sábado, 4 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25478: (De) Caras (207): Homenagem póstuma da sua terra natal, Mealhada, ao ex-1.º Cabo At Inf do Pel Caç Nat 58, José da Cruz Mamede (1949-1970), morto na emboscada de Infandre, em 12/10/1970


O José da Cruz Mamede, de Casal Comba, Mealhada, morto em 12 de outubro de 1970:  foto de álbum da família. Cortesia de Lucília da Cruz Mamede (2007)  e do nosso camarada Afonso Sousa (*).


1. Por pesquisa na Net, ficámos a saber que a Câmara Municipal da Mealhada, em reunião ordinária de 26 de junho de 2021, aprovou por unanimidade "a alteração toponímica, na localidade de Casal Comba, da atual 'Rua de Trás das Eiras' para 'Rua José da Cruz Mamede'. Por ser esta a rua onde nasceu e viveu o homenageado antes da sua mobilização para a Guerra Colonial e onde viveu a sua família." (**)


Adicionalmente, registe-se aqui o número de mortos, na guerra do Ultramar / guerra colonial, naturais do concelho da  Mealhada:  foram 17 no total (dos quais 4 no TO da Guiné) (Fonte: Portal UTW - Dos Veterenos da Guerra do Ultramar).





2. Artigo de opinião, publicado no "Jornal da Mealhada", em 19 de dezezembro de 2018, em que Fausto Cruz já então defendia a atribuição de honras toponímicas ao seu amigo e vizinho de infância José da Cruz Mamede. 


Ser sexagenário adensa as vivências passadas e leva-nos a sentir com mais emoção as ocorrências a que nos sujeitamos no tempo. Razão que leva a trazer para aqueles que tenham a coragem de ler este texto, um tema que há muito se afigura de elevada justeza.

Quem nasce num meio rural e pobre, nunca consegue avaliar as perdas e ganhos comparativos a outros que beneficiaram de potenciais mordomias.

A verdade é que a infância, em qualquer quadro que se tenha vivido, deixa-nos marcas que jamais conseguimos apagar. Delas fazem ou fizeram parte um alargado universo de pessoas, onde se evidência as crianças com quem partilhamos bons e maus momentos.

Fui companheiro, quase inseparável, desde o início da idade escolar. Vivia, na altura, próximo do largo da aldeia e eu, mais distante, na rua que se designava por Outeiro. Apesar de percorrermos caminhos diferentes, era difícil entrar na sala de aulas um sem o outro. Chegávamos muitas vezes mal calçados, a tinir de frio, com a nossa sacola de cotim às costas e, só depois de nos saudarmos, seguíamos para as carteiras que o mestre Prof. Joaquim Andrade vigiava. Os intervalos serviam para rever os temas mais variáveis, como para programar o "assalto" ao local onde existisse fruta.

Crescemos em sã convivência. Os nossos pais aceitavam a nossa amizade, o que nos permitia ser mútuos convidados para o "sarrabulho" e "ceia da matança" do porco. Aprendi, com esse meu amigo, a conhecer o perfeito estado de maturação dos diospiros, depois de uma amarga experiência com o fruto, desviado do quintal do Dr. Elias, que se apresentava bonito, mas nos deixou com a boca áspera.

Os anos passaram sem que existisse corte ou desvio da nossa amizade. Já rapazolas, disputávamos a chegada à Praia de Mira, nas “pasteleiras” que dispúnhamos. Para meu desgosto era quase sempre ele o vencedor, pois usufruía de grande aptidão para pedalar a bicicleta.

A adolescência passou e os anos mais marcantes da juventude, o que nos forçou a algum afastamento. A imposição do serviço militar exigiu caminhos totalmente opostos.

Alguma sorte em meu benefício permitiu cumprir, essa forçosa obrigatoriedade, bem próximo da minha residência no continente. O mesmo não aconteceu ao meu bom amigo. Vestiu a farda bem mais longe e foi incorporado numa "companhia " mobilizada para a Guiné.

Eu constituí família e tenho o privilégio de, há quase cinquenta anos, usufruir do bom e menos bom que a vida nos proporciona.

Esse meu velho companheiro não teve a mesma sorte. A 12 de Outubro de 1970, numa operação militar, em confronto com o inimigo da época, não resistiu aos destroços provocados por uma bala que trespassou o seu crânio, roubando-lhe a vida de vinte e um anos.

Perdeu-se o conterrâneo, o amigo, o irmão, o familiar e o filho.

Pobres pais que carregaram o peso do desgosto com tanta amargura, até ao final de vida.

Pobre mãe que nunca mais conseguiu forças para superar tamanha dor. A vivência em permanente angústia, desencadeou tão complexas patologias que a empurraram para um fim de vida precoce.

Está a aproximar-se a data que marca os cinquenta anos após esse fatídico acontecimento. Era oportuno marcar essa data com algo visível que avivasse a memória dos vivos e transportasse à geração presente e futuras os horrores da perda de um ente querido em tão trágicas circunstâncias. É imperioso que os jovens de hoje e do amanhã, tenham presente o terror que, os também jovens naquele tempo, sentiam com a permanente ameaça de serem obrigados a viajar para continentes desconhecidos, para combater numa guerra que só interessava a alguns.

É forçoso não deixar esquecer esse período trágico que originou a morte de 8831 jovens (leiam bem, oito mil, oitocentos e trinta e um!...) e manchou de luto todo o nosso país.

É, pois, chegada a hora de perpetuar o nome de José da Cruz Mamede, atribuindo o seu nome, em placa toponímica, a uma rua, um largo ou praça na terra que o viu nascer.

Medida que será justo estender a mais dois combatentes da nossa freguesia, que morreram pela mesma causa:

Alípio de Jesus Delfim, natural da Silvã, morto em combate em Angola, a 5 de Setembro de 1965; e Osvaldo Simões Godinho, natural da Vimieira, morto em combate em Moçambique, a 11 de Agosto de 1973.

Foi destes jovens que a nossa freguesia ficou órfã nesse conflito que designaram como "Guerra Colonial".

É à nossa freguesia que assenta o dever de colocar, aos olhos dos vivos, os nomes daqueles que, em nome do País, lhes ofereceram a morte.

Verdadeiros "Heróis da Terra"

Casal Comba - Mealhada

(Reproduzido com a devida vénia)
____________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 4 de maio de  2024 > Guiné 61/74 - P25476: 20.º aniversário do nosso blogue (14): Alguns dos melhores postes de sempre (X): O fatídico dia 12 de outubro de 1970: a emboscada de Infandre, Zona Oeste, Setor 04 (Mansoa) (Afonso Sousa, ex-fur mil trms, CART 2412, 1968/70)

(**) Último poste da série > 24 de abril de 2024 > Guiné 61/74 - P25436: (De) Caras (206): Arsénio Puim, ex-alf graduado capelão, CCS/BART 2917 (Bambadinca, mai 70- mai 71), vai fazer 88 anos em 8/5/2024... Associemo-nos à homenagem (e a surpresa) que lhe quer fazer a Tertúlia Açoriana.

6 comentários:

Anónimo disse...

Antes de mais dizer, deixo aqui, em favor de Fausto Cruz, a minha gratidão por não ter esquecido o seu amigo da adolescência, nosso camarada morto na Guiné, José da Cruz Mamede.
Chamou-me a atenção esta publicação, por um motivo acrescido : provavelmente conheci, nos tempos em que assentei residência na Casa Paroquial de Casal Comba e enquanto ex-aluno do Colégio da Mealhada este camarada , bem como o Osvaldo Godinho do lugar da Vimieira.

Um grande abraço.

Carvalho de Mampatá

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Pois é, recorde-se que o nosso Carvalho de Mampatá, em 1962, sai de Medas, Gondomar, vai para o Colégio da Mealhada, que frequentou até ao 7º ano do liceu... E isso teve um impacto grande na sua vida e no seu futuro...

Este colégio fora undado pelo padre dr. António Antunes Breda, como Instituto Liceal e Técnico Sant'Ana da Mealhada, e inaugurado em 1962, funcionando como externato e internato. Passou em 1972 a ser a Escola Secundária da Mealhada...

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2021/09/guine-6174-p22528-lembrete-35.html

Anónimo disse...

Em complemento:
Este senhor, padre e licenciado em Direito, foi também Presidente da Câmara da Mealhada, antes do 25 de Abril. Está estatuado, como figura proeminente, na rotunda da antiga E.N.1, perto do Cine-Teatro Messias. Foi meu professor de francês durante um ano.

Carvalho de Mampatá

Tabanca Grande Luís Graça disse...

No nosso caso, felizmente, as mulheres começaram lentamente, a partir dos anos 40, a libertação das peças de vestuário que os homens, ao longo dos séculos, lhes impuserm como símbolos de submissão e opressão... Mas a mudança vem, muitas vezes, de fora...

Veja-se esta peça de antologia do jornal "Expresso":

https://expresso.pt/sociedade/2017-08-16-Salazar-controlou-tudo.-Ate-os-ousados-fatos-de-banho-das-refugiadas

(...) Em 1940, Portugal recebeu milhares de refugiados em fuga de uma Europa que era mais tolerante nos costumes, mas estava em guerra. As mulheres estrangeiras fumavam, usavam saias curtas e iam sozinhas paras os cafés, deixando muitos homens portugueses embasbacados com tanta modernidade. No ano seguinte, para prevenir alegados atentados ao pudor nas praias, Salazar legislou sobre o que os fatos de banho devem esconder. E porque estamos em plena época balnear, o Expresso republica este texto sobre o tamanho dos maillots noutro tempo... (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

No nosso caso, felizmente, as mulheres começaram lentamente, a partir dos anos 40, a libertar-se das peças de vestuário que os homens, ao longo dos séculos, lhes impuserm como símbolos de submissão e opressão... Mas a mudança vem, muitas vezes, de fora...

Veja-se esta peça de antologia do jornal "Expresso",de 16 de agosto de 2017, assinada pela jornalista Manuela Goucha Soares:

https://expresso.pt/sociedade/2017-08-16-Salazar-controlou-tudo.-Ate-os-ousados-fatos-de-banho-das-refugiadas

(...) Em 1940, Portugal recebeu milhares de refugiados em fuga de uma Europa que era mais tolerante nos costumes, mas estava em guerra. As mulheres estrangeiras fumavam, usavam saias curtas e iam sozinhas paras os cafés, deixando muitos homens portugueses embasbacados com tanta modernidade. No ano seguinte, para prevenir alegados atentados ao pudor nas praias, Salazar legislou sobre o que os fatos de banho devem esconder. E porque estamos em plena época balnear, o Expresso republica este texto sobre o tamanho dos maillots noutro tempo... (...)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não resisto a reproduzir aqui mais este exscerto do artigo da Manuel Goucha Soares:

https://expresso.pt/sociedade/2017-08-16-Salazar-controlou-tudo.-Ate-os-ousados-fatos-de-banho-das-refugiadas

(...) A chegada das refugiadas estrangeiras abanou e arejou um Portugal cinzento e fechado sobre si próprio, e pôs (alguns) os homens portugueses em alvoroço e a hierarquia religiosa em alerta.

No seu livro “Recordações de um Caminheiro” − citado por Irene Pimentel em “Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial” − o escritor, dramaturgo e advogado antifascista Alexandre Babo recorda as "esplanadas da Avenida ou do Rossio” onde se viam “franceses, belgas, holandeses, judeus dos mais remotos lugares”.

O autor também se refere a uma das pastelarias mais famosas da Lisboa de então: “À Suíça, no Rossio, já chamavam o ‘Bompernasse’, [numa alusão às pernas das mulheres que passeavam pela zona parisiense de Montparnasse]”, porque por ali “predominavam as mulheres (...) fumando em público. (...) Tudo isto era murro na boca do estômago do provincianismo nacional. (...) Aquela gente aparentava outros hábitos, mais livres, mais naturais e abertos (...) sem olharem (elas) de soslaio os machos, sentadas nos cafés, nas cervejarias, nos passeios públicos, o que até então era apanágio exclusivo dos homens e de algumas poucas mulheres.” (...)

(Negritos meus. LG)

PS - Há quem tenha saudades desses tempos...