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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26471: Notas de leitura (1770): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, a governação de Vellez Caroço, totalmente distinta das anteriores (13) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Janeiro de 2025:

Queridos amigos,
Finda aqui a digressão pelo livro de Armando Tavares da Silva, "A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016, foi a nossa bengala como contraponto à rotina burocrática do Boletim Official da Guiné Portuguesa. Com efeito, o Boletim Official, talvez tirando o período da governação do tenente-coronel Vellez Caroço, é meticuloso quanto à publicação dos diplomas emanados pelo Governo em Lisboa, elenca nomeações, movimento marítimo, aforamentos e concessões de terrenos, etc., etc., mas sonega-nos informações da vida quotidiana, conflitos interétnicos; é evidente que nos vamos apercebendo da gradual presença portuguesa dentro da colónia e como se está a alterar o movimento import-export, vão saíndo empresas estrangeiras, a CUF tem um papel dominante e, já mais atrás, a Sociedade Comercial Ultramarina. Sinto falta a partir de agora de uma obra que me permita o contraponto ao Boletim Oficial, usarei como recurso a História da Guiné, Portugueses e Africanos na Senegâmbia, 1841-1936, de René Pélissier, mas sinto que há um vácuo entre 1928 e 1933, isto a despeito do golpe revolucionário republicano que eclodiu na Guiné entre maio e abril de 1931. A ver vamos como se poderá tapar esta lacuna.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, a governação de Velez Caroço, totalmente distinta das anteriores (13)

Mário Beja Santos

Chega à Guiné em junho de 1921, a colónia tinha estado durante um ano entregue ao secretário-geral Sebastião Barbosa, tinham-se praticado muitas irregularidades. Vellez Caroço tinha apostado em sanear a vida pública da província, faz-se acompanhar do seu sobrinho, que irá exercer as funções de seu chefe de gabinete. Prontamente inicia as visitas pelo território, reconhece que era necessário dissolver a Comissão Municipal de Bissau, o ministro também lhe propõe o restabelecimento do Conselho de Governo. Este oficial de Infantaria conheceu seguramente inúmeros desagradáveis conflitos, é firme e enérgico, anuncia publicamente que não se afastaria uma linha de cumprimento dos seus deveres, indica uma série de ligações que considera prioritárias; Brames a Cacheu, Farim e Bafatá; Mansoa a Bafatá, S. João a Buba, entre outras. É aprovada a criação da circunscrição de Cacine. Já em rota de colisão com Sebastião Barbosa, anula disposições por este tomadas, mas punha-se um problema concreto relativamente à concessão de terrenos, o governador temia as especulações.

Os problemas não se ficaram por aqui: o ex-governador Carlos Pereira havia requerido a concessão por aforamento de 25 mil hectares de terreno na Costa de Baixo, os indígenas protestaram contra esta concessão, nasce processo, o ministro não vê condições para anular a decisão, o governador não desanima, sempre que suspeita de indícios de corrupção manda fazer sindicâncias, não faltou uma sindicância ao coronel Quinhones de Matos Cabral, é suspenso Sebastião Barbosa, vai decorrendo a moralização da vida pública, o governador tem amigos e inimigos, a intriga chega a Lisboa, o ministro resiste e congratula-se com a ação governativa.

Em agosto de 1922, Vellez Caroço elabora o seu primeiro relatório, exprime a sua preocupação com o saneamento da província, já que altos funcionários eram acusados de faltas que iam desde o abuso de autoridade até aos crimes de peculato. Lembra o ministro que há uma tentativa surda de afastamento da colónia da esfera da influência portuguesa. A campanha de difamação contra o governador chega ao Parlamento e à imprensa de Lisboa. Nesse mesmo primeiro relatório, sempre pondo o seu lugar à disposição do Governo, Vellez Caroço fala num período de estabilidade, lembra que era preciso fazer um regulamento do trabalho indígena que estabelecesse um mínimo de trabalho para cada indivíduo. Não poupando a verdade dos factos, o governador afirma que a província se encontrava enxameada de empregados recrutados em Cabo Verde, com pouquíssimas habilitações.

Outros escolhos pendiam sobre a Guiné, a situação financeira, a questão das cambiais e o imposto de palhota. O ministro decidira que fosse adotado na colónia o estabelecimento de uma sobretaxa a que ficariam sujeitas as mercadorias exportadas; tal valor seria devolvido se dentro dos dez dias subsequentes o exportador entregasse na agência do BNU todo o valor, em moeda estrangeira, da sua exportação ou reexportação. Cresceu o descontentamento, o comércio da Guiné sentia-se altamente prejudicado com as disposições deste decreto, dizendo que havia uma escandalosa proteção à CUF. Logo no início de 1923 se verificou que o BNU não tinha numerário suficiente para permitir as transações. O problema vai-se agudizando, em agosto de 1924 Vellez Caroço torna a pedir providências, mantinham-se as dificuldades em fazer transferências para Lisboa, a agência do BNU não tinha recebido ordens de acesso para as fazer. Na ausência de moeda, o governador foi obrigado a procurar meios de aumento das disponibilidades, aumentou a taxa de imposto de palhota, mas foi manifestamente insuficiente. Novas cartas ao Governo, Vellez Caroço pede a demissão e foi-lhe dada, o governador regressa amargurado, em Lisboa sucedem-se os governos, Vellez Caroço acaba por ser nomeado de novo governador, quando chega, ele que se referia aos seus primeiros anos da Guiné como de paz, chega e encontra tumultos para resolver. Tudo começa na região de Nhacra, é decretado estado de sítio, o governador avança para o local dos incidentes com cem homens e peças de artilharia, a população apresenta-se, mas é mantido o estado de sítio, as operações só acabam dias depois.

Em 1925, nova operação em Canhabaque, bem-sucedidas, pelo menos temporariamente.

Esta ação de fomento do governador é notória, são melhoradas as estradas, é inaugurada uma linha telegráfica Farim – Kolda – Dacar. São tomadas medidas de fomento educativo, é criada uma escola noturna de ensino primário, retificam-se fronteiras e reconstroem-se antigos marcos que se achavam danificados. Graça Falcão continuava a ser uma figura controversa; demitido o Exército, mantivera-se ativo na vida da província, propusera-se como candidato a deputado pela Guiné, não tem sucesso mas consegue uma carreira na administração local, conhece castigos, transferências, inquéritos, sai sempre ilibado. Tavares da Silva dá nota da crise fiduciária em 1925, não há possibilidade de manter o equilíbrio orçamental e o delegado do BNU em Bolama recebera ordens da sede para não continuar a fazer transferências para a conta da colónia no Ministério, por falta de cobertura de Lisboa porque tal medida significativa a paralisação dos fornecimentos e dos pagamentos da colónia.

A tensão vai crescendo entre Bolama e Lisboa, o BNU fez a proposta segundo a qual o comércio exportador obrigava-se ao depósito na colónia de 50% do valor da exportação, mas não chegava o dinheiro para pagar os vencimentos aos funcionários. Em Lisboa sucediam-se alterações ministeriais umas atrás das outras. Vellez Caroço novamente pede a demissão, as dificuldades financeiras com que se deparava a província foram aproveitadas pelos adversários de Vellez Caroço, lançaram-lhe novos ataques. Em Lisboa, o jornal O Século também o destrata, refere-se que tinha mandado abrir sem plano nem critério estradas pessimamente construídas e por indígenas que ainda não tinham sido renumerados, a CUF apostava na saída do governador. Ele vem a Lisboa, dirige ao ministro uma exposição relatando todo o problema das transferências, para obviar as reclamações do comércio, o governador propõe que o Governo da metrópole ceda 50% das cambiais provenientes da exportação e reexportação da Guiné; publica-se uma portaria em que o Governo dispensa chamar a si as cambiais correspondentes aos produtos reexportados, satisfazia-se assim a Casa Gouveia.

Tudo isto ocorre nas vésperas do 28 de maio, o comércio de Bolama pede insistentemente ao Governo o regresso imediato do “honesto de Vellez Caroço”, segue o pedido da Câmara Municipal de Bolama, em 23 de junho Vellez Caroço reassume o Governo e elabora um diploma de acordo com o que tinha sido estabelecido com o Governo Central, procura-se uma solução para a questão das transferências. A associação comercial de Bissau manifesta-se em oposição ao governador, este discute a situação com o comércio exportador, os comerciantes de Bolama e Bissau estão divididos. Continua a faltar numerário na circulação da Guiné. Tudo acabará com a verdadeira exoneração de Vellez Caroço em dezembro de 1926.

O trabalho de Tavares da Silva termina com a referência de que Vellez Caroço regressado a Lisboa envolve-se nas sublevações militares de fevereiro de 1927, vindo a ser preso e deportado para a Angola. Resta o epílogo. Vale a pena reter alguns parágrafos.

“As dificuldades financeiras da Guiné e a falta de cambiais continuariam ainda por vários anos a afetar o comércio, sendo o de menor dimensão o mais prejudicado. Igualmente as atividades de fomento, que tiveram um assinalável incremento durante a governação de Vellez Caroço, iriam ser afetadas, assim como os serviços de administração local. Porém, a partir de meados dos anos 30 as contas da colónia passaram a apresentar saldos positivos, aliviando as dívidas ao exterior.
A Casa Gouveia, onde a CUF tinha uma participação, ia adquirindo uma posição cada vez mais dominante no comércio local, quase monopolizando a atividade exportadora e comercial da província. Desde a pacificação da ilha de Bissau com a campanha de Teixeira Pinto, em 1915, que a província vivera sem que operações militares de envergadura ocorressem, excetuando a campanha de Canhabaque de Vellez Caroço. Novas operações só vêm a ter lugar em 1933 na região dos Felupes, prolongando-se pelo ano seguinte; e, em 1935-l936 ocorre uma outra campanha nos Bijagós, também na ilha de Canhabaque. Era, porém, a última grande operação militar na Guiné. A partir desta, e terminada a Segunda Guerra Mundial, a Guiné viverá um período de paz que lhe vai possibilitar notável desenvolvimento, sobretudo sob o Governo de Sarmento Rodrigues.”


Armando Tavares da Silva
Bilhete-postal de 1900
Bilhete-postal de 1900
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Notas do editor:

Vd. post de 31 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26445: Notas de leitura (1768): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, continuação dos acontecimentos em 1917-1919 (12) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 3 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26455: Notas de leitura (1769): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (4) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Guiné 61/74 - P26445: Notas de leitura (1768): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, continuação dos acontecimentos em 1917-1919 (12) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Dezembro de 2024:

Queridos amigos,
Desde a governação interina de Manuel Maria Coelho, em 1917, até à chegada de Velez Caroço, em 1920, parece que a Guiné está a sofrer um enguiço, carências, desacatos, medidas de governação contraditórias, rebeliões, autos de vassalagem de curta duração, uma Carta Orgânica da Guiné, aprovada, depois revogada, depois reposta com emendas; de território Felupe aos Bijagós, não param as tensões. Parece que a Guiné é espelho do que se vive na metrópole, onde se sucedem os governos, há o golpe de Sidónio Pais, que acabará assassinado no final do ano de 1918. O pomo das grandes discórdias passa por Canhabaque, os Bijagós resistem, submetem-se e voltam a rebeliar-se; o major Ivo Ferreira, que sucedeu a Manuel Maria Coelho, não combate mas manda combater, mas chama a si o resultados, zanga-se com o encarregado do Governo, Josué d'Oliveira Duque volta à governação, sucede-lhe o capitão Sousa Guerra, os órgãos legislativos e administrativos estavam praticamente paralisados. Abdul Indjai é destituído de régulo do Oio, fez tantas e tão poucas que se tornou uma criatura insuportável. As coisas vão mudar de feição, chegou o tenente-coronel Velez Caroço, vai procurar pôr a casa em ordem, como vamos ver.

Um abraço do
Mário



O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, continuação dos acontecimentos em 1917-1919 (12)

Mário Beja Santos

Não é demais insistir que este poderoso acervo documental organizado por Armando Tavares da Silva nos ajuda a compreender este período histórico da I República e que serve de excelente contraponto ao Boletim Official da Província da Guiné Portuguesa, no que este é omisso no campo sociopolítico económico e cultural. Voltemos a 1917, Manuel Maria Coelho foi exonerado e na mesma data foi nomeado o tenente-coronel Carlos Ivo de Sá Ferreira, este pretendeu nomear para secretário-geral o tão problemático Graça Falcão, o ministro das Colónias Ernesto de Vilhena opôs-se, quem veio para ocupar o cargo foi Sebastião Barbosa, uma presença regular na administração. O novo governador desloca-se a Canhabaque, faz alterações nos dois postos militares existentes, envolve-se depois na constituição de um comando militar em S. Domingos, mas o governador, face ao agravamento da situação dos Bijagós aqui regressa, é recebido a tiro no posto de Bini, irá nomear o alferes Alberto Soares para comandante do posto militar de In-Orei, quando este ali chega foi confrontado com uma epidemia de beribéri e um inimigo fortemente hostil. Quem com ele colabora é Abdul Indjai, há perdas num violento combate, só em dezembro os rebeldes vão desistir dos seus atos de guerra. Armando Tavares da Silva dá minuciosamente conta das operações dos Bijagós que levaram ao ato de vassalagem do povo de Canhabaque.

É Ivo Ferreira que eleva Bolama à categoria de cidade, aprova os estatutos de uma nova associação do tipo recreativo, o Club Fraternidade de Farim, manifesta-se interessado no projeto de um caminho de ferro partindo de Bolama, ou pelo menos S. João, seguindo por Bafatá até à fronteira norte. É neste intervalo de tempo que ocorre a revolução de 5 de dezembro de 1917, um golpe chefiado por Sidónio Pais, forma-se uma junta revolucionária, a pasta das Colónias passa para Tamagnini Barbosa. Ivo Ferreira fará uma extensa visita a vários pontos do interior, fica como encarregado do Governo o coronel Guedes Quinhones, Ivo Ferreira demora-se na região do Geba pela necessidade de resolver várias questões da política indígena, caso do régulo Monjur, do Gabu, e Abdul Indjai, do Cuor. Entendeu-se dividir o território de Geba em pequenos regulados e destituir Abdul Indjai do Cuor. Regressado a Bolama, o governador envolve-se em atritos com Guedes Quinhones. Entretanto, o novo ministro das Colónias nomeou novo governador o coronel Josué d’Oliveira Duque. O autor observa a situação problemática vivida:
“Tinha sido atribulada e sinuosa a presença de Ivo Ferreira na Guiné. Sobrepusera-se e ultrapassara no tempo a governação interina de Manuel Maria Coelho, e correspondera a um período de quase dois anos em que o governador efetivo, Andrade Sequeira, se mantivera em Lisboa, sem ser demitido e sem mesmo pedir a demissão. Como resultado primeiro da sua governação, Ivo Ferreira, que não tomara parte em qualquer operação militar, ufanava-se, com a ocupação de Canhabaque, de ter conseguido a pacificação completa da Guiné. Mas teria esta, de facto, sido atingida?”

Oliveira Duque chega à província, um decreto revogou a Carta Orgânica da Guiné, são tomadas disposições legais para a vida administrativa e financeira da colónia. Em outubro de 1918 realiza-se uma operação contra os Felupes de Varela; são tempos de uma apreciável concessão de terrenos, assiste-se a um crescente aumento da população de Bissau, devido à afluência de numerosas companhias nacionais e estrangeiras, o que motiva o novo ciclo de urbanização de Bissau. A agitação continua em Portugal, culmina com o assassinato de Sidónio Pais em dezembro de 1918. Tamagnini Barbosa para a presidente do ministério, afasta da Guiné Oliveira Duque, virá a ser nomeado governador Sousa Guerra, capitão de Infantaria.

Um dos acontecimentos mais marcantes de 1919 é a campanha contra Abdul Indjai, sucediam-se as queixas pelas suas extorsões, raptos, pilhagens descaradas. Desde a chegada de Oliveira Duque que era reconhecida a inconveniência de Abdul Indjai continuar no regulado do Oio, segue-se um período de elevada tensão que o autor descreve ao pormenor, seguir-se-á a deportação de Abdul para Cabo Verde, daqui o antigo régulo do Oio fará exposições ao ministro das Colónias, irá morrer na cidade da Praia, em junho de 1921. Também em 1919 é declarada em vigor a Carta Orgânica da Guiné, mas com alterações, nomeadamente tendentes a restringir a possibilidade de os governadores alterarem as Cartas Orgânicas.

Não obstante a contínua sucessão de Governos na metrópole, Sousa Guerra mantém-se no Governo da Guiné e manifesta a sua preocupação com o desenvolvimento, escrevendo mesmo ao ministro que devia ser feito o aproveitamento das riquezas da Guiné, fez propostas de criação de colónias agrícolas com o fim de repovoar o Rio Grande através de concessões gratuitas a colonos europeus e cabo-verdianos, e a demarcação de reservas territoriais para os indígenas, em regime de culturas obrigatórias, com prémios pecuniários e aquisição de reprodutores para melhoria da pecuária. Sousa Guerra também fez alteração da divisão administrativa. Face à carestia de vida aumentou os vencimentos do funcionalismo, os critérios não terão sido os melhores, houve greve, aumentaram as taxas fiscais, houve que fazer alterações ao orçamento, pensou-se mesmo em revogar as portarias que tinham alterado os vencimentos, depois de muitas peripécias a situação ficou esclarecida com a aprovação dos vencimentos dos funcionários. Sucedem-se os Governos na metrópole, negociantes e proprietários de Bissau enviam telegrama pedindo ao ministro que mantivesse Sousa Guerra no Governo da província, mas ele foi exonerado em novembro de 1920, Sebastião Barbosa volta novamente a ser Encarregado do Governo. Entrara-se num período ziguezagueante, a situação só ficará esclarecida em junho de 1921 com a nomeação do tenente-coronel de Infantaria Jorge Frederico Velez Caroço.

Como se fará referência a propósito do Boletim Official da Província da Guiné, Velez Caroço tem estratégia militar e administrativa, procurou pôr em funcionamento os órgãos legislativos e executivos da colónia, anulou várias nomeações que Sebastião Barbosa tinha feito para os Conselhos Legislativo e Executivo; começa a visitar o território, para se inteirar da situação nas principais circunscrições. Observa a autora: “Devem ter sido inúmeros, importantes e desagradáveis os conflitos que Velez Caroço veio encontrar entre o funcionalismo nos diversos locais que já visitara, pelo que se vê na necessidade de mandar publicar uma portaria em que lembra as palavras que tinha proferido no ato de posse. Nela afirmava que, admitindo conflitos entre os funcionários por diferenças de critério ou erradas apreciações dos atos de serviço, não tolerava o uso de uma linguagem despejada ou o emprego de termos injuriosos". E acrescentava que a correção e porte exigia ao funcionalismo era extensivo às relações sociais e ao convívio com as outras classes. Ficando clara a maneira como o governador encarava este problema de ordem, reafirmava que não se afastaria uma linha do cumprimento dos seus deveres, aplicando sem tergiversar o rigor dos regulamentos.

Armando Tavares da Silva
Tenente-coronel Velez Caroço
Abdul Indjai
Selos da Guiné Portuguesa de diferentes períodos
Guiné Portuguesa, aldeia Mancanha, bilhete-postal de 1910
Bissau, um trecho da Avenida, bilhete-postal, 1920
Rua General Bastos, Bissau, 1920

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 24 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26421: Notas de leitura (1766): O Arquivo Histórico Ultramarino em contraponto ao Boletim Official, os acontecimentos posteriores à campanha de Teixeira Pinto, 1917-1919 (11) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 27 de janeiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26432: Notas de leitura (1767): A colonização portuguesa, um balanço de historiadores em livro editado em finais de 1975 (3) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25864: Historiografia da presença portuguesa em África (437): Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
É inegável que o texto elaborado pelo comerciante francês Georges Courrent visava dar um quadro atrativo a potenciais investidores que desconheciam as potencialidades e oportunidades que o autor relata com um certo entusiasmo: uma Guiné com a reforma administrativa, pacificada, baixas tarifas aduaneiras, uma agricultura atraente, etc; deu-se ao trabalho de ilustrar este rincão colonial, explica cuidadosamente como se fazem as ações comerciais na Guiné, disseca convenientemente o regulamento aduaneiro e termina aludindo a projetos de lei que estavam naquele momento a ser apreciados no Parlamento sobre o novo modelo de administração e de organização financeira; há sempre uma tecla em que insiste; a prosperidade da Guiné é incontestável. O artigo é publicado em abril, em agosto começa a Primeira Guerra Mundial, e lembrei-me de que valia a pena pôr em cima da mesa o contraditório. E deste contraditório fui buscar os relatos do chefe da delegação do BNU em Bolama a partir de 1917, a imagem que ele dá diverge completamente: os Bijagós estão sublevados; os governadores são ineptos, uns atrás dos outros; o comércio de Bolama começa a ter um forte e temível concorrente, Bissau; a inflação arrasou as economias locais; o BNU, também funcionava como casa de penhores, encheu-se de joalharia e ourivesaria. Enfim, as previsões do Sr. Courrent não bateram certo.

Um abraço do
Mário



Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (2)

Mário Beja Santos

Confesso que foi uma agradável surpresa conhecer este estudo do comerciante francês Georges Courrent publicado numa importante revista destinada a leitores com conhecimento do mundo colonial sobre o que ele entendia ser mais útil dar como síntese da Guiné Portuguesa. Vale a pena ter em conta a data da edição, 15 de abril de 1914. Considero significativo não só o que ele escreve como a qualidade das imagens que ilustram o seu trabalho, julgo que algumas delas são mesmo inéditas, e até mesmo de grande beleza, como é o caso do efeito do tornado no porto de Bissau, a vista de Bissau tomada numa embarcação no Geba, o interior da Fortaleza de S. José, o mapa que ele apresenta e que diz ser do serviço geográfico da revista, a deslocação de um efetivo militar dentro de Bissau, o que seria a vila indígena de Bambadinca e o aldeamento indígena de Geba.

Recapitulando, dá-nos a situação geográfica, expõe os serviços marítimos, as comunicações e transportes no interior (diz expressamente que o transporte de mercadorias terá de ser feito em pequenas embarcações e que a construção de vias-férreas é quase impossível e no arquipélago dos Bijagós seria totalmente inútil). Elenca os principais produtos exportados e dá um quadro aprofundado da natureza das operações comerciais e como elas podem ser efetuadas; lista as casas comerciais e companhias instaladas na Guiné Portuguesa, numa lista de oito a A.S.G., de Lisboa, aparece em penúltimo lugar. Revela-se seguro quanto à natureza do seu auditório, fala das operações bancárias, das tarifas aduaneiras, dá-nos o quadro dos produtos exportados e do movimento comercial entre 1903 a 1912; apresenta o novo regime aduaneiro e as respetivas taxas, tudo esmiuçado.

Faz um destaque à administração colonial portuguesa. Começa por dizer que o ministro das colónias acabara por enviar ao Parlamento português dois importantes projetos lei, um relativo à administração das possessões ultramarinas e o outro à sua organização financeira. Tais projetos baseiam-se no princípio de que as colónias são parcelas do território nacional, indissoluvelmente ligadas à metrópole, constituindo entidades administrativas autónomas. E faz menção de referir que o sistema ainda em vigor caracteriza-se por uma assimilação sem discussão e uma centralização excessiva. Se aprovados estes projetos de lei, haverá em cada uma das colónias um governador encarregado da administração geral, tudo na dependência do respetivo ministro; em cada uma das colónias haverá um conselho de governo que compreende os representantes dos interesses locais, tal conselho deliberará em sintonia com o governador; o conselho terá alguns membros eleitos mas haverá também na sua composição funcionários civis e judiciais; afigurar estes projetos lei, os antigos conselhos de província serão transformados em tribunais encarregados de conhecer os contenciosos administrativos e fiscais; as colónias são divididas em distritos tendo à frente os governadores distritais, haverá depois as circunscrições lideradas por administradores ou então por comandantes militares.

O regime financeiro está estabelecido nestas mesmas bases de descentralização, cada colónia estará investida de autonomia financeira, o mesmo é dizer que será dotada de personalidade jurídica, agirá sobre a sua própria responsabilidade; compete ao conselho de governo elaborar o orçamento. Para Georges Courrent era importante lembrar aos portugueses que as instituições valem sobretudo pelos homens que as dirigem. Quanto à reforma administrativa, não se pode eludir a questão que está estritamente ligada ao valor económico da região. Eis a síntese do que este negociante francês publicou antes da Primeira Guerra Mundial numa importante publicação francesa destinada a potenciais investidores, certamente também analistas da política colonial e funcionários. Meditando no quadro deixado por Georges Courrent, lembrei-me de um trabalho que publiquei há anos: Os Cronistas Desconhecidos do Canal de Geba: O BNU da Guiné, Edições Húmus, 2019. Desapareceu imensa documentação dos primeiros anos do BNU, em termos cronológicos, a primeira documentação interessante data de 2017, o chefe da delegação de Bolama estava certamente autorizado a dizer verdades com punhos, como deixou escrito e eu limitei-me a transcrever: a qualidade dos governadores era péssima, vinham impreparados e regressavam impreparados, mostrando-se incapazes de inverter a degradação dos serviços públicos, gente ronceira, pouco amiga do trabalho, praticamente inerte na época das chuvas; comerciantes estrangeiros astutos, nada interessados em projetos agrícolas ou industriais, simplesmente à procura de bons preços para os produtos da terra e para as mercadorias vindas do estrangeiro; o comerciante francês em nenhuma circunstância falava em tumultos e sublevações, elas aconteciam ainda nos Bijagós, a campanha do capitão Teixeira Pinto fora determinante para a pacificação dos regulados da ilha de Bissau.

Há que fazer justiça ao senhor Courrent, ele não podia prever que dentro de meses se iniciaria uma guerra mundial, era inevitável deixar marcas na Guiné, como deixou: os interesses alemães, altamente representativos, foram neutralizados; manteve-se um bom quadro de exportações, mas perdera-se o principal mercado das oleaginosas, que era o alemão; a inflação delapidou quem tinha dinheiro, o BNU, que na época funcionava também como uma casa de penhores, encheu-se de joias e ourivesaria, o sistema de funcionamento deste comércio baseava-se nas puras operações de intermediários, havia que pagar aos produtores, os comerciantes pagavam depois das operações de exportação. Vai-se viver um período calamitoso, aparecerá nos anos 1920 um governador de mão cheia, Vellez Caroço, tentará um saneamento financeiro, mas sempre com os comerciantes a queixarem-se para Lisboa. A época áurea que o senhor Courrent preconizava não aconteceu, e a falta de infraestruturas que ele observou ao longo do seu estudo também demorou a ser invertida, Lisboa exigia um controlo rigoroso das contas, o dinheiro vai aparecer com o Comandante Sarmento Rodrigues, será ele o Governador que lançará a Guiné num modelo de progresso, de desenvolvimento, de valores culturais e até da promoção dos direitos humanos.

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Nota do editor

Último post da série de 14 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25841: Historiografia da presença portuguesa em África (436): Um comerciante francês, Georges Courrent faz um estudo da Guiné em 1914 (1) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Guiné 61/74 - P25440: Historiografia da presença portuguesa em África (420): Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Desconhecia inteiramente a existência de Bissau como capital do distrito da Guiné em 1835. Rebusquei em autores da época, como Lopes de Lima, em historiadores como Veríssimo Serrão, nenhuma referência a Bissau capital, ainda por cima no ano seguinte ao fim da guerra civil. Mas os factos documentais comprovam a nomeação. Bastou-me ler a indispensável Memória de Honório Pereira Barreto que diz verdades com punhos, que fala de um governador que não governa, de uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de condições e a um quadro administrativo caótico, e tudo o mais que se recolhe neste artigo, acrescendo que Cacheu não se conformou com a criação da capital em Bissau e viveu-se no enigmático território guineense com dois distritos, o de Bissau e o de Cacheu durante cerca de 10 anos. Esta é a verdade dos factos, tenho que agradecer a Philip Havik a iluminação que trouxe para esta questão que era dada como inexistente.

Um abraço do
Mário



Sim, Bissau teve uma capital de ficção antes de 1941

Mário Beja Santos

Até recentemente, dava como certo e seguro de que a Guiné portuguesa jamais tivera capital até ser desafetada de Cabo Verde, o que ocorreu em 1879. Ao longo dessa década resolvera-se a questão de Bolama, houvera o dramático desastre de Bolor, Lisboa tomou a decisão de dar autonomia a um território que não possuía fronteiras precisas, a Carta Constitucional não referia a Guiné, mas mencionava Cacheu e Bissau, porque havia o sobe e desce de Praças, Presídios e Feitorias. Num livro respeitante aos cadernos de campo do professor Orlando Ribeiro, um dos coordenadores, um investigador com créditos firmados, Philip J. Havik, assumiu que Bissau obtivera o estatuto de capital em 1835. Escrevi para o blogue um artigo “Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941?”, vasculhei em obras da época qualquer referência à capital, nada encontrei até que se me deparou um despacho do Visconde Sá da Bandeira datado de 29 de abril de 1858 referindo Bissau como a capital da Guiné portuguesa e residência do respetivo governador, erguendo a povoação à categoria de vila com a denominação de vila de Bissau.

Estava armada a confusão, e na altura desafiei um conjunto de investigadores a pronunciarem-se sobre a questão. Philip Havik respondeu, e do modo seguinte:
“As reformas feitas na sequência da revolução liberal em Portugal foram decididas de aplicar a reorganização administrativa por decreto de 16 de maio de 1832 à Guiné em 1834, criando uma Prefeitura de Cabo Verde e a Guiné. Por conseguinte, o distrito da Guiné transformou-se numa comarca, ainda dependente de Cabo Verde, com a sua sede em Bissau, governado por um Subprefeito. Isto foi feito através do decreto de 30 de agosto de 1835. Bissau serviu como capital da Guiné até que se tornou uma província independente com um governo autónomo em 1879, com capital em Bolama através da lei de 18 de março de 1879.”

E o investigador recomendava referências na obra de João Barreto, A História da Guiné (1418-1918), Lisboa, 1938, e no artigo de Arnaldo Brasão, A Vida Administrativa da Colónia da Guiné, publicado no Boletim Cultural da Guiné portuguesa, volume II, n.º 7, 1947. Não posso esconder a minha surpresa, eu tinha lido a importante obra de Lopes de Lima, de 1844, e não se mencionava qualquer capital em Bissau. Um artigo publicado por Teixeira da Mota e Fausto Duarte sobre as efemérides da Guiné portuguesa referia a criação da comarca da Guiné, dirigida por um Subprefeito, mas nada se mencionava sobre a capital, uma comarca é só reorganização administrativa, vinha na sequência do ambicioso projeto de Mouzinho da Silveira de alterar em profundidade a administração do território, gerando municípios, comarcas e entidades apropriadas da administração, desde a justiça à atividade aduaneira. Lendo a História de Portugal de Veríssimo Serrão, encontrei a referência à criação do lugar do governador da Guiné, com residência em Bissau.

Impunha-se, pois, apurar a densidade e a operacionalidade desta capital de que desconhecia qualquer referência. Procurei um verdadeiro tira-teimas, Honório Pereira Barreto e a sua Memória sobre o estado atual da Senegâmbia portuguesa, causas da sua decadência e meios de a fazer prosperar, Lisboa, 1843. Lendo este importantíssimo texto, constata-se que o território desta Senegâmbia tinha uma dimensão fluida, a presença portuguesa era submetida a uma permanente hostilidade e os recursos escassíssimos, como Barreto logo abre a sua introdução: “Se nesta província houvesse um Boletim de Governo aonde se estampasse os ofícios e relatórios das diversas autoridades, não me veria obrigado a escrever esta Memória, cuja matéria é tão superior a minhas forças; porque então apareceria em público o verdadeiro estado destas Possessões.” É um discurso sempre franco, duro e doloroso: “Vive-se em Senegâmbia portuguesa sem segurança alguma; a todos os momentos seus habitantes são vexados pelo gentio, fere-se e assassina-se impunemente, e em Lisboa lê-se no Diário do Governo que as Possessões Portuguesa, nesta parte, estão em ordem, e vão florescendo.”

E a sua narrativa não esconde a inexistência de poder político, da vida das instituições, enfim, o caos reina por toda a parte: “Desgraçadamente se pode dizer que nestas Possessões há um governador e comandante; mas que não há governo. O país está inteiramente desorganizado. Todos os empregados, desde o primeiro até ao último, ignoram quais são as suas atribuições, e, por consequência, quais são os seus deveres: só tratam de seus negócios, pois são negociantes. Não há lei administrativa (nem outra) que vigore, e por isso é suprida pela vontade dos governadores. A vontade deles faz a lei; o capricho executa; as paixões julgam; os rogos dos Gentios, dos amigos fazem minorar, e perdoar as penas.”

É facto que falando do concelho de Bissau, Barreto dirá que é composto da Praça de Bissau, capital do governo, do presídio de Geba, do ponto de Fá, da ilha de Bolama e do Ilhéu do Rei. E apresenta Bissau deste modo: “É uma Praça situada na ilha deste nome, e construída segundo o sistema de Vauban; mas não foi acabada. Não tem obras algumas exteriores, à exceção dos fossos já quase entulhados, e aonde se planta algodão, milho e índigo. O quarto da tropa está quase a cair, e por isso a maior parte dos soldados moram em palhosas; o indecente quartel dos oficiais aonde chove como na rua; o arruinado armazém do governo; e a pequena e destelhada capela com invocação de S. José, que é o orago da praça. O governador mora no quartel dos oficiais em uns quartos pequenos e ridículos.” Há, pois, uma capital do distrito da Guiné portuguesa, da Guiné não se conhece bem a configuração e a importância da capital é dada pelo governador que anda a comprar parcelas do território de diferentes régulos, e em todas as direções. É vila, por despacho do Visconde Sá da Bandeira, será cidade em 1914 e terá mesmo o seu primeiro plano de urbanização concebido pelo engenheiro Guedes Quinhones; o governador Vellez Caroço dar-lhe-á em 1923 o seu primeiro foral.

Philip Havik refere João Barreto e Arnaldo Brasão. Para mim, continua a ser um mistério a data de 1835. João Barreto refere que em 1851 o Governador-geral de Cabo Verde, Fortunato José Barreiros, tomara a iniciativa de unificar o governo da Guiné fixando a sua sede na vila de Bissau e escreve que a partir de 1852 deixou de existir o governo autónomo de Cacheu, passando a existir um distrito único com sede em Bissau. Alegou o governador ter tomado esta resolução para dar unidade à ação governativa. Era nomeado interinamente governador da costa da Guiné (já ouvimos falar de Possessões, de Senegâmbia e de Guiné portuguesa…) o Tenente-Coronel Alois Dziezaski com algumas competências do governador-geral. Bissau é capital do Distrito da Guiné portuguesa.

Arnaldo Brasão, no seu artigo, chama a atenção para a Guiné constituída como uma unidade administrativa, em 1834, com atribuições conferidas por legislação de 1835, referindo igualmente o papel do governador, a quem ficavam sujeitos todos os serviços públicos. “Os governos inferiores, presídios, estabelecimentos marítimos ou do interior, formavam governos subalternos que se regulavam pelo que estava determinado para o governo das praças do reino.”

As lutas entre absolutistas e liberais refletiram-se nas colónias, e adianta Arnaldo Brasão: “Cacheu, que fora o primeiro núcleo de colonização e de povoamento não poderia conformar-se com uma situação de subalternidade em relação a Bissau, que passar a ser a capital desde 1835, e por isso solicitou a sua separação que o governo cartista se apressou a satisfazer em março de 1842, passando desde então o território guineense a ser constituído por dois distritos, mas subordinados ainda ao governo de Cabo-Verde. Esta situação durou perto de 10 anos, porque em setembro de 1851 procede-se à unificação administrativa, sendo escolhido novamente Bissau para sede do governo.”

Considero totalmente corretas as observações expendidas pelo investigador Philip J. Havik, em 1835 Bissau tornou-se a capital de distrito de um território com dimensões indefinidas e dentro de um quadro que um lídimo protagonista da época, Honório Pereira Barreto, mostrou que se tratava de uma capital de ficção. Um governador sem governo, uma capital reduzida a uma fortaleza sem o mínimo de comodidades e cercada por populações hostis.

Dou como esclarecida a existência de uma capital de ficção, numa província de ficção, que passou a uma realidade depois do sobressalto de Bolama e com contornes definidos depois de a França nos ter subtraído o Casamansa, as fronteiras ficaram parcialmente definidas em 12 de maio de 1886, o governador da Guiné terá a sua capital em Bolama.


Monumento a Honório Pereira Barreto, em Bissau, em tempos coloniais
O que resta da Bolama dos tempos áureos
Um pormenor da fortaleza de S. José da Amura na atualidade
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Nota do editor

Último poste da série de 17 DE ABRIL DE 2024 > Guiné 61/74 - P25401: Historiografia da presença portuguesa em África (419): Será que Bissau foi capital da Guiné antes de 1941? O estado da questão (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25138: Notas de leitura (1664): "Dicionário de História da I República e do Republicanismo", coordenação geral de Maria Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, edição do Centenário da República, Assembleia da República, 2014 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Agosto de 2022:

Queridos amigos,
No âmbito das comemorações do Centenário da República, a Assembleia da República editou um dicionário de história da I República onde se inclui um artigo sobre a vida da Guiné em tal período, assinado por Célia Reis. A investigadora recorda a alvorada tumultuosa do republicanismo na colónia, os conflitos em que se envolveu o primeiro governador republicano, Carlos Pereira, os conflitos entre Teixeira Pinto e a Liga Guineense, a nova organização administrativa, a importância do comércio alemão até à Primeira Guerra Mundial, a que se seguiu a crescente influência portuguesa, logo dada por António da Silva Gouveia, que terá funções políticas nos órgãos de soberania em Lisboa; mais refere a autora que os sucessivos insucessos das sociedades agrícolas, vinham com muitos sonhos e com pouco sentido das realidades; a colónia intensifica a exportação do amendoim e das oleaginosas e destaca-se uma figura de governação durante este período, Vellez Caroço, queria fazer da Guiné o que Norton de Matos lançara bases em Angola. Dir-se-á que não há nada de inovador no texto, certo é que está muitíssimo bem arrumado e não esconde que a Guiné marcava passo, não havia meios financeiros e o pessoal político vinha para se amanhar.

Um abraço do
Mário



A Guiné e a I República

Mário Beja Santos

O "Dicionário de História da I República e do Republicanismo", com coordenação geral de Maria Fernanda Rollo, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, edição do Centenário da República, Assembleia da República, 2014, acolhe no seu II volume um artigo de Célia Reis sobre a Guiné republicana. Abre o trabalho com a evolução política da colónia designadamente a partir da definição das fronteiras em 1886, refere as ininterruptas rebeliões das diferentes etnias, em particular as do litoral, contestando o imposto palhota que era encarado como o principal fator do reconhecimento da soberania portuguesa. É um período de campanhas que levou a que a administração guineense se mantivesse essencialmente militarizada.

O ideal republicano era difuso, com a chegada do 5 de Outubro de 1910, houve mudanças de posições mas também recalcitrantes, a proclamação do novo regime teve lugar no dia 10, quando se arvorou o novo estandarte. A 23 de outubro chega o primeiro governador republicano, Carlos de Almeida Pereira, Tenente da Armada, viu-se envolvido em múltiplas contendas, deixa o seu nome ligado ao derrubo das muralhas que cercavam Bissau. O Partido Republicano começou a sua organização local, surgiu a Liga Guineense, cedo começou a divisão política, logo patente na eleição de deputados de 1911, através de processos habituais de corrupção e de compra de votos. 

Em 1916, Bolama e Bissau voltaram a ser concelhos. Antes, porém, iniciou-se uma fase de conflitos e sublevações que levaram à intervenção do Chefe de Estado-Maior Teixeira Pinto, entre 1913 e 1915, deixou a classe política dilacerada, a Liga Guineense opunha-se aos métodos usados por Teixeira Pinto e aos castigos impostos aos Grumetes de Bissau e aos seus parentes Papéis. A Liga acabou dissolvida, continuou a contestação de Cabo-Verdianos e Grumetes a Teixeira Pinto e a Abdul Indjai. Ainda hoje permanece na penumbra as razões principais sobre tal confronto, mais recentemente René Pélissier admitia a hipótese, até então não explorada pela historiografia, de uma movimentação dos alemães em conjunto com os Grumetes e os Papéis ou mesmo na influência dos franceses, mas documentação comprovativa não há.

A Primeira Guerra Mundial teve reflexos indiretos na Guiné, a opinião pública em Bissau e Bolama manifestava-se pró-alemã, enquanto o novo governador, Manuel Maria Coelho, pareceu estreitar relações com os franceses. Seja como for, foi proibida às casas alemãs a venda de armas e mobilizaram-se as embarcações de captagem que lhes pertenciam. Alemães e sírio-libaneses foram detidos, sendo parte dos primeiros enviados para os Açores. A partir de 1917, voltaram a fazer-se campanhas militares, primeiro nas ilhas Bijagós, depois contra os Baiotes. 

Em 1919, deu-se a queda de Abdul Indjai, levado para Cabo Verde. Em 1917, publicou-se a Carta Orgânica da Guiné, onde se manteve a importância da autoridade dos régulos. Criou-se a Secretaria dos Negócios Indígenas, para resolução das questões da maioria da população e alteraram-se as circunscrições. 

Em 1922, foi aprovado o Código Administrativo da Guiné, pelo qual Bolama e Bissau passaram a ter câmaras municipais, enquanto Cacheu, Farim, Canchungo e Bafatá contavam com comissões municipais. É governador Jorge Vellez Caroço, vem inspirado para mudar a colónia, tomado pelo exemplo de Norton de Matos em Angola. Não faltarão intrigas durante o seu mandato, nem conspirações, lança-se num processo de desenvolvimento, privilegiando a instrução e a construção de infraestruturas de comunicação. Suceder-lhe-á Leite de Magalhães. Finda a I República, a Guiné continuou a ser uma colónia para onde se deslocavam como deportados muitos republicanos, alguns deles, em ligação com a insatisfação de comerciantes locais, farão eclodir a revolta de 17 de abril de 1931, chefiados pelo médico Gonçalo Monteiro Filipe.

Célia Reis dá-nos o quadro étnico, referencia o número diminuto de europeus e a carência brutal de estruturas básicas: ao tempo de Vellez Caroço havia apenas 3 médicos. Predominavam ao tempo as religiões fetichistas, seguia-se o islamismo, a doutrina católica era mínima, não havia ordens religiosas, as Franciscanas só regressariam em 1932. As publicações durante este período espelharam a fraca presença europeia. O Boletim Oficial da Guiné manteve-se como o único órgão informativo da colónia até 1920, quando apareceu o jornal Ecos da Guiné, foi seguido por A Voz da Guiné e depois pelo Pró-Guiné, todos de vida curta e dedicados aos portugueses. O novo órgão de informação só surgiu depois de 1931, O Comércio da Guiné. Não havia ensino secundário e em 1916 as escolas de ensino profissional reduziam-se ao ensino de tipógrafos e radiotelegrafistas. Vellez Caroço preocupou-se com o desenvolvimento da instrução dos guineenses, criando escolas: em 1925, contavam-se 10 estabelecimentos para o sexo masculino, 6 para o feminino e 5 mistas.

Finda a escravatura, a Guiné tornou-se uma colónia de exploração dos seus recursos, com vista à exportação. Apareceram várias companhias concessionárias, que não tiveram sucesso, caso da Agrifa, Companhia Agrícola e Fabril da Guiné e a Sociedade Agrícola do Gambiel. O problema das taxas foi uma permanente dor de cabeça, sempre a questão da proteção pautal e Célia Reis dá-nos conta da vida económica e financeira da colónia no período. A Alemanha era o principal parceiro comercial até à Primeira Guerra, esta alterou a situação, dando primazia a Portugal. É um período que leva a melhoria de comunicações, o telégrafo estabeleceu-se no interior, no final da Monarquia.

Como observa a autora, “Entre os rendimentos na Guiné encontrava-se o imposto de palhota, que substituíra o de capitação, em 1903. Nem todas as despesas previstas eram realizadas, mas as sucessivas campanhas militares contribuíram, naturalmente, para o seu acréscimo, não obstante a compensação de vida ao alargamento do imposto palhota a mais subjugados. Entre as despesas, a maior parte pertencia ao funcionalismo militar, a que se somavam os gastos com os restantes funcionários. Os projetos de Vellez Caroço, na década de 1920, provocaram o endividamento da Guiné, tornando necessário que o ministro João Belo (já na Ditadura Militar) abrisse um crédito para o compensar. O aumento de imposto, então, usado para ultrapassar aquela situação deficitária.”

Lembro ao leitor que Célia Reis é autora do artigo Guiné na obra O Império Africano, coordenado por A. H. de Oliveira Marques, Vol. XI da Nova História da Expansão Portuguesa, direção de Joel Serrão e Oliveira Marques, edições Estampa, 2001, de que aqui já se fez recensão.

Cacheu e a sua fortaleza
Monumento aos aviadores italianos falecidos num desastre aéreo em Bolama
Tropas portuguesas perfiladas na inauguração ao monumento dos aviadores italianos
Estátua do presidente americano Ulysses S. Grant, em Bolama
Bolama, capital da Guiné
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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25129: Notas de leitura (1663): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (10) (Mário Beja Santos)

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Guiné 61/74 - P24375: Historiografia da presença portuguesa em África (371): As campanhas de pacificação na Guiné no livro "História do Exército Português", pelo General Ferreira Martins; Editorial Inquérito, 1945 (Mário Beja Santos)

Com a devida vénia a Cabral Moncada Leilões. Foto editada


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Setembro de 2022:

Queridos amigos,
Não se pode dizer que a narrativa do general Ferreira Martins traga algo de novo àquilo que se tem vindo aqui ilustrar sobre as campanhas de pacificação, chamemos a este texto um exercício de divulgação. Há aqui algumas falhas de peso, não se fala na bravura de Graça Falcão no Oio, pelo que de novo se recomenda a quem queira estudar este período o importante levantamento documental efetuado por Armando Tavares da Silva que tem o título "A presença portuguesa na Guiné: história política e militar, 1878-1926", Caminhos Romanos, 2016.

Um abraço do
Mário



As campanhas de pacificação na Guiné no livro História do Exército Português, pelo General Ferreira Martins

Mário Beja Santos

Trata-se de uma obra de divulgação que fez a sua época, publicada em 1945 pela Editorial Inquérito. Veremos adiante que há de facto uma poderosa intervenção do Exército no caso vertente da Guiné, mas antes do Capitão Teixeira Pinto destacaram-se briosos oficiais da Marinha. Para quem se interessa pela matéria, a partir da página 470 deste tomo ir-se-á falar da pacificação da colónia da Guiné. Vamos ao que escreve o general Ferreira Martins.

Logo no começo do século XX, sendo governador o Primeiro-Tenente da Marinha Júdice Biker, houve que reprimir revoltas em Jafunco (1901) e no Oio (1902) utilizando as poucas tropas disponíveis, mas contando com a cooperação de canhoneiras e a intervenção de auxiliares indígenas. Houve sublevação do gentio do Churo (Cacheu), reprimida pelo novo governador, Soveral Martins, também oficial da Marinha, em 1904. O autor enfatiza que estas operações não foram completadas por uma ocupação efetiva e cita o marechal Bugeaud: “Em África uma expedição não seguida de ocupação não deixa mais vestígios do que o sulco de um navio no oceano”. Governava a Guiné em 1907 o Primeiro-Tenente Oliveira Muzanty, outro oficial da Marinha, a quem se deve a ocupação da ilha Formosa (Bijagós), quando se deu a sublevação de régulo do Cuor, Infali Soncó. Embora à espera de uma expedição metropolitana, Muzanty lançou-se numa coluna de operações sobre a região revoltada do Cuor. Infali aliciara os régulos de Badora e do Xime. Muzanty foi temporariamente bem-sucedido, assaltou com sucesso a tabanca de Campampe, que estava solidamente fortificada. Por curto tempo, a margem esquerda do Geba, entre Xime e Bafatá, ficou pacificada.

No princípio de 1908, um outro destacamento constituído por praças da Marinha e outros militares europeus foi encarregado de, sob o comando do Capitão Ilídio Nazaré, efetuar a reparação das linhas telegráficas danificadas por rebeldes no Quinara, efetuou-se a reparação e castigaram-se os rebeldes. Em março, o Capitão Botelho Moniz bateu os Felupes de Varela, que se negavam ao pagamento do imposto. E a 19 desse mesmo mês chegou a tão desejada expedição metropolitana que trazia uma companhia de Infantaria 13, alguma artilharia deficiente e uma força de engenharia. Muzanty viu-se obrigado a reforçar o grupo expedicionário com uma companhia da Marinha e uma companhia mista de Infantaria (deportados europeus e atiradores indígenas). Irão bater a margem direita do Geba. O primeiro combate deu-se em Canturé, em 6 de abril, os Biafadas bateram-se bravamente, a povoação foi incendiada, a expedição seguiu para Sambel Nhantá, esta era a sede do regulado, régulo e sua comitiva fugiram, a coluna avançou para Madina que após hora e meia de combate foi tomada incendiada. Em 1 de abril, hasteava-se a bandeira portuguesa no Cuor, neste regulado, em Caranquecunda ficou uma companhia de Infantaria macua, dispondo de armamento velho.

Muzanty foi depois defrontar-se com os papéis que em 1894 o Governador Vasconcelos e Sá não conseguiu dominar. Depois de bombardeadas pela artilharia da fortaleza de Bissau, as povoações de Intim, Bandim e Antula, marchou uma desfalcada coluna sobre Intim, onde foi violentamente atacada mas a povoação foi ocupada e destruída. Prosseguiu a operação para Contume, celeiro natural da ilha, deu-se aqui um violento combate que custou a vida ao alferes Jaime Duque. Os Papéis não desarmaram e atacaram a coluna, a resposta foi enérgica, dentro de um quadrado que Papéis e Balantas não conseguiam desarticular, e os rebeldes acabaram por fugir. Com este violente combate de Intim terminou na Guiné a campanha de 1908.

O autor fala agora das operações de 1909, cita um livro do antigo governador Carvalho Viegas, donde extrai a seguinte observação: “Foi o Balanta, talvez o indígena que maior resistência opôs à expansão do propósito colonizador, enfrentado com decisão e valentia as colunas enviadas a recontros em que as armas de fogo não puderam contê-lo à distância.”

Foi este o inimigo com que se defrontaram os portugueses em 1909 quando na região de Gole (Porto Gole) gente sublevada atacou na manhã de 21 de fevereiro o posto militar, a guarnição conseguiu repelir o atacante. Havendo indícios de que em breve voltariam os Balantas a atacar o fortim com mais numerosos elementos, mandou o governador Muzanty reforçar a guarnição com tropas de infantaria e artilharia. E pela primeira vez é referida a presença de Abdul Indjai, ele é o régulo do Cuor. Sucediam-se os ataques dos sublevados, sem êxitos.

Estamos agora em 1912, não se pode ainda falar na ocupação definitiva da Guiné, as rebeliões sucedem-se. Em 1912, o Governador Carlos Pereira, também ele oficial de Marinha, organizou uma coluna de operações para castigar revoltosos, dirigiram-se primeiramente a Binar, foram depois a Cacheu, foram sucessivamente punindo rebeldes. É neste contexto que aparece na Guiné o Capitão João Teixeira Pinto. Começa por castigar rebeldes do Oio, leva consigo Abdul Indjai, conta com a colaboração de duas lanchas e de um grupo armado pela administração de Geba. Em 1913, Teixeira Pinto, quase só com irregulares de Abdul Indjai e de outro oficial de segunda linha, Mamadu Sissé, foi a Cacheu e bateu o gentio de Churo. As sublevações acalmaram mas não desapareceram. Em fevereiro de 1914, os balantas de Braia trucidaram o Alferes Manuel Pedro e o seu pelotão de cavalaria, houve chacina, coube ao Capitão Teixeira Pinto vingar os desditosos camaradas trucidados. Coube a Teixeira Pinto responder, obteve a pacificação de toda a região Balanta entre Mansoa e Geba.

Graças ao seu crescente prestígio, o governo aproveitou para em 1915 submeter definitivamente os Papéis e Grumetes de Bissau, a sua rebeldia era permanente. Teixeira Pinto pôs-se à frente de uma numerosa coluna, contava com os irregulares de Abdul Indjai, travou com os rebeldes renhidos combates de Intim e Bandim, cujas posições foram tomadas depois de um bombardeamento. Teixeira Pinto atacou ainda outras povoações, lutando sempre com a inaudita resistência dos rebeldes. Teixeira Pinto é preferido em Safim, recolhe-se a Bissau, mas a coluna, sob o comando do Tenente Sousa Guerra, continua o avanço e tomou de assalto outras posições. Depois de dois meses de operações em que as forças de Teixeira Pinto tinham sofrido 47 mortos e 202 feridos, tomaram-se de assalto outras posições rebeldes e a ilha de Bissau foi considerada como submetida. O autor fala da ilha de Canhabaque, houve operações em 1917, comandadas pelo Major Ivo Ferreira (Governador da Guiné entre 1917 e 1919), tais operações demoraram oito meses, mas os atos de rebeldia continuaram. Em 1925, o novo Governador, Vellez Caroço, viu-se forçado a realizar novas operações na ilha, apreendeu armas e munições, parecia que o castigo tinha sido duro, pura ilusão, as operações foram retomadas em 1935-1936, são consideradas como o termo das operações de pacificação, daí o monumento em Canhabaque, evocativo que era tido como o fim das rebeliões. O General Ferreira Martins concluiu assim as suas referências às campanhas de pacificação.


General Luís Augusto Ferreira Martins (1875-1967)
Joaquim Pedro Vieira Júdice Biker (1867-1926)
Alfredo Cardoso de Soveral Martins (1869-1938)
Imagem da guerra do Cuor, fotografia de José Henriques de Mello, 1908
No Xime, no decurso da guerra do Cuor, fotografia de José Henriques de Mello, 1908
Estátua do Capitão João de Teixeira Pinto
Monumento aos heróis da pacificação de Canhabaque, imagem retirada do livro “Bijagós Património Arquitetónico”, fotografia de Francisco Nogueira, Edições Tinta-de-China, 2016, com a devida vénia
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Nota do editor

Último poste da série de 31 DE MAIO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24357: Historiografia da presença portuguesa em África (370): Da CUF à Casa Gouveia, da Casa Gouveia à CUF: Uma viagem interminável (3) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Guiné 61/74 - P24215: Notas de leitura (1571): "A Revolta!", por Fausto Duarte; Porto, 1945; O drama do régulo Monjur num belo romance (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Setembro de 2020:

Queridos amigos,
"Revolta!" não é uma obra-prima, é um romance bem urdido, possui os ingredientes adequados daquele formato da literatura colonial que fazia o mister da observação, o mostrar da vida de mato, o deslumbramento das belezas naturais, incluindo na urdidura a presença das autoridades, e Fausto Duarte esteve sempre disponível para nos seus romances de teor guineense pôr paixões de autóctones, carregadas de drama. O que nos diz do régulo Monjur Jorge Vellez Caroço, bem como o trabalho de investigação de Eduardo Costa Dias, ambos aqui já tratados, acompanha de certo modo o que era a nova lógica da administração colonial, o Gabú tinha enorme peso, os Fulas, após os acontecimentos do Forreá, a submissão dos Mandingas, aceitaram na plenitude o poder da administração colonial, esta apercebeu-se rapidamente que o território do Gabú era estratégico, Monjur foi um aliado que acabou secundarizado e esquecido. Esquecido não, a descrição do seu funeral, o valor da sua bravura, jamais foi esquecido por todos aqueles que acompanharam o féretro ao longo dos quilómetros, era a despedida do herói deitado no caixote do lixo da nova filosofia colonial.

Um abraço do
Mário



O drama do régulo Monjur num belo romance de Fausto Duarte (2)

Mário Beja Santos

Fausto Duarte é um nome incontornável na cultura guineense. Cabo-verdiano por nascimento, ganhou as suas habilitações em topografia no Instituto Superior de Agronomia em Lisboa, aparece na Guiné associado à demarcação de fronteiras e mais tarde entra na administração local, revelou-se um divulgador de méritos excecionais, um colaborador profícuo do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, colaborador regular do Boletim Cultural, autor de dois anuários (1946-1948) de irrecusável importância e autor de três romances passados na Guiné, dois deles já aqui alvo de recensão, caso de "Auá" e de "O Negro sem Alma".

"A Revolta!" foi galardoada com o 2.º prémio do Concurso de Literatura Colonial (1942), Fausto Duarte deu o romance por concluído em maio de 1942, foi publicado no Porto em 1945. A trama anda à volta do prestigioso régulo Monjur, um régulo Fula que prestou relevantes serviços à Administração Colonial Portuguesa em termos de campanhas de ocupação, era a figura mais respeitada do Gabú, será enredado numa teia de invejas por régulos menores que ansiavam ver o seu poder diminuído e encontrou pela frente um administrador de Bafatá que lhe retirou o poder. O seu funeral terá sido um acontecimento ímpar em todo o Gabú, morrera o homem, ficara o mito. Recapitulando, um agente leal ao régulo Monjur, disfarçado de viajante, entra em Sare Bane e facilmente deteta que se prepara uma rebelião contra o bravo régulo do Gabú, foge e dirige-se ao posto militar de Geba, conversa com o comandante, tenente Amílcar Teles, e foge de novo, pela calada da noite, para ir a Coiada, onde vive o régulo Monjur.

Fausto Duarte dá-nos uma impressiva nota do que era um presídio militar, descreve o posto de Geba, e aproveita esta autêntica de Suleimane Gadiri para descrever o feitiço florestal guineense. A selva é igualmente brutal, há crocodilos que comem gente, mesmo quando toda a Natureza parece repousar e até um flamingo permanece imóvel enquanto o crocodilo vai desfazendo com as suas fauces uma mulher, é como se estivesse a registar a lei suprema do mato, que ele assim define: “Quando a cobra contrafazendo o cacarejar da galinha consegue iludir a ave e trazê-la ao alcance das suas mandíbulas; quando o caçador imitando o grunhido da fêmea de certos bichos atrai o macho, confiante e talvez orgulhoso da preferência, até que ele sirva de alvo e mostre o ponto mais vulnerável do corpo à arma em espreita, é a lei do mato, a lei da astúcia e do mais forte”.

E assim chega ao seu destino este mensageiro, um habilidoso contador de histórias que deixa as crianças fascinadas, o autor dá-nos aqui páginas de encanto que bem mereciam ser conhecidas por portugueses, tal o poder de riqueza desta literatura luso-guineense. E aqui começa uma história de amor com Iobá, filha de Monjur, o destino de ambos ficará selado por uma tragédia, no final da obra o responsável por esta será severamente punido. Fausto Duarte discreteia sobre os usos e costumes de Fulas, a estranheza que esta etnia sente face às ambições dos brancos, mas percebendo que a administração colonial era de facto a nova lei, não só no Gabú mas como em todo aquele espaço territorial a que chamavam Guiné Portuguesa.

Monjur prepara a defesa e no aceso dos combates surge a coluna de Geba, irá ter lugar a indispensável reunião, uma tentativa de apaziguamento, mas o tenente Amílcar Teles, após ouvir a argumentação dos dois lados confere direitos ao régulo Monjur, assim fica abortada a rebelião. Romance sem tragédia é pão sem sal, há um sargento que sucumbe, impunha-se um parágrafo altamente emotivo:
“ - Dá-me licença, meu tenente? - rogou ele, unindo os calcanhares.
- Dize.
- É que há ali um papel para si, uma carta e uma bolsa que têm destino. - informou Raul. O oficial consentiu com um movimento quase impercetível da cabeça.
Ajoelhou-se o cabo. Tremiam-lhe as mãos. Os soldados mais afastados procuravam compreender a cena. Raul retirou do dólmen dois envelopes dobrados e uma bolsa de coiro. Guardou um dos envelopes depois de ler o endereço, entregou o outro ao oficial e abriu a bolsa para lhe ver o conteúdo. Tinha dentro uma madeixa de cabelos loiros, duas moedas de prata com a efígie dos reis, um recorte de jornal gasto nos vincos e uma pulseira, obra de ourivesaria indígena. Era essa toda a sua fortuna”.


E a coluna regressa com o corpo do sargento Domingues Alves, morte que a todos chocou. Fausto Duarte aproveita a oportunidade para desferir uma dura crítica à sociedade colonial, transpõe-se na pessoa do tenente Amílcar Teles: “Sempre que era obrigado por razões de serviço, inadiáveis, a ir à capital, fazia-o com profundo desgosto. Nas receções oficiais a que casualmente assistia, funcionários untuosos e mesureiros atropelavam-se, procurando chamar sobre si a atenção do governador, e suas mulheres, criaturas banais, muito arrebicadas, ciosas das precedências e da hierarquia dos maridos, temendo o contágio das inferioridades do mundo, faziam-no suspirar pelo mato. Tal como elas, aquela sociedade que se pretendia transplantar para ali com os mesmos ridículos da Europa estava deslocada”. Na recensão, permito-me pequenas alterações, estes apartes vêm antes da conversa conciliatória que só não falha porque o tenente Amílcar Teles profere sentença justa.

Temos de novo drama à vista, Suleimane Gadiri desapareceu, bem como Iobá, o régulo Monjur sente-se desconsiderado, no entanto ele recebera com júbilo a decisão do oficial português, que era verdadeiramente conhecedor das sociedades Fulas, escolhera com equidade entre Alarba Seilu e Monjur Embaló, mas a dor iria persistir durante muitos anos. Entretanto chegou a nova lógica de poder à colónia, Monjur percebia perfeitamente que as autoridades pretendiam retalhar todo o vasto Gabú, esquartejar o território para fazer perder a influência, obrigando os pequenos régulos a sentirem-se altamente dependentes de Bafatá, ou de Bissau. Mas não fora assim, como o autor descreve: “Doze anos dobados, depois que Iobá desaparecera e Alarba Seilu, o seu rival, morrera prematuramente, Monjur sentira crescer com o prestígio do seu nome uma indiscutível autoridade sobre o regulado compreendido por sete territórios. O governador entregara-lhe o de Boé como recompensa dos serviços por ele prestados nas guerras de Xime, de Cuor e de Badora. Alguns tinham sido valiosos. Auxiliara os portugueses com o apoio de Cherno Cali a bater os rebeldes Boncó e Infali Soncó que haviam tido a audácia de obstruir o rio impedindo a passagem das canhoneiras e de prender em uma palhota o comandante militar que substituíra o comandante Amílcar Teles. Fora então promovido a alferes de 2.ª linha. Da sua cabaia, o galão dourado dava-lhe um aspeto mais majestoso”.

Chamado a Bafatá, temendo a fatalidade de ir ser posto em prática a repartição de regulados, Monjur desloca-se com a sua cavalaria. Não ia a Bafatá desde a derrota dos régulos do Cuor e Badora, fora nesta vila que apertara com orgulho a mão do governador Oliveira Muzanty, era o grande momento do seu prestígio. É recebido no gabinete do administrador de Bafatá com visível indiferença e informado que de futuro não deverá deixar a povoação sem o seu prévio consentimento, caberia sempre ao administrador doravante a nomeação de chefes de territórios.

O poder de Monjur definha, e um dia Suleimane regressa e explica ao régulo e à assembleia que começa por receber com duas pedras na mão e que no fim o acolhe com triunfo, toda a verdade do que acontecera naqueles anos. A amizade foi retomada, Suleimane Gadiri assistirá aos últimos momentos de Monjur. E assim termina o romance: “Ficou na memória de todos a cena inolvidável do seu funeral. Ao longo dos três quilómetros que separam Gabú Sara de Oco, colocaram-se milhares de antigos vassalos aguardando a passagem do corpo que foi transportado de mão em mão até à aldeia onde tinham residido os grandes régulos oriundos da família Embaló Cunda. Quanto a Suleimane Gadiri o destino marcou-lhe outro caminho. Enrolou a sua esteira, tomou a chaleira de esmalte que continha água para as abluções e abalou novamente decidido a correr mundo”.

Dir-me-ão que este livro de Fausto Duarte não é literariamente famoso, ao que responderei que é um documento que em caso algum pode ficar no esquecimento, como se procurou destacar.

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Nota do editor

Último poste da série de 7 DE ABRIL DE 2023 > Guiné 61/74 - P24205: Notas de leitura (1570): "A Revolta!", por Fausto Duarte; Porto, 1945; O drama do régulo Monjur num belo romance (1) (Mário Beja Santos)