segunda-feira, 29 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25459: Notas de leitura (1686): O islamismo na Guiné Portuguesa, de José Júlio Gonçalves, edição de 1961 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Outubro de 2022:

Queridos amigos,
José Júlio Gonçalves escreve este ensaio dardejando um sem número de advertências quanto aos riscos da islamização na Guiné Portuguesa. Não houve trabalho de campo, é uma escrita oficinal de quem conhece bem as publicações do Centro Cultural da Guiné Portuguesa. Compreende-se, no entanto, como a obra se tornou incómoda logo a seguir à sua publicação, foram sobretudo as hostes muçulmanas quem deram maior apoio às forças portuguesas durante a luta armada, a natureza dos perigos que o autor julga estar a visionar diluiu-se completamente, nem o animismo definhou nem o cristianismo colapsou, pelo contrário, tornou-se no quadro das práticas religiosas a força mais atuante pela sua credibilidade no campo da saúde, da educação e até da cultura - veja-se o caso dos dicionários de crioulo e do estudo das lendas e tradições guineenses. Ironias que o pós-Império tece...

Um abraço do
Mário



O islamismo na Guiné Portuguesa, um olhar de há mais de 60 anos

Mário Beja Santos

A obra intitula-se O Islamismo na Guiné Portuguesa, de José Júlio Gonçalves, a edição é de 1961 e mal se começa a ler percebe-se logo como se tornou obra incómoda para a política do Estado Novo, é uma cartilha de doutrinação para fazer recuar o islamismo na Guiné, encontrando adeptos “civilizados” para lhe fazer frente na linha do catolicismo. É uma obra feita de leituras, embora o autor fale em ensaio sociomissionológico, não há trabalho de campo, baseia-se em doutrina alheia, leu atentamente o que se publicou no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa e outros trabalhos alusivos à presença muçulmana na região subsariana. Identifica os métodos catequéticos islâmicos: as escolas corânicas, a pregação através das confrarias religiosas, as prédicas dos chefes religiosos, a identidade dada pela indumentária, o uso da rádio e da imprensa, o aproveitamento da quase completa ausência de missionários europeus, a exploração dos erros da administração europeia.

Falando da indumentária, tece os seguintes comentários:
“Como é que um pobre afro-negro não há-de sentir ganas de se desenraizar, mandar os filhos à mesquita e à escola e tornar-se membro de uma religião que lhe trará elevação social. São impressionantes estes negros atraídos pelo prestígio do balandrau. É vê-los acorrer aos povoados através dos matagais limítrofes; quando se aproximam da povoação aperaltam-se cuidadosamente. Depois entram com solenidade, falsamente aprumados! Lembram algum tanto o ingénuo camponês europeu, quando vai à cidade!”

Adverte quem o lê para os perigos da rádio, a difusão do credo de Mafoma é feita pela rádio Cairo, no fundo estas mensagens acicatam para o nacionalismo, para combater o branco, aguardar a libertação… Estes agentes difusores do Islão infiltram-se através de países fortemente islamizados; e há um inteligente aproveitamento das rivalidades entre os missionários católicos e protestantes; deplora, em linguagem cuidada, a colonização feita por gente iletrada, a sua incapacidade para promover a ocidentalização dos negros-africanos; e, quanto aos erros da administração, elenca a discriminação racial, a manutenção de alguns chefes muçulmanos tendenciosos e a preferência pelos islamizados para servir nas forças públicas.

Procura contextualizar como se tem processado a islamização dos guineenses, faz um enquadramento histórico através do reino de Gana, o império Mandinga e os impérios Songoi e dá seguidamente a relação dos grupos étnicos diferenciados para depois os enquadrar em animistas, animistas ligeiramente islamizados, bastante ou quase completamente islamizados, mostra as resistências dos preponderantes grupos animistas, desde os Felupes aos Bijagós. Temos igualmente um relance sobre a presença do catolicismo a ao papel positivo desempenhado pelos franciscanos a partir de 1932. Diz claramente que não se tem prestado a devida atenção aos problemas religiosos da Guiné Portuguesa, que a presença cabo-verdiana tem sido mal utilizada, eles deviam ser os elementos difusores da cultura portuguesa e do catolicismo. Acha que se devia recorrer a missionários católicos com conhecimentos médicos e outros de idêntica utilidade para os guineenses. Citando Rogado Quintino, acha que é necessário estabelecer um cordão de missões católicas ao longo da linha que separa nitidamente os muçulmanos e os animistas. E não deixa de relevar que cristianizar deve significar aportuguesar. Há para ele um grave perigo com as missões protestantes. A missão que existia ao tempo era anglo-americana, dispondo de amplos fundos e observa que promove uma verdadeira assimilação tecnológica que não se traduz num aportuguesamento. Suspeita dos mouros, vagabundos e comerciantes ambulatórios que percorrem a Guiné Portuguesa, o rosário numa mão, o livro sagrado na outra, infundem respeito e temor, criando em seu proveito uma auréola de prestigiosa admiração. E pior que tudo, mostram-se inimigos irredutíveis da evolução dos guineenses no sentido ocidental.

Discorre com alguma minúcia sobre a ação missionários dos marabus, mouros, jilas, tchernos, almamis, arafãs, entre outros, o papel das confrarias, o trabalho catequético de Fulas e Mandingas, como se desenvolve o seu proselitismo, quando necessário o uso da força, como o Corão influencia as culturas tradicionais, intrometendo-se no próprio direito. É profundamente crítico sobre a influência muçulmana nas artes plásticas guineenses: “O Corão desempenhou um papel preponderante no aviltamento das atividades plásticas dos guineenses, proibiu a representação da figura humana na escultura, até de animais, a escultura é meramente decorativa. Talvez este seja um dos mais evidentes motivos por que a pujante escultura de certos grupos étnicos ditos animistas esmaeceu e só em certos pontos inóspitos ou nas faixas litorálicas e dos arquipélagos costeiros se manteve um pouco mais ao abrigo da forte e operante influência mourisca”. No fundo, as grandes exceções às proibições muçulmanas ainda eram as esculturas Bijagó e Nalu. Mas mesmo assim, observa o autor, a escultura dos Nalus estava em regressão devido à influência dos Fulas e dos Sossos islamizados.

Um tanto fora do contexto, mas sempre com o ar de quem alerta e aconselha os próceres da política ultramarina, lembra os países independentes à volta da Guiné, os apelos do Gana à subversão das elites e das massas da Guiné Portuguesa, enfim, era preciso estar muito atento às provocações e à agitação que estes países independentes iriam suscitar no futuro.

Em jeito de conclusão, parece ao autor que o animismo corre o risco de desaparecer mais cedo ou mais tarde sobre o impacto do Islão; se não houver oposição do cristianismo, o islamismo irá absorver a quase totalidade dos guineenses; impõe-se, pois, ao cristianismo a premência de aumentar a sua ação catequética junto dos animistas. E há delicados problemas políticos, que aparecem aqui enquadrados um tanto paradoxalmente, já que no ensaio não se fez outra coisa do que mostrar os perigos do islamismo na Guiné e agora vem dizer-se que esta corrente pró-muçulmanos colabora amplamente com a administração portuguesa e que o fenómeno independentista não tem tradições na Guiné, não passa de uma inovação de cultura francesa e anglo-saxónica. E como para atenuar o caudal de advertências quanto aos perigos presentes e futuros, parece finalizar com frases tranquilizadoras, dizendo que “O movimento pró-português é, pode dizer-se, desde o século XV, o movimento tradicional das tribos da Guiné Portuguesa que desejaríamos não ver perturbado.”

O rol de contradições que se seguiu à publicação deste ensaio terá contribuído para o relegar às estantes, tais e tantos eram os incómodos que ele poderia suscitar num templo em que as forças islâmicas foram inegavelmente os grandes sustentáculos à luta contra o PAIGC.


Natural de Pampilhosa da Serra, José Júlio Gonçalves nasceu a 19 de janeiro de 1929. Esteve ligado, em 1984, à elaboração da moção da Nova Esperança (de um grupo de figuras do PSD, com Marcelo Rebelo de Sousa, Santana Lopes e Durão Barroso), de alternativa ao grupo de Pinto Balsemão e Mota Amaral. Fez parte do grupo de professores que saíram em divergências com a Universidade Livre e de cuja iniciativa partiu, em 1986 a criação da Universidade Moderna, da qual foi nomeado reitor, tendo sido vogal da Direção no triénio 1991-1993 e Presidente da Direção, no triénio 1997-1999.
Muçulmanos guineenses na reza do Tabaski
Uma mesquita em Bissau
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Nota do editor

Último post da série de 28 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25454: Notas de leitura (1686): Timor Leste, que já foi lugar de desterro e encarceramento (Luís Graça)

7 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

O professor doutor José Júlio Gonçalves era conhecido como o JJ, no tempo em que eu (e outros estudantes como o Sagueiro Maia) frequentava, em 1975, o ISCSP, o antigo ISCSPU (Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina).

No 1º ano (e único ano) em que eu lá estive, todo o "conselho científico" tinha sido anteriormente saneado, incluindo o Adriano Moreira... O JJ, que eu nunca conheci pessoalmente, era um dos "catedráticos", uma das "múmias" (como lhe chamavam os estudantes do antigo ISCPU).

O ISCPS teve uma vida conturbada nessa época, ou melhor, logo desde 1969, com a crise académica.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não sei o que é que o nosso amigo Cherno Baldé e outros bons muçulmanos, como o saudoso Amadu Djaló, ou o David Munir, imã da Mesquista Central de Lisboa, podem ou poderiam dizer sobre este escrito, se lhes fosse parar às mãos... É certo que está "datado" (e, felizmemnte, "enterrado"), mas é bem uma cópia do pior etnocentrismo e da "pobre ciência" que o então ISCSPU produzia ao serviço do regime...

Antº Rosinha disse...

"o fenómeno independentista não tem tradições na Guiné, não passa de uma inovação de cultura francesa e anglo-saxónica".

Embora esta afirmação não seja uma verdade absoluta, até porque o MPLA, o PAIGC onde quem mandava eram os Estudantes do Império, católicos apostólicos e bem portugas, mas este homem diz coisas que no que respeita ao povo tem muita razão.

O povo a quem os estudantes diziam pouco ou nada mesmo.

As culturas francesas, inglesas e mais tarde americanas foram impingidas em África com toda a força pelas missões de toda a ordem, em que as missões portuguesas eram as que menos "dilatavam a fé e o império", e os protestantes até faziam retrair o islamismo em grande parte de África.

O que me faz concordar com muito do que diz este autor, foi aquilo que surpreendeu toda a gente, até os estudantes do MPLA, marxistas/moscovitas, quando dentro das missões evangelicas foi doutrinada no norte de Angola a multidão da UPA.

Preparados no norte de Angola e no ex-Congo belga.

Mas o homem diz outras interessantes.

O Beja Santos lá vem com estas coisas.

Anónimo disse...

Caros amigos,

O autor deste trabalho pseudo-cientifico diz disse nada que outros administradores e proselitos ja tinham dito sobre o perigo da propagacao do islamismo nos territorios "portugueses". Tambem e sabido que o mesmo acontecia nas colonias francesas, alias a franca teve mais problemas com chefes religiosos na regiao do Shael entre o Senegal e o Mali.

No fundo o verdadeiro problema nao era a religiao, mas a influencia que podia ter nas populacoes as quais se pretendia dominar e se possievel converter ao cristianismo para facilitar o objectivo principal de controle e dominacao cultural. O caso ultrapassava de longe o mero problema do etnocentrismo ou eurocentrismo, era a politica colonial ou se quiserem imperialista de dividir, oprimir, controlar para melhor dominar e nesse sentido todos deviam colaborar, incluindo a igreja e homens rotulados de cientistas, mas que estavam ao servico do regime.

No livro do historiador frances encontrei varios casos de problemas com os chamados Xerifes que no Senegal sao designados por Charif ou Cherif e que vinham, na sua maioria das regioes mais a Norte (Marrocos, Argelia e Tunisia) e que se auto-titulavam descendentes do Profeta Mohammad (Mohamed).

A realidade e que era pura perda de tempo, pois muitos seculos antes da invasao europeia, da divisao e ocupacao de facto dos territorios, o islamismo ja era uma realidade irreversivel em toda a zona ocidental e os Arabes nao tinham vindo a Africa para obriga-los a se converter a forca, mesmo se depois os africanos utilizaram a forca em forma de jihad para converter outros africanos, mas isto e outra historia.

Nas minhas memorias de infancia eu falei da alianca paradoxal entre portugueses e fulas durante o periodo da "pacificacao" na Guine dita portuguesa, salientando que "sempre que os portugueses precisavam, convocavam os muculmanos (Fulas, Mandingas e Biafadas) nas suas campanhas de repressao contra os povos do litoral (animistas), mas logo que se sentiam um pouco aliviados da pressao destes, apressavam-se para manda-los embora de regresso as suas origens a fim de nao influenciar com a pratica do seu proselitismo religioso". O livro de Rene Pelissier e bastante explicito, mesmo se nao fala das razoes subjacentes, mas nos sabemos.

Cordialmente,

Cherno Balde


Valdemar Silva disse...

Cherno Baldé, a falta que faz no computador com teclado em português, e assim, julgo eu, em vez '..os africanos utilizaram a forca em forma de jihad..' seria antes '...utilizaram a força....'
Entre forca e força há um pescoço bastante mais apertado ahahah!!

Como sabes a minha CART11 era composta na grande maioria por soldados fulas e futa-fulas e todos eram muçulmanos. Nunca tivemos nenhum problema com os metropolitanos católicos quando alguns faziam as suas orações diárias e durante o jejum do mês do Ramadão. Nas festas do final do Ramadão, estava em Canquelifá, assim como o nosso Cap. Analido Pinto e assistimos todos em conjunto com a população às festividades.
Uma curiosidade, os soldados fulas eram muito pedinchões e quando sabiam que algum de nós vinha à metrópole de férias pediam 'traz, traz... algun kusa'. O Mamadu Gano do meu pelotão que era um grande pedinchão, pediu-me para trazer 'furiel trás fiu oro con krus '(um muçulmano!!)

Abraço
Valdemar Queiroz Embaló

Anónimo disse...

Caro Valdemar,

No meio do obscurantismo em que viviamos, nem todos conseguiam saber das diferenças entre as religiões e a cruzinha na ponta do fio estava na moda e era grande ronco.

Normalmente quando um grupo de pessoas vive em interação auto-influênciam-se no comportamento.

Abraços,

Cherno Baldé

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tenho uma história de um "fio de ouro com cruz", que tenho de contar aqui um dia destes...O dono, o furriel mil Cunha, da CART 2715, estava morto, era "tuga", e era preciso levá-lo, às costas òu de padiola improvisada, até ao quartel do Xime, bem longe... O nosso "gigante", Abibo Jau (mais tarde fuzilado pelo PAIGC juntamente com o Jamanca), ofereceu-se para levar o cadáver às costas... Puro altruísmo, camaradagem ? O meu guarda-costas, o 1º cabo José Carlos Suleimane Baldé, contou-me outra versão...Mas eu também vim atrás do Abibo...

Foi há 54 anos... Op Abencerragem Candente (7 mortos, 9 feridos graves...)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/search/label/Op%20Abencerragem%20Candente