sexta-feira, 3 de maio de 2024

Guiné 61/74 - P25474: Notas de leitura (1688): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Março de 2024:

Queridos amigos,
Não vale a pena insistir na tecla de que este Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde e da Costa da Guiné só excecionalmente fazia referências ao que se passava no continente, num ponto mal definido que tanto podia ser chamado por Senegâmbia Portuguesa, como Costa de África ou Estabelecimentos de Bissau e Cacheu. Procurando folhear toda a documentação de Boletins em depósito na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa, passou-se a pente fino 1850 e 1851 e estou em crer que o leitor não perderá o seu tempo a tomar notícia das atribuições que um governador-geral da Guiné entregava ao recentemente empossado comandante interino da praça de S. José de Bissau, tenente-coronel Alois de Rolla Dziezaski e ficar informado que chegara um negócio próspero à agricultura da Guiné. a amêndoa de mandobi, a mancarra.

Um abraço do
Mário



Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1850 e 1851) (1)


Mário Beja Santos

Para se ter uma prova provada de que aquele ponto da Guiné, tratado como Costa da Guiné, era uma quase excrescência do Governo Geral de Cabo Verde, é indispensável folhear o Boletim Official dos anos anteriores à autonomização da Guiné como província (1879). Desde já previno o leitor que o Boletim é surpreendente, quer no que é designado como parte oficial e parte não oficial, há folhetins, há divulgação cultural, há crítica literária, comenta-se as obrigações do sacerdócio…, mas praticamente tudo centrado num conjunto de ilhas cabo-verdianas, só em termos residuais vamos ter conhecimento do que se passa em Bissau e em Cacheu. É um documento que se lê e recebe compensações, veja-se o tratamento dado ao fim do cabralismo e à chegada do Duque de Saldanha a Lisboa, prenunciava-se a Regeneração. E havia muita esperança naquele D. Pedro V, homem culto, interessado na prosperidade portuguesa, adorado por famílias reinantes, isto num tempo em que os Saxe-Coburgo Gotha estão presentes em todas as famílias reinantes (o rei D. Fernando, pai de D. Pedro V, pertencia a esse ramo de família alemã).

No Boletim Oficial N.º 20, ano de 1850, 18 de maio, dá-se a seguinte notícia:
“Terça-feira passada entrou no porto da Furna desta ilha (Brava), a escuna de guerra Cabo Verde vinda de Guiné com escala pela vila da Praia. Durante alguns dias da sua comissão naquela paragem, lutou com um temporal forte do qual milagrosamente puderam salvá-la. Um dos seus dignos oficiais, o senhor tenente Manuel da Silva Caldas, foi presa da morte! Uma febre adquirida em Cacheu, lhe foi roubar os dias de mocidade em Bissau. Perdeu a Armada Portuguesa um mui digno oficial; a sua jovem com sorte um extremoso marido! Os seus numerosos amigos que já sabem do seu prematuro fim, o têm chorado sinceramente; - e quantas lágrimas não lhe serão ainda tributadas! Por certo, porque um cavalheiro como o senhor Caldas tem direito a tais provas de saudade.”

Vejamos agora o N.º 71, ano 1851, 20 de setembro, vamos saber de nomeação do Tenente-Coronel Alois de Rolla Dziezaski, nos seguintes termos:
“Sendo de urgente necessidade nomear para o Governo da importante Praça de S. José de Bissau um oficial de experimentada capacidade, o governador-geral determina que o Tenente-Coronel Alois de Rolla Dziezaski passe imediata e interinamente a exercer aquele governo, por ter neste oficial a maior confiança em razão da firmeza com que sempre tem sabido manter a dignidade da Coroa Portuguesa, e da moderação e prudência que presidem a todos os seus atos; ficando o mesmo tenente-coronel exonerado do comando militar da ilha de São Nicolau e que exerceu com a sua costumada aptidão e probidade.”
Assina Fortunato José Barreiros, Brigadeiro, Governador-Geral.

Duas páginas à frente e de novo o Brigadeiro Barreiros se dirige ao Tenente-Coronel Dziezaski:
“Sendo urgentíssimo ocorrer às instantes necessidades dos diferentes Estabelecimentos da Costa da Guiné, os quais, pela distância em que se acham deste arquipélago, muito sofrem com a demora das prontas providências que reclamam: convido outrossim dar unidade à ação governativa daquela colónia, e fazer com que as autoridades civis, judiciais, militares e fiscais não só tenham uma autoridade central próxima a que recorram, para as apoiar no exercício das suas funções, quando os meios locais para isso forem insuficientes, mas também para que essa autoridade central próxima possa vigiar se os empregados subalternos cumprem com os seus deveres, e compeli-los a tal cumprimento quando necessário seja: e tendo plena confiança na capacidade governativa do Tenente-Coronel Alois de Rolla Dziezaski, governador interino da praça de S. José de Bissau, o qual, pelos bons serviços que já tem prestado, assina o arquipélago como na referida Costa da Guiné, dá suficientes garantias de que saberá fazer um melhor uso da autoridade e agora se lhe confere, e cujo exercício o governador-geral do província o autoriza:
1.º - A residir no lugar do seu Governo interino, que julgar mais conveniente ao serviço.
2.º - A tomar contas às autoridades de todas as classes; examinar a escrituração oficial de todas as repartições, para conhecer se tem sido até agora, e está sendo, feita com a devida regularidade; assim como, se todas as ordens e manadas deste Governo Geral, têm recebido pontual cumprimento, e quais os motivos que houverem demorado a execução de algumas que ainda não o tiverem sido; fazendo-as pôr logo em prática, quando disso não resultem inconvenientes ao serviço.
3.º - A suspender e fazer autuar e processar na conformidade das leis e ordens em vigor as autoridades que, por desleixo, conivência, ou por fraude, tiverem prejudicado a Fazenda Pública, enviando essas autoridades, depois de competentemente processadas, para este arquipélago.
4.º - Do mesmo modo, mandar proceder a Conselho de investigação contra as autoridades militares que, esquecidas da própria dignidade e dos seus deveres, descerem ou tiverem descido à baixeza de mercadejar com os seus subordinados, e não mantiverem, ou houverem deixado de manter entre eles a instrução e disciplina a que são obrigados.
5.º - Mandar proceder aos orçamentos para a despesa que exigirá a reparação da muralha de revestimento da Praça de S. José de Bissau, e os outros pontos fortificados pelo seu Governo interino, propondo os meios mais compatíveis com o estado da Fazenda da Província, para se proceder a essas reparações, e procurando convencer os habitantes desses pontos, que é da sua particular conveniência, que eles se prestem a adiantar as somas precisas para tais reparações, mediante contratos iguais ou semelhantes àquele que propusera o falecido tenente-coronel Caetano José Nozolini para Bissau: enviando os contratos que neste sentido fizer, para serem examinados por este Governo Geral e aprovados pela Junta da Fazenda Pública da Província, no caso que convenham.
6.º - Passar uma escrupulosa inspeção à Força Armada, e ao material de artilharia existente na Costa da Guiné, enviando o resultado com as propostas de melhoramento de que precisam, e indicando os meios que lhe parecerem mais favoráveis à Fazenda, para se conseguirem esses melhoramentos.
7.º - Tomar todas as medidas que estiverem ao seu alcance para ocorrer ao bom tratamento dos doentes que houver em toda a extensão do Governo interino que lhe é confiado, assim como as que disserem respeito à boa polícia, e salubridade das habitações, pedindo motivadamente as que de dependerem deste Governo Geral.
8.º - Finalmente, exercer provisoriamente na Costa da Guiné, em casos urgentes, toda a autoridade, que pela Lei e Ordens em vigor compete ao Governador Geral, dando de tudo, e sempre que houver embarcação para este arquipélago, uma conta circunstanciada das providências que adotar.

O que tudo se comunica ao referido tenente-coronel, pela sua inteligência e execução, esperando do seu reconhecido zelo que desempenhará esta importante comissão da maneira como sempre se tem havidas das anteriores.”


Temos também N.º 59, ano 1851, 7 de junho, uma portaria ao Diretor da Alfândega de Bissau que reza o seguinte:
“Tendo requerido João Severiano Duarte Ferreira uma licença de dois meses para vir tratar a este arquipélago a sua arruinada saúde, como mostra por um atestado do cirurgião António Joaquim Ferreira; e querendo anuir a este requerimento, sem que seja possível nas circunstâncias atuais nomear outro empregado idóneo que vá substituir o suplicante; que por tão justos motivos ordeno: - Que, se ao receber desta portaria se não achar aliviado dos seus padecimentos o dito diretor da alfândega de Bissau, João Severiano Duarte Ferreira, lhe seja permitida entregar interinamente o serviço da mesma alfândega a um indivíduo da sua confiança, para sob a responsabilidade do suplicante exercer aquele emprego enquanto ele, suplicante, vem gozar dos dois meses de licença que pede.”

E deixámos para o fim o Boletim Oficial N.º 93, 1852, 25 de maio. Alguém que assina pelas letras M.F.L. expõe o proveito que está a trazer ao Estabelecimento de Bissau a amêndoa de mandobi, geralmente conhecida com o nome de mancarra, começou a ser procurada em Bissau no ano de 1846; e os navios estrangeiros, que a buscavam, levaram nesse ano toda a que encontraram, em 400 bushels (velha unidade de medida), no valor de 200 pesos: este pequeno lucro animou logo a sua cultura; e a contínua e sucessiva diligência de navios franceses, americanos, e alguns belgas, para a obter, a fez crescer a tal ponto que no ano findo de 1851 a sua exportação chegou a perto de 100$000 bushels, no valor aproximado de 50 mil pesos, e perto de 2.000$000 de reis de direitos para a Fazenda Nacional; assegurando-se que no corrente ano será muito maior a saída da mancarra, tendo-se feito grandes sementeiras dela, nas ilhas de Bolama e das Galinhas. A mancarra está sendo para Bissau que é a semente de purgueira para estas ilhas. Mais adiante, o autor entende explicar as utilizações da mancarra:
“É não só estimada para comer, para confeitarias, e no sul da França para diversas composições; como para fazer excelente azeite, para temperar, e para luzes: o sabor deste azeite na comida é bom, e a sua luz clara, sem fumo, sem mau cheiro, e não suja. O seu fabrico é facílimo, e materialmente se obtém levando a mancarra ao pilão, para a descascar; depois do que se coze a vapor, pelo mesmo método que se usa para fazer cuscuz, servindo de binde uma tagarra grande; e estando a amêndoa suficientemente amolecida, se passa a uma prensa, encanada em palha, e desde logo sai o azeite: a massa ou bolo que fica desta operação, dizem ser boa nutrição, que a compram a troco de frutos.
Os terrenos soltos são os mais próprios para a cultura da mancarra. Em terreno solto apanha-se arrancando a planta e traz com ela a amêndoa. A rama da mancarra é também ótimo sustento para o gado e dá bom sabor à carne. A mesma rama deixada na terra, toma diferentes raízes e brota novamente sem necessidade de outra semente, em terrenos húmidos: semeia-se no tempo das águas.”


M.F.L termina o seu texto de um modo quase apoteótico:
“A agricultura é a única e verdadeira fonte de todas as riquezas; sem os produtos da terra, nem o comércio, nem a indústria prosperam. Houve tempo em que a urzela enriquecia esta província; hoje veio substituí-la a semente de purgueira; e os mercados da Europa e da América se abrem à mancarra que, como já se viu, está dando tão avultado interessa na Costa, e acha pronta denta: o que tem reanimado o decadente comércio de Bissau, renovado a sua povoação e promovido plantações de outros produtos, que servem consideravelmente ao seu comércio, e aumentam os rendimentos públicos. Oxalá que este pequeno brado possa excitar os nossos concidadãos neste arquipélago a adquirir mais um meio de subsistência tão pronto, tão útil e de tão pouco trabalho. Convençam-se que a terra abre verdadeiramente os seus tesouros a todos aqueles que os procuram.”

Era a consagração da mancarra como a matéria-prima que, finda a escravatura parecia destinada a alavancar o desenvolvimento da Costa da Guiné.

Vista antiga de Cacheu
Visita do Príncipe Real D. Pedro (D. Pedro V) a Londres, onde visitou o Palácio de Cristal e empreendimentos científicos; debruçado está o Infante D. Luís (futuro Rei D. Luís I) e de costas a Rainha Vitória. A Imperatriz das Índias dizia abertamente que D. Pedro era o seu sobrinho dileto, chegou a magicar um casamento dele com uma das filhas, algo que não escandalizasse a religião anglicana. Há repetidas menções a D. Pedro V no Boletim Oficial do Governo de Cabo Verde.
Imagem antiga da Fortaleza de S. José de Bissau
Imagem do século XIX de Vila da Praia

(continua)
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Nota do editor

Último post da série de 2 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25468: Notas de leitura (1687): "Poemas de Su Dongpo", introdução e notas de António Graça de Abreu (Lisboa, Grão-Falar, 2023, 177 pp.) Parte I

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