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quarta-feira, 29 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25575: (De) Caras (208): António Baldé, ex-1º cabo , CIM Bolama (1966/69), Pel Caç Nat 56 (São João, 1969/70), e CART 11 (Paunca, 1970/71): "Eu tinha um sonho: ser apicultor no Cantanhez"...





















Guiné- Bissau > s/l > 2024 > O senhor apicultor e formador em apicultura, António Ussumane Baldé, membro da Tabanca Grande, desde 2013...


Fotos: © António Baldé (2024). Todos Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. De há muito que o António Baldé, nosso grão-tabanqueiro, tinha um sonho, ser apicultor.... Acaba de o realizar. (Ao fim de, pelo menos, vinte e tal anos, ou trinta. ) Fiquei muito feliz em sabê-lo. E prometi-lhe que publicava a notícia no blogue. Ele de vez em quando telefona-nos de Bissau, à Alice e a mim. Mandou-me mais de 70 fotos, pelo Whatsapp. Sem legendas.  Selecionei umas tantas. 

O Baldé, como lhe chama a Alice, foi 1º cabo art, CIM Bolama (1966/69), Pel Caç Nat 56 (São João, 1969/70) e  CART 11 (Paunca, 1970/71). 

Recapitulemos a sua história de vida, tal como eu a contei quando foi apresentado à Tabanca Grande em 25 de março de 2013 (*):

(i) António Ussumane Baldé nasceu em  Contuboel, em 1944;

(ii) foi educado, até aos 12 anos, pelo chefe de posto adinistrativo local, o português José Pereira da Silva, ainda vivo em 2013 (morava em Oeiras);

(iii) fez a 4ª classe e isso abriu-lhe outras portas que outros miúdos da sua tabanca não puderam franquear;

(iv) lembrava-se bem da serração do Albano, que ainda existia no meu tempo (junho/julho de 1969, quando Contuboel foi Centro de Instrução Militar, donde saíram, de entre outras, as futuras CART 11 e a CCAÇ 12);

(v) em 1966, foi chamado para a tropa: fez a recruta e a especialidade no CIM de Bolama ficou lá dois anos; promovido a 1º cabo, de artilharia, foi instrutor; lá se formaram diversos Pel Caç Nat;

(vi) em 1969 é transferido para o Pel Caç Nat 56, sediado em S. João, frente a Bolama;

(vii) em 1969 casou-se: será o primeiro de quatro casamentos; teve ou tem 15 filhos, o último dos quais a Alicinha do Cantanhez, filha da nalu Cadi Indjai (1985-2013) (por sua vez, filha de um antigo "combatente da liberdade da Pátria", que perdeu uma perna, na zona do Xitole, ao pisar uma mina dos "tugas", tendo estado na Alemanha de Leste, em reabilitação);

(viii) desse tempo, e do tempo do Pel Caç Nat 56, lembra-se com saudade dos furriéis Gil e Nuno, que gostaria de voltar a encontrar; não faz ideia do seu paradeiro; em São João esteve em 1969/70; 

(ix) será depois transferido para a CART 11, que estava em Paunca: esteve por lá em 1970/71: o comandante do seu pelotão era o alf mil Matos, que é de Ovar, e com quem ainda hoje convive e fala ao telefone: já foi a um (ou mais) dos convívios da companhia: esteve no destacamento de Sinchã Queuto [que eu só localizo a norte de Bafatá, e a sul de Contuboel, no mapa de Bafatá];

(x) saiu da tropa em finais de 1970 ou princípios de 1971; a mulher tinha ficado em Bolama;

(xi)  assistiu depois à independência; não tem boas memórias de Bambadinca desse tempo (teve de assistir a julgamentos populares selvagens e a execuções sumárias, bárbaras, pelo menos de um polícia administrativo e de um régulo, considerados "inimigos públicos nº 1 do PAIGC"); mas não teve, felizmente para ele,  quaisquer problemas com os novos senhores da Guiné-Bissau...

Ainda antes da independência tinha começado a trabalhar nos serviços agrícolas da província. Fez formação em floricultura, se não me engano. Foi ele e outros estagiários quem fez o jardim do Bairro da Ajuda, em Bissau, no tempo do administrador Guerra Ribeiro. 

Depois da independência começou a trabalhar com o engº agr Carlos Scwharz, no DEPA, na região de Tombali. Tem uma grande admiração pelo Pepito e pelo trabalho dele em prol do desenvolvimento da sua terra. (É cofundador, se não erro, e cooperante da ONG AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede no bairro do Quelelé, de que o Pepito  foi diretor executivo atà data da sua morte, em 2014).

No princípio deste século, veio a Portugal fazer um curso de apicultura, que era então (e continua a ser hoje)  a sua grande paixão. Acabou por ficar. Para sobreviver, trabalhou como segurança numa empresa de construção, no concelho de Cascais. Entretanto, obteve a nacionalidade portuguesa. Tinha, em 2013, um filho, de 13 anos, o Umaro Baldé, que vivia com ele e que estava a frequentar o 7º ano de escolaridade obrigatória, em Alfragide, e queria ser  informático (está neste momento em Inglaterra).

Em 2013, quando entrou para a Tabanca Grande estava desempregado. O seu sonho era voltar a Caboxanque onde tem casa, junto ao rio Cumbijã,  e desenvolver o seu projeto de apicultura no Cantanhez. Mas tinha dois filhos pequenos para criar (o Umaru e a Alicinha do Catanhez, que ele e a Alice quiseram trazer para Portugal). 

Muçulmano, ia todas as sextas feiras à mesquita central de Lisboa. Era um bom crente. Era uma homem afável, conhecia meio mundo, e pediu-me para ingressar na Tabanca Grande. Estava interessado sobretudo em partilhar os seus conhecimentos e a sua paixão como apicultor.

Conhecia-o nessa altura, em 2013.  Era o pai, biológico, da Alicinha do Cantanhez, filha da Cadi, a sua quarta mulher.  Ele vivia na zona de Cascais, onde era segurança. A empresa fechou, o Baldé ficou no desemprego. Um advogado, seu amigo, arranjou-lhe casa em Alfragide. Éramos,  pois, vizinhos de 'tabanca'.  Só conhecia a filha de fotografias e vídeos (que o Pepito mandava para a Alice) . Mas era um pai babado. Vivia em Portugal há já cerca de 10 anos. Éramos nós que lhe  dávamos notícias da mãe e da filha. Tinha casa em Caboxanque na margem esquerda do Rio Cumbijã.  Queria que lá fossemos um dia passar férias. Queria votar à sua terra com o diploma de apicultor (**).

A Alicinha e a mãe, nalu,
Cadi Indjai (1985-2013)

Infelizmente, tudo lhe correu mal. Estava a tentar aguentar-se cá 15 anos, fazendo descontos para a Segurança Social e contando com o tempo da tropa.  Nem o tempo de tropa lhe foi descontado nem a Segurança Social lhe garantiu uma pensão de reforma. Por outro lado, a Cadi morreu (em 2013)  e a filhota, a Alicinha do Cantanhez, não conseguiu chegar a Portugal nem perfazer os 5 anos (morreu em 2014). Vi-o chorar convulsivamente quando soubemos e lhe transmitimos a notícia, devastadora para todos. Adorávamos a Cadi e a Alicinha. E o Baldé passou também a fazer parte da família...  

Voltou para Bissau, com os sonhos desfeitos e sem o diploma de apicultor. Sem um tostão, sem a pequena reforma que seria fundamental para a concretização dos seus sonhos e poder alimentar uma família numerosa. 

Os primeiros anos forma difíceis. Em meados de 2019, passava-se fome em Bissau. Telefonou-nos um dia a dizer que estava em Caboxanque a passar mal.  São situações que nos destroçam o coração...  E depois veio a maldita pandemia de Covid-19. De tempos a tempos ia dando notícias. Tem cá uma filha e netos, em Massamá ou no Cacém.

 Finalmente há dias soubemos, por ele,  que as coisas estavam a correr melhor, em Bissau e em Caboxanque, e que para o ano ele ia a fazer a sua primeira grande colheita de mel. Tanto quando dá para perceber pelas fotos que nos enviou, sem legendas, tem o seu negócio, independente... Aos 80 anos (!), continua a perseguir o seu sonho de há muito!..."Com a ajuda do Criador", diz ele, humildemente, ao telefone. Faz formação (e ele próprio elabora os seus materiais pedagógicos) e monta colmeias. Tem já bastantes no Cantanhez.  Não sei se tem algum apoio de alguma OND. Enfim, uma história feliz, desta vez, mesmo que ainda não se possa dizer que terá um final feliz. Mas Oxalá, Enxalé, Insha'Allah!.... Parabéns, Baldé, tu mereces tudo de bom.  (***)

(**) Vd. poste de 7 de janeiro de  2014 > Guiné 63/74 - P12554: Ser solidário (157): O nosso camarada, luso-guineense, natural de Contuboel, desempregado, a residir em Alfragide, António U. Baldé, pai da Alicinha do Cantanhez, tem um sonho: ser apicultor em Caboxanque...
 
(***) Último poste da série > 4 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25478: (De) Caras (207): Homenagem póstuma da sua terra natal, Mealhada, ao ex-1.º Cabo At Inf do Pel Caç Nat 58, José da Cruz Mamede (1949-1970), morto na emboscada de Infandre, em 12/10/1970

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24672: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXV: Um estranho sonho em Gandembel: "apanhado" pelo PAIG

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > Visita ao antigo aquartelamento português, por parte dos participantes do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau,l 1-7 de março de 2008) > 1 de março de 2008 > Restos do aquartelamento português, abandonado em 28 de janeiro de 1969, e posteriormente ocupado e dinamitado pelo PAIGC (facto a confirmar: também há outra versão, a de que o quartel, construído de raíz,  foi destruído pela FAP, o que seria mais verosímil)...  A importância estratégica de Gandembel / Balana em pleno corredor de Guiledje (bem como a sua heróica defesa, ao longo de nove meses, pela CCAÇ 2317 e outras forças portugueses, incluindo o BCP 12), não foi esquecida, apesar da posterior mediatização de Guileje...(*)

Foto (e legenda)  © Luís Graça (2008). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das memórias do Aamadu Djaló (Bafatá, 1940-Lisboa, 2015), a partir do manuscrito, digitalizado, do seu livro "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada) (**).

O nosso  camarada e amigo Virgínio Briote, o editor literário ou "copydesk" desta obra,  facultou-nos uma cópia digital. O Amadu Djaló, membro da Tabanca Grande, desde 2010, tem cerca de nove dezenas de referências no nosso blogue.


Capa do livro do Amadu Bailo Djaló,
"Guineense, Comando, Português: I Volume:
Comandos Africanos, 1964 - 1974",
Lisboa, Associação de Comandos,
2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.



O autor, em Bafatá, sua terra natal,
por volta de meados de 1966.
(Foto reproduzida no livro, na pág. 149)


Síntese das partes anteriores:

(i) o autor, nascido em Bafatá, de pais oriundos da Guiné Conacri, começou a recruta, como voluntário, em 4 de janeiro de 1962, no Centro de Instrução Militar (CIM) de Bolama;

(ii) esteve depois no CICA/BAC, em Bissau, onde tirou a especialidade de soldado condutor autorrodas;

(iii) passou por Bedanda, 4ª CCaç (futura CCAÇ 6), e depois Farim, 1ª CCAÇ (futura CCAÇ 3), como sold cond auto;

(iv) regressou entretanto à CCS/QG, e alistou-se no Gr Cmds "Os Fantasmas", comandado pelo alf mil 'cmd' Maurício Saraiva, de outubro de 1964 a maio de 1965;

(v) em junho de 1965, fez a escola de cabos em Bissau, foi promovido a 1º cabo condutor, em 2 de janeiro de 1966;

(vi) voltou aos Comandos do CTIG, integrando-se desta vez no Gr Cmds "Os Centuriões", do alf mil 'cmd' Luís Rainha e do 1º cabo 'cmd' Júlio Costa Abreu (que vive atualmente em Amesterdão);

(vii) depois da última saída do Grupo, Op Virgínia, 24/25 de abril de 1966, na fronteira do Senegal, Amadu foi transferido, a seu pedido, por razões familitares, para Bafatá, sua terra natal, para o BCAV 757;

(viii) ficou em Bafatá até final de 1969, altura em que foi selecionado para integrar a 1ª CCmds Africanos, que será comandada pelo seu amigo João Bacar Djaló (Cacine, Catió, 1929 - Tite, 1971)

(ix) depois da formação da companhia (que terminou em meados de 1970), o Amadu Djaló, com 30 anos, integra uma das unidades de elite do CTIG; a 1ª CCmds Africanos, em julho, vai para a região de Gabu, Bajocunda e Pirada, fazendo incursões no Senegal e em setembro anda por Paunca: aqui ouve as previsões agoirentas de um adivinho;

(x) em finais de outubro de 1970, começam os preparativos da invasão anfíbia de Conacri (Op Mar Verde, 22 de novembro de 1970), na qual ele participaçou, com toda 1ª CCmds, sob o comando do cap graduado comando João Bacar Jaló (pp. 168-183);

(xi) a narrativa é retomada depois do regresso de Conacri, por pouco tempo, a Fá Mandinga, em dezembro de 1970; a companhia é destacada para Cacine [3 pelotões para reforço temporário das guarnições de Gandembel e Guileje, entre dez 1970 e jan 1971]; Amadu Djaló estava de licença de casamento (15 dias), para logo a seguir ser ferido em Jababá Biafada, sector de Tite, em fevereiro de 1971;

(xii) supersticioso, ouve a "profecia" de um velho adivinho que tem "um recado de Deus (...) para dar ao capitão João Bacar Jaló"; este sonha com a sua própria morte, que vai ocorrer no sector de Tite, perto da tabanca de Jufá, em 16 de abril de 1971 (versão contada ao autor pelo soldado 'comando' Abdulai Djaló Cula, texto em itálico no livro, pp.192-195) ,

(xiii) é entretanto transferido para a 2ª CCmds Africanos, agora em formação; 1ª fase de instrução, em Fá Mandinga , sector L1, de 24 de abril a fins de julho de 1971.

(xiv) o final da instrução realizou.se no subsector do Xitole, regulado do Corunal, cim uma incursão ao mítico Galo Corubal.

(xv) com a 2ª CCmds, comandada por Zacarias Saiegh, participa, em outubro e novembro de 1971, participa em duas acções, uma na zona de Bissum Naga e outra na área de Farim;

(xvi) em novembro de 1971, participa na ocupação da península de Gampará (Op  Satélite Dourado, de 11 a 15, e Pérola Amarela, de 24 a 28);

(xvii) 21-24 dezembro de 1971: Op Safira Solitária: "ronco" e "desastre" no coração do Morés, com as 1ª e 2ª CCmds Africanos  (8 morts e 15 feridos graves);

(xviii) Morés, sempre o Morés... 7 de fevereiro de 1972, Op Juventude III;

(xix) o jogo do rato e do gato: de Caboiana a Madina do Boé, por volta de abril de 1972;

(xx)  tem um estranho sonho em Gandembel, onde está emboscado très dias: mais do que um sonho, um pesadelo: é "apanhado por balantas do PAIGC".


 Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXV:

  Um estranho sonho em Gandembel (pp. 252-256)

 

Três dias depois de chegarmos do Boé, saímos de Quebo e fomos largados na tabanca abandonada de Gandembel, com a missão de nos emboscarmos na zona durante duas noites.

As minhas condições físicas não eram muito boas.

Três meses atrás, no Cupelom, em Bissau, quando estava a jogar o loto, a dinheiro, com vários companheiros, todos graduados, alguém gritou que vinha aí a polícia militar.

Arrancámos a correr do local, cada um para o seu lado, eu bati com o dedo grande do pé num pilar e o dedo estalou. Andei cerca de um mês a fazer fisioterapia no Hospital Militar em Bissau, mas mesmo depois dos tratamentos, quando calçava a bota, o dedo inchava e eu tinha dificuldade em andar. Durante algum tempo, entrei em Brá com uma bota num pé e um chinelo no outro.

Quando regressei dos três dias em Madina do Boé, descalcei a bota em Quebo e o dedo estava todo inchado. O descanso de três dias, que nos deram, não chegou para ficar bom e fui para Gandembel com uma bota e um chinelo.

Na primeira noite que dormi em Gandembel, adormeci quase de madrugada e sonhei um sonho idêntico, com poucas diferenças, ao que o Capitão João Bacar Jaló tinha sonhado em Jufá, quando foi morto. O sonho era este que vou contar... 

Vi-me com o meu guarda-costas a entrar numa tabanca, toda cercada de troncos de árvores. Começámos a revistar as casas e a perguntar quem tinha arma. Já à saída, pelo outro lado da tabanca, vi na última casa um homem sentado na cama, com uma arma, uma Mauser, encostada ao lado. Atingiu-o mortalmente com dois tiros e mandei o soldado apanhar a arma.

Quando estava a sair da casa,  vi um caminho com pegadas, muito utilizado. Entrei por ele até um pé de limão , com os ramos até ao chão, que não deixavam ver para mais longe. Fui até ao limoeiro e apareceu-me outro velhote, o mesmo com quem eu tinha sonhado há mais de dois meses.

Nesse sonho de há dois meses atrás, eu tinha visto esse velhote, à porta do quartel de Brá, a vender umas calças bonitas, riscadas , que na altura custavam 425 escudos e ele estava a vendê-las por 200. Achando o preço barato, escolhi dois pares e pedi-lhe que as guardasse e as trouxesse no dia seguinte, porque naquele dia não tinha dinheiro comigo. Ele respondeu para eu as levar e que no dia seguinte entregasse o dinheiro ao Cicri Marques Vieira, que era seu sobrinho. Recusei ficar com as calças, e voltei a dizer-lhe que,  se mas quisesse vender,  voltasse no dia seguinte, que eu comprava-as.

Estava neste ponto do sonho do homem das calças, quando acordei às 06h30, que era a hora do costume da gente se levantar. Nessa manhã, por volta das 11h00, apanhei uma viatura até à praça de Bissau e dirigi-me a um estabelecimento, onde comprei sete metros de fazenda bonita, riscada, que dei de esmola a um homem com aspecto de necessitado.

Voltando a Gandembel, ao sonho. Então, quando estava a sair da tabanca, vi o tal pé de limão no meio do carreiro e com muitos ramos pousados no chão, que impediam ver para além. Quando cheguei junto do limoeiro~, vi o velhote, o tal das calças, com que me tinha cruzado no sonho de há dois meses atrás.

Agarrei-lhe na mão e perguntei-lhe onde ia. Que ia para a casa dele.

Moras nesta tabanca?

Sim respondeu.

Tens arma?

Cá, só uma pessoa tem arma, que é o dono dessa casa ali à entrada.

A pessoa a quem o velhote se referia,  era o que, em sonho, eu tinha morto.

Perguntei se os combatentes vinham à tabanca e se hoje já tinham vindo.

Eu saí muito cedo. Por este caminho não vieram, agora não sei se tomaram outro caminho.

Tem dois caminhos? Onde é o outro ? perguntei.

Disse-lhe para me acompanhar, contornámos um local, onde estava caída, talvez há muitos anos, uma grande árvore, com um tronco grosso. Não havia espaço para passarmos os dois e fui à frente, para passar o tronco. Do outro lado, estava uma força de jovens do PAIGC, todos fardados e equipados com todo o tipo de armas. Eu quis fugir mas o velhote não me deixou, agarrou-me por trás e entregou-me ao PAIGC.

O comandante deles deu ordem para me amarrarem. Logo apareceu alguém com uma corda nova e amarraram-me os dois braços nas costas. Pedi para não me amarrarem, tinha o dedo grande do pé estalado, estava inchado e que não podia fugir. Trazia calçado uma bota num pé e um chinelo no outro.

 Criminosos! Até com pés partidos são voluntários para ir para a guerra! gritou o comandante.

 Não é assim, não! Nós somos obrigados, não somos voluntários! respondi.

Mandou tirarem-me a corda. Vindo não sei de onde,  surgiu um jipe que parou e o chefe mandou-me embarcar. Entrei no jipe, este pôs-se em andamento e reparei, então, que ia um europeu e que o condutor era mulato. Quando demorei os olhos no branco,  ele disse-me que, se eu me comportasse bem, talvez viesse a trabalhar com o PAIGC e com ele, que também tinha ido aprisionado.

 Onde foste preso ? perguntei eu no meu sonho.

Em Cutia respondeu.

- Cutia? Eu ouvi contar uma história de um soldado europeu, que tinha desertado com a Mauser de um milícia, em Cutia.

 Sim, fui eu, mas não desertei. Eu sempre que ia à fonte buscar água,  ouvia galinhas de mato a levantarem e, um dia, resolvi pegar na Mauser de um milícia. A Mauser é mais certeira, e fui sozinho tentar caçar alguma. Só que o PAIGC estava emboscado, à espera das mulheres dos milícias, que também iam a essa fonte buscar água, para as capturarem. E foi nessa altura que me apanharam. Se eu tivesse a intenção de fugir, não ia com a Mauser, levava a minha G-3, que talvez fosse melhor recebido.

No caminho chegámos a uma tabanca. O jipe parou, o soldado europeu saiu e, quando eu me preparava para sair também, o condutor fez-me sinal com a mão para aguardar. O mulato mascava qualquer coisa, talvez noz de cola. Tirou da boca a baba que estava a mascar e cuspiu-a no meu dedo inchado e com os dedos espalhou aquela baba em cima da unha do meu dedo estalado. Quando acabou de massajar, o soldado branco que estava ao lado disse-me:

 Calma, todas as pessoas que vêm para aqui, como detidos, têm que fazer isso.

Mandou-me acompanhá-lo a uma casa grande, que estava à nossa direita, com as portas fechadas e com buracos nas paredes e vi lá dentro gente com roupa branca vestida.

Aqui é a prisão dos civis e ali, naquela casa pequena, é a dos militares, estão lá alguns.

Deve fazer muito calor lá dentro observei.

É por isso que a porta tem buracos para entrar ar.

Meteu a chave na porta, abriu-a e, nesse momento, acordei.

Acordei admirado com o sonho e a pensar nele. Tirei um pedaço de cola que guardava debaixo do cantil, mastiguei-o e cuspi no meu dedo. Um soldado que estava ali perto, veio para ao pé de mim e perguntou se isso era para todos ou se era só para mim. Que era só para mim, que era um sonho que eu tivera.

Que sonho?

Esse soldado era filho de um padre muçulmano, de Bissau, e contei-lhe tudo. Ele disse que, se fosse ele, se fingia de doente para ser evacuado. Não vale a pena, respondi. Que no meu sonho tinha sido amarrado e desamarrado. Que tinha sido preso por balantas mas quem me escoltara fora um soldado branco e que o condutor era mulato. E que quando chegámos à prisão, o branco abriu a porta e nesse instante acordei. Por isso, não tinha nada a recear.

Foi desta forma que eu interpretei o sonho. O facto de ter o pé inchado, que era uma coisa real, salvou-me no sonho, que foi quando o comandante do PAIGC me mandou desatar.

As coisas reais, as que se passaram mesmo, foi o acidente com o meu dedo, o soldado europeu que desapareceu em Cutia e que vim a encontrar quando regressámos de Conackry.

Passámos a segunda noite em Gandembel e na manhã do terceiro dia recebemos ordem para nos prepararmos para partir para Guileje. Fomos a pé e chegámos a Guileje, por volta das 16h00.

Estivemos lá três dias à espera de alguma ordem, que nunca mais chegava. No quarto dia arrancámos para Gadamael Porto, com a indicação de apanharmos o barco de regresso a Bissau. Tudo correu conforme o previsto e embarcámos, rumo a Cacine. Estavam lá os páras, que foram nossos companheiros de viagem para Bissau.

(Revisão / fixação de texto / negritos: LG)

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(**) Último poste da série > 9 der setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24634: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte XXXIV: O jogo do rato e do gato; da Caboiana a Madina do Boé, abril de 1972