil.

– É o que terá mais certo...  concluiu meu Pai, resignado. – A cavar é que não fica. Bem bastou eu. [pág. 40]

[…] Ia na frente, de fato preto, montado na jumenta, a segurar o baú de roupa que levava adiante de mim. Meu Pai e minha Mãe vinham atrás, a pé, ele com os ferros da cama às costas, e ela de colchão e cobertores à cabeça. Assim percorremos as seis léguas que vão de Agarez a Lamego, pelo caminho velho. Senhora da Guia, Senhor do Bom Caminho, Senhor da Boa Morte, Vila Seca, Poiares, Régua… De alma negra, olhava a paisagem grandiosa que nos acompanhava , e via nela apenas a minha sombra. Papa-hóstias, como dissera o senhor Botelho... Era tudo o que eu poderia vir a ser na vida.

Recebeu-nos no pátio da casa do senhor cónego Faria, a quem íamos dirigidos, um sacerdote novo e magricela, que mais tarde vim a saber que se chamava padre Monteiro. Meus Pais cumprimentaram-no respeitosamente, mas, em vez de lhes seguir o exemplo, fiquei ostensivamente calado. O desespero que sentira toda a viagem transformara-se numa raiva cega, que me estrangulava a voz. Meu Pai  reparou na má criação, repreendei-me. Lá arranjei fala e  gaguejei:

– O senhor passou bem ?

O sujeito olhou-me de esguelha, disse que sim,  e perguntou se eu era piedoso. Ao que o meu o Pai respondeu solícito que, quanto a isso... Além de ser bom rapaz  e muito inteligente.

Comprometido, pus-me a arranjar o cabresto à burra e a relancear as janelas da casa solarenga, a ver se via o bispo. Era uma das minhas aspirações em pequeno: ver um bispo. 

Por fim, o homem deu-nos um  bilhete para irmos entregar  ao número quarenta e dois de uma rua assim, quem subia, à esquerda.

Lá fomos, e lá fiquei.

Lavado em lágrimas, despedi-me de meus Pais, que meteram afoitamente pela ladeira acima a tanger a burra, que queria ficar. Ainda em soluços, vi-os dobrar a esquina e desaparecer. A enxugar os olhos, subi os três lanços da escada que levava ao segundo andar, onde encontrei os companheiros que iria ter.

Passei o resto do dia à espera de ouvir daqueles desconhecidos uma palavra de consolo. Mas eram infelizes como eu, que a pobreza trouxera até ali, sem calor no coração para repartir. Benzeram-se e rezaram antes e depois do jantar, e eu imitei-os. Quando bateram as dez, enfiaram-se na cama. O que fiz também.

Dormi mal. Pela manhã, o prefeito mandou-me rapar o cabelo à escovinha. Depois fui submetido a um rigoroso inventário, que escancarou à luz do sol os meus haveres materiais e espirituais. Fiquei no primeiro ano.

O nosso vigilante chamava-se senhor Ramos. Estava no fim do curso e namorava a filha do dono da casa, que tinha alfaiataria no rés-do-chão.  A República tomara conta do edifício do seminário e transformara-o em quartel. Por isso víviamos em  grupos de dez e doze, espalhados pela cidade, comandados por um  mais velho, e íamos às aulas à residência dos professores.

No dormitório havia apenas um bacio para cada duas camas. O que me pertencia ficava debaixo da do Arménio que, quando eu acordava, já o tinha cheio. O recurso, claro, era ir à varanda. A primeira vez que  tal me aconteceu, fiquei aflito. Quem é que  se atrevia a mijar lá para baixo, diante do palácio das Brolhas,  de fachada imponente e brasão coberto de luto, ali a ver-nos ? Mas a natureza apertava e o frio também. E abri a torneira. [pp. 53/55]

[…] De novo no seminário, agarrei-me ao estudo com unhas e dentes. À febre de aprender, juntara-se um sentimento surdo de revolta, e só encontrava sossego a devorar laudas. Aos Domingos, ensacado na batina do primo santo, que o dono da casa arranjara à medida do meu corpo, ia passear. Juntávamo-nos todos na , assistíamos à missa, e no fim, a ouvir obscenidades dos caixeiros aperaltados, que tocavam no cotovelo do vizinho a passar o enguiço – Lagarto! Lagarto! , seguíamos a dois e dois para a Meia Laranja, ao fundo da escadaria da Senhora dos Remédios, e aí nos divertíamos. 

Numa dessas ocasiões, jogava-se o rim cavalo.

– Quem joga o rim cavalo?
– Há cá quem!
– E se bater na burra?
– Fica tudo bem.

Como andava fraco, a certa altura fui substituído e fiquei a ver. Às tantas por acaso, dei falta do senhor Ramos. Relancei os olhos à volta, e nada. Onde diabo se teria metido? Fiquei admirado daquela ausência, mas acabei por me distrair. Até que passado um grande pedaço ele apareceu.

No passeio seguinte, repetiu-se a mesma cena. E aquilo começou a meter-me confusão. Deixei os companheiros na brincadeira e, como quem não quer a coisa, meti pelas alamedas do parque à procura do prefeito, de olhos afiados para dentro das moitas mais espessas. Mas não fui longe. Quando menos esperava, tive de retroceder a galope. Dum maciço de acácias começaram a chover pedradas sobre mim. Não contei nada aos outros, e quando o sujeito apareceu fiz-me desentendido.

Já na forma, acabei de saber o resto. Por um carrocho íngreme, descia da mata para a cidade uma rapariga nova, vestida de preto. Era a filha do alfaiate. 

Foi então que me apareceram aquelas súbitas saudades da Aurora que, no jogo das escondidas, levantava o vestido na casa da lenha, onde nos refugiávamos.

– Ó Aurora, mostra, mostra… [pp.61/62]


In: Miguel Torga - A criação do Mundo, volume I. Lisboa: Editora Planeta de Agostini, 2002, pp. 40, 53/55, 61/62

(Seleção, revisão / fixação de texto,  título, negritos e itálicos, parênteses retos, links, para efeitos de edição deste poste: LG)

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Nota do editor:


Último poste da série > 11 de agosto de 2023 > 
Guiné 61/74 - P24548: Antologia (97): "A Suécia e as lutas de libertação nacional em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau", por Tor Sellström (2008). Excertos: O caso da ajuda ao PAIGC – Parte VIII

domingo, 7 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25722: Facebook...ando (60): Fotos do A. Marques Lopes (1944-2024): viagem no T/T Niassa, e chegada a BIssau, em maio de 1968, para a segunda parte da comissão, (CCÇ 3, Barro, 1968/69)

 

 
Foto nº 1 > Guiné > Bissau > Ponte-cais > Maio de 1968 > A. Marques Lopes e outros alferes milicianos qie vieram, em rendição individual,  da metrópole no T/T "Niassa" (ao largo, na foto).



Foto nº 2 > Guiné > Bissau > Ponte-cais > Maio de 1968 >  Em primeiro plano, o draga-minas NRP  "Faial" (?)  e,  fundeado no estuário do Geba,  o N/M "Niassa"


Foto nº 3 > Guiné > Bissau >  > Maio de 1968 >  O A. Marques Lopes, acabado de chegar no N/M "Niassa"; ao fundo, o porto de Bissau, a ponte-cais (*).



Foto nº 4 > Guiné > Bissau >  > Maio de 1968 > N/M Niassa > Transbordo de tropas, em LDM (1)


Foto nº 4A > Guiné > Bissau >  > Maio de 1968 > N/M Niassa > Transbordo de tropas, em LDM (2)


Foto nº 5 > Guiné > Bissau >  > Maio de 1968 > Final da Av da República (hoje, Av Amílcar Cabral). A estátua que se vê , era a de Nuno Tristão (de costas para o rio Geba e instalações portuárias, e ao fundo o N/M "Niassa"), erigida por ocasião do 5º centenário do seu desembarque em terras da Guiné (1446).
(Não confumdir com estátua de Diogo Gomes, que estava na praça com o mesmo nome, entre  a fortaleza da Amura  e a ponte-cais.) (*)



Foto nº 6 > Guiné > Bissau >  > Maio de 1968 > O A. Marques Lopes no "jardim ao pé do porto de Bissau"


Foto nº 7 > Guiné > Bissau >  > Maio de 1968 > Forte da Amura (1)


Foto nº 8 > Guiné > Bissau >  Maio de 1968  > Forte da Amura (2): o A. Marques Lopes, à civil


 
Foto nº 9 > Guiné > Bissau >  Maio de 1968  > Cais do Pidjiguiti... Ao fundo, do lado direito, o ilhéu de Rei


Foto nº 10 > Guiné > Bissau >  Maio de 1968  > Arredores da cidade: o A. Marque Lopes à civil... "Calmamente", acrescenta ele, na legenda.


Foto nº 11 > Guiné > Bissau >  Maio de 1968  > Arredores da cidade... Ao fundo, descortina-se a catedral de Bissau, na Av da República (que vinha da Praça do Império até ao rio).



Foto nº 12 >  Lisboa- Guiné  >  A bordo do N/M "Niassa" > Maio de 1968  > Um grupo de oficiais milicianos, entre eles o A. Marques Lopes (o segundo à direita)



Foto nº  12A > Lisboa- Guiné  >  A bordo do N/M "Niassa" > Maio de 1968  >  Um grupo de oficiais milicianos acabados de chegar (pormenor). UM deles parece ser capitão, e mais velho (o primeiro da direita)


Foto nº  12B >   Lisboa-Guiné > A bordo do T/T "Niassa" > Maio de 1968  >  Um grupo de oficiais acabados de chegar (pormenor)


Grupo de oficiais que viajaram com o A. Marques Lopes (o segundo a contar da direita, de óculos escuros e um livro debaixo do braço).  Entre eles o Almodôvar (o quarto a partir da direita), amigo do Torcato Mendonça e do Paulo Raposo (**). O Marques Lopes regressava do Hospital Militar Principal, em Lisboa. Depois de ter estado, em Geba, em 1967, na CART 1690, onde foi ferido, acabou o resto da sua comissão em Barro, na CCAÇ 3.

 Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Agora que o nosso amigo e camarada A. Marques Lopes (Lisboa, 1944-Matosinhos, 2024) nos deixou para a "derradeira viagem" (a que não tem retorno: "adeus, mas não há regresso!"..., terão sido as suas últimas palavras!), deu-nos uma saudade imensa, e fomos "revisitar" a sua página no Facebook (***)...

E antes que essa página desapareça,  fizemos uma seleção das fotos do seu álbum: em princípio, as que reproduzimos serão todas de maio de 1968, quando ele voltou à Guiné, pela segunda vez, para ser colocado na CCAÇ 3 (Barro, 1968/69), ainda mal recuperado de uma grave ferimento com uma mina A/C. Será na região do região do Cacheu que ele acabará a sua comissão.

Regressará a Lisboa, no N/M "Uìge", em março de 1969 (****)

PS - Não temos a certeza se as fotos são todas da mesma época, maio de 1968 (nomeadamente, as nº  7, 8, 9, 10 e 11)


(****) Vd. poste de 23 de novembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15401: Álbum fotográfico de Alfredo Reis (ex-alf mil, CART 1690, Geba, 1967/69) (4): No regresso a Lisboa, em março de 1969, no N/M Uíge: 1246 passageiros, distribuídos pela 1ª (n=57), 2ª (n=133) e 3ª classes (n=1056)