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segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24826: Notas de leitura (1631): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Abril de 2022:

Queridos amigos,
Insiste-se que a entrevista concedida por Carlos de Matos Gomes se mantém como peça modelar para analisar o processo de descolonização da Guiné a partir da formação do Movimento dos Capitães e depois do MFA na região, o entrevistado explica as razões por que se ofereceu para ir para o Batalhão dos Comandos africanos, pretendia conhecer a estratégia spinolista que lhe estava subjacente no contexto da africanização da guerra e numa lógica conducente à possibilidade de algo com o PAIGC. 

Fala-se da rotina das operações, da complexidade dos problemas pluriétnicos dentro desta tropa de elite, retoma-se a génese e a estruturação do MFA, esclarece que havia uma demarcação entre um grupo contestatário de que ele fazia parte e a linha spinolista, muito pouco presente depois de Spínola sair da Guiné, em agosto de 1973; fala-se do que aconteceu em 26 de abril e da descolonização que envolveu os Comandos e os Fuzileiros. É sem margem para dúvidas um documento que merece ser compulsado com diferentes testemunhos de Carlos Fabião e com o livro de Sales Golias, sobre esta temática.

Um abraço do
Mário



Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (2)

Mário Beja Santos

Li pela primeira vez este texto que vem integrado na obra Vozes de Abril na Descolonização, com organização de Ana Mouta Faria e Jorge Martins, uma edição do CEHC – IUL, 2014, provavelmente no ano seguinte, e fiz texto para o nosso blogue. Correu muita água debaixo das pontes, não se podia imaginar que a questão tivesse arrumada, é obrigatório que haja outras perspetivas sobre a descolonização da Guiné, mas o facto é que esta entrevista se mantém modelar e de indiscutível historicidade. 

Primeiro, porque este oficial do Exército não foi desmentido minimamente quanto ao processo organizativo na Guiné do Movimento dos Capitães/MFA; nenhuma opinião veio contrariar o que ele escreve sobre os acontecimentos do dia 26 de abril, fenómeno inédito comparativamente ao que se passou em Angola e Moçambique; e numa altura em que se retoma a questão polémica dos Comandos Africanos, com alardes de mentira descarada e de escamoteamento do rigor dos factos, até em pretensas teses de doutoramento, este oficial do Exército relembra tudo quanto se passou ao nível da desmobilização do Batalhão de Comandos Africanos e das duas unidades de Fuzileiros Africanos, preto no branco. Razões, parece-me, que justificam voltar ao texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes.

Prosseguindo o teor da entrevista, e já contextualizado o tempo e o modo da génese da formação do Movimento dos Capitães e da MFA na Guiné, Carlos de Matos Gomes é questionado sobre o percurso de Marcelino da Mata, responde sem hesitações:

“O Marcelino da Mata é uma pessoa superiormente inteligente, uma pessoa informada, reage sempre em busca do seu interesse, sempre! Ele sabe que foi utilizado de determinada maneira, por determinadas pessoas, para fazer determinadas coisas, fê-las e foi, sempre, obtendo recompensas. Ele age, claramente, como um homem que sabe que está envolvido numa guerra que o ultrapassou, e vai procurar os aliados que lhe são mais convenientes em cada momento. Como era um homem superiormente inteligente e também corajoso, não tem as lealdades deles e a admiração e respeito é por aqueles que ele considera iguais ou superiores a ele. Por vezes, diaboliza-se o Marcelino da Mata, mas ele é exatamente igual aos comandantes de guerrilha, porque vem exatamente do mesmo sítio, tem as mesmas lógicas, os mesmos comportamentos”.

Desvela seguidamente os tipos de operações em que esteve envolvido, destaca a reocupação do Cantanhez, a ida às matas da Caboiana, a operação Ametista Real. A partir da retirada de Guileje quando o Batalhão de Comandos intervinha já era em situações críticas, afirma, tornava-se imperativo levar o batalhão inteiro. Era a resposta ao agravamento da situação militar, passar-se de operações com 50 homens para operações com várias centenas. Tece observações aos aspetos da etnicidade no recrutamento das tropas africanas, os Comandos e os Fuzileiros africanos tinham por base as milícias, os pelotões de caçadores, as companhias étnicas e caçadores locais.

“Havia tipos que chegavam aos Comandos já com vários anos de permanência, iam aprendendo, iam falando, ganhando uma consciência de militares portugueses que era a tentativa que nós fazíamos. Nós integrámo-nos nessa corrente de fazer o Estado através das Forças Armadas, isto aconteceu em quase todos os países africanos e era também a ideia do general Spínola”.

Os entrevistadores procuram apurar se as diferenças étnicas se esbatiam nessas unidades de elite, obrigatoriamente pluriétnicas, o entrevistado responde:

“Era uma gestão feita em cima do gume da navalha. Tivemos esse problema, mas o PAIGC também o teve e acabaram por se matar uns aos outros. Por exemplo, tínhamos o primeiro grande comandante de uma unidade de Comandos, o João Bacar Djaló, que era Fula. Fez exatamente esse percurso, foi comandante de milícias, foi depois militar e depois foi para os Comandos. O esquema de uma companhia de Comandos comandada por João Bacar Djaló tinha alguma coisa que ver com a organização militar portuguesa, com as Forças Armadas portuguesas, mas tinha muito que ver com a organização da sociedade islamizada.

Ele funcionava como comandante de Companhia, mas também como mestre, tinha um conjunto de discípulos que depois ia premiando. E como premiava? Promovia-os a furriel e depois promovia os furriéis a sargentos. Discípulos esses, que lhe pagavam, como se pagava na idade média, como nas corporações, e isso era assim em vários lados”
.

Depois de expor a sua visão sob a composição étnica existente no seio de batalhão de Comandos Africanos, e depois de recapitular a génese e a estruturação do MFA na Guiné, chegamos ao 25 de abril, as Forças Armadas na Guiné aderiram maciçamente:

“O 26 de abril estava previsto e pensado para, caso houvesse um problema grave aqui em Portugal, a ação de alternativa teria de ser na Guiné. Estou convencido de que, claramente, o general Spínola não estava interessado naquela ação na Guiné. Fizemo-lo sabendo isso, porque assim tornávamos irreversível o processo da descolonização e marcávamos uma posição no processo”.

E elenca as diligências efetuadas nas alterações dos Comandos, e abre espaço para a reflexão sobre as tropas africanas:

“A grande questão que se colocou logo desde o início era: há aqui dois exércitos. Há um exército africano da Força Africana de Spínola, que tinha um batalhão de comandos, as companhias africanas, as milícias, havia à volta de 12 mil homens e o PAIGC tinha menos. A questão era que estes homens não tinham perdido a guerra militarmente, combatiam de igual para igual. Eles, os nossos, não se sentiam, de modo nenhum, derrotados no campo de batalha. E nós, oficiais dos comandos – depois até fiquei como comandante – sabíamos disso e sabíamos que era muito difícil e seria sempre muito difícil estabelecer uma forma de convivência.

Eu penso que nos acordos, no Acordo de Argel está referida a situação dos militares e nós confiávamos que isso iria correr bem. Confiámos! Foi sempre dada a oportunidade a esses militares, principalmente aos quadros e aos tipos que tinham mais impacto, que tinham combatido mais anos contra o PAIGC de que, se quisessem, vir para Portugal. O que é curioso é que não optaram por isso e a mim não surpreendeu, porque sabia mesmo no Batalhão de Comandos, que era a elite das elites, 60 ou 70% daquela gente tinha contactos com pessoas do PAIGC”
.

Havia o entendimento entre os responsáveis portugueses e as principais figuras dos comandos africanos, que a convivência seria possível no futuro. E segue-se a conclusão dramática: 

“Daí que o processo trágico e dramático da eliminação destes homens, militares portugueses guineenses, penso eu, tenha sido uma fuga para a frente da elite dirigente do PAIGC. Esta elite vai encontrar sempre um inimigo externo para justificar as lutas pelo poder interno”

Foram o bode expiatório naquela tensão permanente entre cabo-verdianos e guinéus. O entrevistado recorda declarações de Luís Cabral que deplorava ter encontrado os cofres vazios, uma administração sem quadros, isto quando tivera oportunidade de negociar um período de coabitação com Portugal, até ganhar foros de autonomia, não quiseram, queriam ver-se livres da entidade colonial por pura ambição da chegada ao poder.

O Batalhão de Comandos foi extinto, ficara escrito que iriam ser reintegrados numas novas Forças Armadas, houve quem recusasse, caso do tenente Jamanca que foi pouco depois abatido.

E aqui se dá por concluído o essencial do texto da entrevista de Carlos de Matos Gomes a uma equipa de universitários que quiseram ouvir protagonistas que tinham estado na primeira linha no processo da descolonização nos 3 teatros africanos.


Carlos de Matos Gomes
Entrada do aquartelamento do Batalhão de Comandos da Guiné
Insígnia do Destacamento de Fuzileiros Especiais 21, a que pertencia Domingos Demba [Ensá] Djassi, 2.º Sargento
2.º Sargento Domingos Djassi
Capitão João Bacar Djaló em Catió, ainda tenente. Foi o 1.º comandante da 1.ª Companhia de Comandos Africanos
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE NOVEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24820: Notas de leitura (1630): Uma nova leitura da incontornável entrevista de Carlos de Matos Gomes sobre a descolonização da Guiné (1) (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24641: Notas de leitura (1615): "Guiné-Bissau: Um Caso de Democratização Difícil (1998-2008)", por Álvaro Nóbrega; Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015 (1) (Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
É um estudo rigoroso, bem datado, uma observação que cuida do mosaico étnico, das condições da luta pela independência, toma em consideração as sucessivas práticas do poder, visita a transição democrática em África para aquilatar o processo democrático formalmente encetado em 1991 mas que foi sujeito a inúmeros escolhos, interpreta o que há de completamente diáfano no chamado sentido do Estado, como se organiza o poder soberano do mando, e como permanece longínqua a distância entre as leis que se fabricam em Bissau e o quotidiano de quem vive agarrado à subsistência. Um estudo de leitura obrigatória, com bom trabalho de campo, oferece uma reflexão sobre os diferentes fatores que têm induzido a disfuncionalidade do Estado e do processo democrático na Guiné-Bissau, nada de moralização, factos são factos, os guineenses que ponderem sobre a revitalização da sociedade civil, a participação nas decisões de quem está longe dos jogos de Bissau, o tal caminho longe que deve ser feito para erradicar o narcotráfico, o fantasma tribal, as mil e uma manifestações da corrupção.

Um abraço do
Mário



Uma soberba investigação sobre uma Guiné-Bissau que viveu a guerra civil, dilacerante (1)

Mário Beja Santos


Álvaro Nóbrega, Doutor em Ciências Sociais e professor universitário, é autor de uma obra de referência "A Luta pelo Poder na Guiné-Bissau" (2003), e na sequência desse primoroso trabalho produziu "Guiné-Bissau: Um caso de democratização difícil (1998-2008)", Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, 2015. Este ensaio, de leitura obrigatória, desvela o itinerário ziguezagueante das instituições democráticas e pluralistas na Guiné-Bissau; o investigador reflete a fundo sobre as condições do nascimento do Estado, após uma prolongada luta armada de libertação nacional, elenca sobre as fragilidades, os erros, a vertigem dos cargos, o nepotismo, a tentação tribal, a Nação firme, mas o Estado volátil; enfim, importa esclarecer se faz vencimento aludirmos a um Estado frágil ou falhado ou supor que haverá outros itinerários, que seguramente requerem imensa coragem, a trilhar para consolidar a democracia e o respeito pelas instituições.

O autor privilegia, no início do seu trabalho, a análise do processo de liberalização política encetado nos anos 1990, vai forçosamente a décadas atrás e enquadra com a evolução que ocorreu noutros países, regimes autocráticos que simularam ou com um certo grau de sinceridade aprovaram as instituições pluralistas, o respeito pela liberdade de expressão, a independência da justiça e a primazia do trabalho parlamentar. Quando Nino Vieira abriu caminho para as instituições pluralistas, fê-lo com uma pedra no sapato e com enormes resistências no seio do PAIGC. Quando este chegou ao poder em Bissau, em outubro de 1974, parece ter esquecido as advertências de Cabral para as armadilhas que potencialmente Bissau reservava; com a gula do poder, esqueceram-se questões medulares do mosaico étnico-cultural, que o autor elenca, vale a pena uma referência:
“No litoral registam-se as maiores densidades populacionais e congregam-se os povos de cultura animista que resistiram ao processo de islamização que vingou em toda a sub-região. Manjacos, Mancanhas, Felupes, Papéis ou Pepel, Baiotes, Bijagós e Balantas foram o grosso desta população de cultura animista. No litoral sul e no interior do país predominam, por ordem decrescente de importância populacional, Fulas, Mandingas, Beafadas e Nalus/Sossos, Jacancas e Saracolés. Há quem defenda hoje, como no tempo colonial, que o processo de islamização será rápido entre a população que ainda resiste animista. Pode ser que assim aconteça face a um proselitismo islâmico muito ativo, e é uma igreja católica que, pese a sua ação social valiosa, não parece em condições de travar o processo. Mas não se pode esquecer a ação das seitas evangélicas, especialmente as brasileiras, as da torna-viagem, intensamente prosélitas e com rituais e práticas que vão ao encontro do esoterismo das populações africanas”.

Não esquece as etnias transnacionais, são as que demograficamente mais pesam, que têm estreitas ligações com o Senegal, a Gâmbia e a Guiné-Conacri, e daí também um quadro de descentralização política, um verdadeiro tampão contra o Estado coeso. O PAIGC tentou infiltrar-se nas estruturas locais e perdeu, foram as estruturas locais que esvaziaram os comités e os representantes nomeados por Bissau foram desde muito cedo ostracizados. Igualmente a tentativa de modernização imposta não vingou. “A desorganização crescente do Estado, o processo de abertura política, que levou os políticos de volta às tabancas para disputarem intensamente o voto das zonas rurais, conduziu a uma reafirmação do poder tradicional que está bem consciente da importância que tem em tempos eleitorais. Assim se compreende a posição das autoridades administrativas que tanto escrevem documentos de reconhecimento ao poder tradicional, como aconteceu na investidura do novo régulo do Forreá, ou que, chamadas a intervir em chão Papel num conflito de direitos sucessórios, entregaram a sua resolução ao poder regular contra quem tinham sido chamados. Nestes momentos em que o Estado visita a tabanca não é raro que não consiga falar diretamente com o seu povo, nem ouvir o que ele diz, sem recorrer a um intérprete que domine a língua étnica e o crioulo”.


Assim se põe a questão da identidade nacional, ela existe ou não, é possível falar-se ou não de uma identidade guineense? O autor recorda que Amílcar Cabral contornou a questão adotando o princípio de que a nação se forjou na luta de libertação. Mas cedo surgiram clivagens e antagonismos internos, e o autor recorda aspetos nevrálgicos: “entre as etnias não abertas à modernização; entre as classes sociais em vias de formação”. Quando encaramos o conflito armado, era admissível tentar-se uma leitura de que havia uma resposta da Nação coesa contra invasores e opressores internos. O autor observa: “Vencido o opositor, as divergências emergem e começam a minar a unidade firmada nas trincheiras. Além disso a luta, porque é violenta, não é inclusiva e a vitória de uns sempre significou a derrota para outros. E essas são as etnias magoadas da Guiné: os Fulas no tempo colonial, os Balantas nos anos 1980 e os Mandingas nos anos mais recentes”. Como estamos a falar de Ciências Sociais, é apropriado que o autor também lance olhar sobre os escolhos à identidade nacional: “O guineense depara-se quotidianamente com a questão de múltiplas pertenças (comunitária, religiosa, étnica e política), o que, por um lado, coloca em questão a coesão nacional e, por outro, dificulta a governação e a gestão dos interesses nacionais, predominando a identificação, a autonomia e lógica étnica”.

E chegamos a um novo elemento do Estado: o “Tchon”. Nova dissertação histórica nos é apresentada pelo autor, o “Tchon” é o local de nascimento, onde vive a família, a etnia, tem um poder soberano. Do “Tchon” passamos para a fragilidade do Estado, e vem uma recordação datada de 10 de outubro de 2003 em que um jornal de Bissau alerta para as ruínas da Casa da Independência em Lugadjole: “A placa comemorativa da proclamação da independência já desapareceu. Onde foi parar? Ninguém sabe. É provável que o metal deste símbolo da liberdade já tenha sido fundido para fabricar algum objeto fútil, de uso vulgar. Triste reciclagem dos valores da independência!”. É brandido o espetro do narcotráfico e passamos para a sede real do poder que é pertença de militares e civis ligados por interesses patrimoniais e por outros níveis de solidariedade. “É este núcleo informal que detém, em última instância, a capacidade de terminar o exercício da força e da violência do Estado. Tudo tem de ser negociado. Nenhum ato de força do Governo é possível sem a sua concordância e não há poder interno capaz de se lhe impor”.

Nesta teia de constrangimentos, todas as instituições são abertamente frágeis, logo o desempenho e a eficácia da Justiça, o quadro da anormalidade é patente:
“Todos os dias são estabelecidas inúmeras relações jurídicas na Guiné, não se pode dizer que não recorram com normalidade e satisfação para os seus intervenientes. A maioria destas decorre, contudo, ao abrigo da personalização das relações, de contratos ritualizados que comprometem pelo nível de sanções de índole social e espiritual que decorrem do seu incumprimento. A desonra, a vergonha do indivíduo perante as suas relações sociais e o medo dos castigos provindos do mundo espiritual coagem, a quem a honra não obriga, ao cumprimento. Mas no mundo da ambivalência cultural que é a cidade de Bissau, onde as práticas e os povos se misturam, os conflitos são mais frequentes e as instâncias tradicionais, que auxiliariam à sua resolução de uma qualquer comunidade rural, não têm a máxima força. Assim sendo, tende a vigorar a lei do mais forte”.

Tudo é ténue, precário, dominado pelo princípio da anulação ou revogação. Acresce que tudo se promete para melhorar o bem-estar e tudo fica na mesma ou pior por causa das coligações precárias inter e intrapartidárias, é um poder de sátrapas, em que se multiplicam os ministros, secretários de Estado e secretários-gerais, lugares que dão acesso aos benefícios de função com o longo cortejo de chefes de gabinete, assessores e colaboradores, tudo inevitavelmente transformado em mecanismos de corrupção, onde o fantasma tribal não está ausente.

E temos por último a instabilidade política e militar, os ajustes de contas entre Nino Vieira com Carlos Gomes Júnior é um bom exemplo, o assassinato de Veríssimo Seabra só porque houve atraso no pagamento das Nações Unidas ao contingente de manutenção de paz na Libéria, tem-se permanentemente a sensação de que não há avanços seguros, que rapidamente se pode recuar até práticas selváticas ou cavernícolas.

E o autor seguidamente vai-nos dar uma poderosa reflexão sobre a elite política da Guiné-Bissau.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE SETEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24633: Notas de leitura (1614): "Uma História do Mundo em 100 Objetos", por Neil MacGregor; Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2014 (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 10 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24133: S(C)em Comentários (7): Ouvi um alto dirigente do MPLA, já depois da independência, dizer que o governo angolano deveria agradecer às Forças Armadas Portuguesas o facto de existir uma consciência nacional em Angola, em vez de uma pertença tribal somente (Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alf mil, CCAÇ 3535 / BCAÇ 3880, Zemba e Ponte do Zádi, 1972/74)


1. Comentário (ao poste P24128) (*), assinado pelo Fernando de Sousa Ribeiro, que integra a nossa Tabanca Grande desde 11/11/2018; foi alf mil, CCaç 3535 / BCaç 3880 (Angola, 1972 / 74):

Fernando de Sousa
Ribeiro
Alguns anos depois da independência de Angola, ouvi um alto dirigente do MPLA dizer que o governo angolano deveria agradecer às Forças Armadas Portuguesas o facto de existir uma consciência nacional em Angola, em vez de uma pertença tribal somente. 

Explicou ele que, no serviço militar prestado nas fileiras das Forças Armadas Portuguesas, foram postos em contacto angolanos das mais diversas etnias e origens geográficas, o que os levou a descobrir que o que os unia era mais do que o que os separava.

Em Angola não havia "pelotões nativos", "comandos africanos" ou "companhias indígenas", cujos membros pertenceriam, na sua maioria ou mesmo na sua totalidade, à etnia A ou à etnia B. Havia apenas militares regulares, que eram jovens como nós, cumpriam o serviço militar obrigatório como nós e no fim passavam à "peluda" como nós. 

Assim como nas companhias e pelotões metropolitanos eram indiferenciadamente incorporados minhotos, alentejanos e transmontanos, também nas companhias e pelotões angolanos eram incorporados, sem distinção, ovimbundos, bacongos e quiocos. 

Nos últimos anos da guerra, esta mistura foi levada ainda mais longe, com a incorporação de militares angolanos em unidades e subunidades metropolitanas, que saíam de cá incompletas. Foi o que se passou com o meu batalhão, que teve alfacinhas, tripeiros e beirões misturados com luandenses, malanjinos e beguelenses. Tudo misturado. 

O resultado foi francamente positivo, na minha opinião.


Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da C.Caç. 3535, B.Caç. 3880


quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23853: Historiografia da presença portuguesa em África (346): Aquele que terá sido o primeiro exercício etnográfico para toda a Guiné (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Há que reconhecer o interesse deste questionário etnográfico proposto pelo capitão Velez Caroço ao governador da Guiné. Desconhecem-se as consequências, mas convém não esquecer que havia antecedentes quanto à obrigatoriedade de relatórios anuais emanados pela administração até Bolama, era um imperativo legal informar o governador sobre determinadas questões elementares de todas as regiões; Ricardo Sá Monteiro, o governador que antecedeu Sarmento Rodrigues procedeu em 1941 a uma reunião de administração em que formulou a exigência de se saber mais sobre os usos e costumes do indigenato. Mas não restam dúvidas que o capitão Velez Caroço se esmerou na procura de uma malha de inquérito que assegurasse um melhor conhecimento, de acordo com os conhecimentos etnográficos do seu tempo, muitos deles rapidamente ultrapassados, caso do conceito de raça.

Um abraço do
Mário



Aquele que terá sido o primeiro exercício etnográfico para toda a Guiné

Mário Beja Santos

Encontram-se pelos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa diferentes relatórios enviados pelos chefes de posto e administradores de circunscrição para o governador da Guiné, logo nas primeiras décadas do século XX, tratava-se, aliás, de uma exigência legal, informar Bolama de tudo quanto se passava em qualquer dos lugares da colónia, havia mesmo preceitos para as informações ordem socioeconómica e cultural. Foi dentre deste vasto acervo que encontrei uma proposta de questionário etnográfico que saiu do punho do Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, familiar do antigo governador. A data do documento dirigido ao Governador Carvalho Viegas corresponde à sua publicação no Boletim Oficial da Colónia, 14 de maio de 1934. Atenda-se à importância que tem a carta que o Capitão Velez Caroço envia ao governador:
“Os factos e as características observadas na vida do indígena e na sua maneira de ser, e na necessidade absoluta e urgente de procurar metódica e progressivamente aproximá-lo da nossa civilização, com a garantia indispensável dos seus direitos, é verdade, mas tendendo sempre para um melhor e mais completo aperfeiçoamento, determinaram a conveniência de criar para ele uma ordem jurídica adaptada à sua mentalidade primitiva, às suas faculdades psíquicas, aos seus sentimentos e que se harmonize, tanto quanto possível, com o respeito pelos seus usos e costumes, cuja transformação se deve efetuar lenta e gradualmente, evitando assim possíveis perturbações que têm tanto de inúteis como de prejudiciais”.

Começa-se a perceber o móbil desta incursão etnográfica que o oficial do exército apresenta: conhecer as gentes para as encaminhar para um quadro civilizacional superior, para tanto é indispensável conhecer a fundo as mentalidades e garantir direitos a quem ainda não está no patamar de “civilizado” ou “assimilado”. Velez Caroço faz notar a singularidade do mosaico étnico, havia que conhecer a fundo os usos e costumes de todos para que essa codificação melhorasse a ação administrativa, daí o imperativo de conhecer com minúcia a vida material do indígena, a sua constituição moral, as práticas religiosas, etc. E adianta uma informação:
“Já em 1928 uma ordem emanada do governo da colónia mandava elaborar o questionário etnográfico cuja finalidade se fixava, naturalmente na absoluta necessidade da existência de uma codificação de usos e costumes, sobre a qual deveria assentar a legislação especial reguladora dos estatutos sociais dos indígenas”. Foram poucas as respostas que chegaram, vieram dos administradores de Canchungo e Mansoa e sobre as etnias Manjaca, Brame e Balanta. Tudo insuficiente, daí ele poder dizer que a ordem jurídica existente é falha e a ordem jurídica inadequada, como observa: “No cível e comercial, a ação da justiça é, vagamente, encerrada no respeito pelos usos e costumes das raças jurisdicionadas, com a resultante de confusões e atropelos produzidos por critérios diferentes na forma de provocar a evolução, se por transformação lenta, se por imposição abrupta de sistemas que se aproximem da definição do estado social perfeito. Um e outro estatuto, o civil e o criminal, carecem da unificação de diretrizes sobre que assente a ação da justiça. Obtido, como é de esperar, o interesse e a dedicação das autoridades administrativas, e de outras individualidades que podem e devem trazer à resolução do problema o concurso dos seus conhecimentos, disporemos dos elementos precisos à confeção dos Códigos Indígenas especiais de administração e justiça, tão necessários a uma perfeita ação civilizadora”.

A proposta de questionário abarca três temas: raças, dos direitos, comércio e indústria. Nas raças, visa-se conhecer a sua origem e história, a que raças pertencem os indígenas que habitam a região, hipóteses prováveis sobre a sua origem, conhecer a raça mais antiga; atender aos sinais e características de cada raça ou tribo, saber se praticam tatuagens ou cicatrizações, a que regras obedece a tatuagem, se há tatuagens próprias para as crianças púberes; na dimensão antropológica pretendia-se apurar qual o tipo físico e a cor, a forma geral dos crânios, se o cabelo quando cresce forma mechas separadas ou ganham uniformidade; pretendia-se apurar a índole da população: se é ativa, industriosa, pacifica ou de caráter guerreiro, se têm aversão ao trabalho e como a manifestam; passando para o campo da justiça pretende-se saber mais sobre o exercício e principio de autoridade dos indígenas: quais são as autoridades indígenas estabelecidas pelos seus usos e costumes, se existe régulo, qual a sua autoridade e poder, que homenagens prestam aos régulos e chefes, como os saúdam, como saúdam os velhos; havendo emigrações constantes na colónia, impunha-se saber se a população se considerava definitivamente fixada à terra, se aspira à mobilização e havia que perguntar se quando abandonavam determinada região o que transportavam consigo; o questionário inflete agora para a família, a sua constituição: se são polígamos ou se casam apenas com uma mulher; quais as formalidades e cerimónias do nascimento, quem assiste as parturientes, direitos dos irmãos e parentes, direitos dos filhos de segunda mãe, se o divórcio é aceite entre os indígenas, em que condições; como se fazem os enterros, que tipo de cerimoniais; procurar conhecer se os indígenas costumam fazer disposições dos seus bens e direitos ainda em vida ou se as heranças e sucessões produzem o seu efeito apenas após o seu falecimento; na questão da habitação, o inquérito propõe apurar em que idade constrói o indígena a sua casa e passa a ter domicílio próprio, e como é apreciada a ausência de um indígena na sua terra e na sua casa; pretende-se igualmente apurar a prática do poder paternal e a legitimidade dos filhos, como é que esse poder é exercido, como se reconhece a legitimidade dos filhos, se os pais são inteiramente responsáveis pela alimentação dos filhos, e até se pretende saber até que idade são os indígenas considerados menores ou se há diferenças segundo os sexos.

Todas estas matérias acima assinaladas pertencem ao tronco que o Capitão Velez Caroço designa por raças, segue-se agora o que ele designa “dos direitos”, e aqui formulam-se múltiplas questões que abordamos sinteticamente: como encaram os indígenas o direito de existência e qual o sentido da propriedade, se se dedicam ou não à caça e à pesca, se gostam de ter animais domésticos e quais os animais selvagens que abundam na região, como também se pretende saber quais as principais plantas que ali existem.

Vejamos agora o último acervo de matérias, designados por “comércio e indústria”: qual a característica do comércio indígena, pretende-se saber quais as indústrias privativas da raça na região, se os indígenas se dedicam e preferem a vida do mar, se aprendem artes e ofícios; quanto à saúde e higiene, intenta-se saber quais as medicinas indígenas, se existem curandeiros entre os indígenas; passa-se depois para a religião e superstição, pretende-se apurar quais os cultos, os ritos e se existem mitologias; falando das diversões, pretende-se saber a que distrações se entregam os indígenas; quanto à habitação, quais as formas das velhotas e os materiais empregados na sua construção; e temos aqui o último pacote de questões sobre “literatura e moral”: que dialetos se falam na região, quais as principais regras gramaticais, se existem provérbios, canções ou contos.

Esta é a essência de proposta de questionário etnográfico que seria enviado para os administradores de circunscrição, porventura outras autoridades, talvez missionários, personalidades de reconhecido mérito, etc. Se aqui destacamos a essência do que se pretendia apurar, importa reter o conceito de missão civilizadora, a incontestável preocupação em saber o quadro das mentalidades das diferentes etnias para não tratar uniformemente aquilo que não é uniforme. Estamos na década de 1930, pensava-se que existiam raças, recordo que em 1947 andou pela Guiné o professor Mendes Corrêa a medir crânios, alturas, desvio dos olhos, tamanho das orelhas, à procura de prognatismos e dolicocefalias, são hoje questões absurdas. E recordo igualmente que se dá um salto com os reconhecimentos etnográficos na década seguinte, Teixeira da Mota irá elaborar com base noutras pautas de rigor científico um questionário sobre a habitação na Guiné, ainda hoje um documento de leitura obrigatória, visava-se uma dimensão etnográfica, mas também havia subentendido o cuidado de melhorar as infraestruturas nessas tabancas. Mas isso é outra história, já não cabe nos comentários a este documento de referência que foi o questionário etnográfico de Velez Caroço.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23831: Historiografia da presença portuguesa em África (345): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (3) (Mário Beja Santos)

domingo, 4 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23843: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte V - Chegada a Gadamael Porto

1. Parte V da publicação do excerto que diz respeito à sua vida militar do livro "Um Olhar Retrospectivo", da autoria de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72.


V - Gadamael Porto…

Avisados sobre a data de partida para Gadamael Porto, deram-nos uma ideia sobre o trajecto: descer o rio Geba, seguir pelo mar, passar entre a costa e o arquipélago dos Bijagós, até ao rio Cacine, com percurso até Gadamael Porto.

Dia 27 de Novembro, lá fomos, rio abaixo, com o equipamento de defesa adequado e acompanhados por uma corveta da marinha de guerra, com os transbordos planeados, sempre atentos às margens e a qualquer movimento suspeito, cumprindo as orientações recebidas, até Gadamael Porto, onde chegámos dia 29.

Início da tarde, chegada a Gadamael Porto.
Acostagem a um porto que mais parecia um pequeno cais de brincadeira, enorme decepção, com sensação estranhíssima de desânimo e vazio, imagem parecida com aquelas pequenas cidades perdidas ou abandonadas do tempo do faroeste, ainda sem ter noção de qualquer realidade.
Depois de desembarcarmos, uma olhada pelo cenário, identificação do verdadeiro solo que estávamos a pisar, pela primeira vez, sem sequer pensarmos no tempo que ali teríamos de viver.
Além do rio lamacento, mais lama do que outra coisa, com caudal quando a maré subia, claro, encontrámos terra castanha, circundada por capim e mata cerrada, parte dela, virgem, aguardando ser desbravada.

Pequenas tabancas de lama e colmo, a par das tabancas construídas pelos militares, à medida que iam chegando, dando vida diferente aquele cenário.
Estas tabancas construídas por nós também eram erguidas com tijolos de lama, feitos em formas de madeira dos nossos caixotes, que eram espalhados pelo chão e coziam ao sol.
A argamassa para a união era feita da mesma lama.
A cobertura era com pedaços de palmeira a servir de base e apoio das folhas de zinco que a Engenharia de Bissau enviava por batelões, chegando metade ao destino, pois os nativos iam desviando o que podiam, durante a viagem.

No meio do aquartelamento, um edifício térreo antigo, uma velha casa de comerciantes libaneses (designada Taufik Saad), dos tempos do comércio entre República da Guiné-Conacry, Guiné-Bissau e Senegal, que já tinha sido aproveitado para edifício do comando.
A um canto, uma pequena tabanca que fazia de enfermaria, onde o furriel enfermeiro, o Vítor Coelho, orientava a actividade possível.
Uma caixa de cartão com medicamentos tinha de ser bem gerida, pois era difícil recebermos medicamentos com a frequência adequada.

Por falar nisto, recordo-me de um indígena Fula que tinha o vício da injecção, pois dizia que tinha dores no corpo: ‘a mi miste agula, corpo di mi, manga di mal…’ (eu quero injecção porque tenho dores no corpo).
A primeira vez, perguntam-lhe o nome, para registo, ele diz: ‘afinal di contas’
E lá estava, todos os dias, a pedir injecção.
Claro que levava injecção, mas de água destilada, e dizia: ‘manga di sabe sabe’ (muito bom!).
Depois, perguntavam-lhe: ‘corpinho di bó?’ (está bom?), a que respondia: ‘jametum!’ (está bom!)
Havia um outro que também lá estava caído, a toda a hora, a pedir pastilhas, e chamava-se ‘dinheiro có’.
Mas ele é que escolhia as pastilhas, pela cor da caixa…

Aquilo que mais chamou a nossa atenção foi a expressão de alívio da companhia que íamos render, cansados, saturados e ansiosos por deixar aquele local.
Mas a saudação à companhia que íamos render foi algo atribulada, ao contrário do que era suposto.
Um ajuntamento de militares, em frente ao tal edifício do comando, como que cercando um militar, tronco nu, calções, sujo e suado, de G3 apontada a uma porta do edifício: ‘Saiam daí, seus covardes, que eu limpo-lhes o sebo!’
Ninguém se mexia, ninguém falava.

Perguntei a um deles de que se tratava, respondendo-me que aquele ‘gajo’ queria limpar o capitão e um alferes que estavam escondidos dentro do edifício.
Da minha companhia, ninguém deu um passo, incluindo o capitão Assunção e Silva.
Eu olhei bem para o ‘gajo’ e vi algo de familiar.
Sim, era ele mesmo: um dos filhos de uma família de marchantes, donos dos talhos de Vieira do Minho!
Aproximei-me, ele virou a G3 para mim, de imediato, ameaçando e que não desse nem mais um passo.
Olhei-o bem nos olhos e perguntei-lhe se Vieira do Minho lhe dizia alguma coisa.
Ficou estático, de repente, o que interpretei como que uma certa abertura para uma iniciativa da minha parte.
Avancei, novamente, desviei a G3 e pedi-lhe que fizesse um esforço para me identificar.

Vitória, pois consegui tocar-lhe num braço e levá-lo uns metros para fora daquele círculo de malta, ao mesmo tempo que lhe dizia as palavras que me iam surgindo.
Largou a G3 e deu-me um abraço sentido, deixando-me aliviado, para espanto de todos os outros.
Tudo acalmou e pudemos iniciar as saudações.

No entanto, o meu capitão Assunção e Silva logo se me dirigiu e, de certa forma, depreciou o meu acto, dizendo que, além do risco que corri, era problema da outra companhia que só eles deveriam resolver.
Isto não me caiu bem, mas interpretei como que um gesto de protecção, mais pelo risco que ele dizia eu ter corrido.

A passagem do espólio militar, nomeadamente, das armas, era uma rotina e envolvia alguma tensão, cujo motivo entendi, mais tarde, quando a companhia rendida foi embora e nós constatámos que os acessórios das armas que tínhamos assinado como recebidos não correspondia ao número real.
Esta operação era feita com intervalos, para dar tempo a que um conjunto de acessórios desse para mais do que uma arma.
Enquanto se sugeria um intervalo, depois de se mostrar uma arma, alguém combinado pegaria no conjunto e colocava-a no local a seguir, como se pertencesse à nova arma.
As numerações gravadas passavam despercebidas, com um pouco de conversa.
O mesmo teríamos de fazer, quando fossemos nós a passar à outra companhia que nos viesse render.

Esta operação tinha mais impacto nas metralhadoras pesadas, a Breda m/938 e a Browning m/952, montadas na periferia do aquartelamento, junto ao arame farpado, embora também pudesse abranger os morteiros 60 e 81 e outro material, nomeadamente, acessórios e munições.
E os velhos Racal TR28, equipamento de transmissões, de origem sul-africana, usados pelos operadores, às costas, sempre que solicitados para participarem em operações, lá estavam sob vigilância apertada, dificultando qualquer ‘marosca’ na passagem para a outra companhia.
E as célebres pistolas Walther de 9mm requeriam uma especial atenção…

Isto acontecia com todos e cada companhia tinha de fazer um esforço redobrado na gestão do material de guerra, no sentido de garantir a mesma defesa com menos equipamento.
Desonesto, estúpido, inaceitável, claro, mas as realidades são diferentes da nossa vontade e necessidade.

Sem demora, escolhemos a tabanca que nos pareceu mais simpática, pela localização e possibilidade de melhoramento.
Dava para os três, o Artur Neves, o Carlos Amaral e eu.
Como ficava mesmo em frente ao que era designado como edifício do comando, acabou por gerar polémica e alvo de ataque cerrado por uma personagem que apareceu depois.

E, para animar a malta, cerca das seis da tarde, primeira flagelação, logo no primeiro dia - um aviso do inimigo!
Eu e o Neves, um dos furriéis do 3.º grupo, estávamos a tomar uma espécie de duche, dentro de uma casinha de madeira, junto a zona dos obuses da artilharia, em que a água possível jorrava de um bidão colocado em cima de umas estacas, que era enchido com uma lata de chouriço.
Típico do ‘periquito’, inocente, ingénuo, inconsciente, reage como se se tratasse de brincadeira, mas logo percebe que a coisa é a sério… Gadamael Porto era um aquartelamento que ainda resistia, mas tinha de cobrir uma zona onde tinham existido outros aquartelamentos e destacamentos que, pela força do avanço e pressão do inimigo, acabaram por ser desactivados, pois era difícil a sobrevivência.

O efectivo do aquartelamento completava-se com quatro pelotões distintos:
- um pelotão de cavalaria, comandado pelo alferes Gomes e furriéis Oliveira Soares, Martins Soares, Manso, Barreiros, Rio e Vitoriano, com duas viaturas blindadas Fox, velhinhas;
- um pelotão de artilharia, comandado pelo alferes Vasco Pires e furriéis Krus, Carvalheda e Oliveira, com três obuses;
- dois pelotões de milícia, muito importantes na progressão dentro da mata cerrada e picagem, utilizando a designada pica, uma espécie de pingalim em ferro, cabo de madeira, para ir picando o solo, no sentido da detecção de minas. Ainda me recordo de alguns nomes dos milícias: camisa conté, mamadú biai, abdulai baldé, samba camará, amadú bari, mamadu embaló,…

Falei em Carvalheda que suponho deve conhecer ou, pelo menos, de ouvir falar, ligado à rádio, o Armando Carvalheda.
"O Carvalheda, sim, o Carvalheda da rádio, não me recordo do nome da Rádio."
Da Antena 1, o Armando Carvalheda, que começou na Emissora Nacional, em 1972 ou 1973, já tínhamos regressado da Guiné, hoje, ainda na Antena 1.
Foi mobilizado, mais ou menos na mesma altura que eu, tendo ido parar a Gadamael Porto, para fazer parte do pelotão de artilharia.
Pouco tempo depois, pelo ‘trabalho’ desenvolvido pela mulher, em Lisboa, e por influência do João Paulo Dinis, também da Rádio, foi transferido para Bissau, para a Rádio, passando a fazer parte do PFA, programa das forças armadas, onde cumpriu a comissão, até finais de Outubro de 1972.
É assim, mais um exemplo de sorte, mas com o trabalho e forte empenho de alguém…

Por falar em Rádio, recordo uma curiosidade que ficou célebre, protagonizada por um operador dessa Rádio, um guineense formado pelos profissionais do continente que, quando iniciava o seu turno, nos discos pedidos, dizia:
‘E o PIFAS muda di ritimo! Pr’a Mamadu Jaló, qui firma no Catió, cançon Giani Morandi, non son dinho di bó!’

Os reconhecimentos e operações diárias tinham de manter-se, rigorosamente, e não podíamos deixar-nos cair na tentação de receios ou sentimentalismos, porque sabíamos da existência de comunidades indígenas, com mulheres e crianças, dentro dos espaços militares do PAIGC, aliás, como o nosso caso…
Isso não significava falta de responsabilidade ou de bom senso da nossa parte, mas estávamos ‘metidos’ naquilo, logo, sentido natural de defesa do nosso espaço e da nossa pele, o sentido humano espontâneo, mesmo que… desumano…
Também as armadilhas e minas tinham de ser montadas e instaladas, a par do levantamento das AP, minas antipessoal e AC, minas anticarro do inimigo, para posterior colocação nas supostas zonas de passagem do inimigo, junto à fronteira.
Foi montado um fornilho, pelo nosso pessoal de minas e armadilhas, com a supervisão do Carlos Amaral, um dos furriéis do terceiro grupo, na zona oriental do aquartelamento, no topo do arame farpado.
Era composto por um bidão de duzentos litros - dos que nos enviavam para abastecer as coitadas GMC - cheio de todo o tipo de desperdícios de metal e vidro, tnt e combustível, com uma ligação de fios eléctricos, do interior para o exterior, depois conectada a um detonador.

E os episódios foram surgindo, naturalmente, à medida das circunstâncias de cada momento de guerra, com mais ou menos consequências.
As flagelações, o meio mais utilizado pelo PAIGC, com o uso de diversos tipos de armas pesadas, obus, canhão sem recuo SPG82, os lança granadas RGP2 e RPG7, morteiro 120 perfurante, mísseis, algumas vezes, utilizando very-lights, para iluminação e melhor localização do aquartelamento, um designado ‘ataque aos arames’, chefiado pelo célebre Nino Vieira, mais flagelações, emboscadas, enfim, todo o conjunto de variantes cénicas daquele tipo de guerra, sabida subversiva e de informação.
O tal fornilho, infelizmente, não funcionou, quando foi accionado para fazer face ao designado ‘ataque aos arames’, a tal operação liderada pelo Nino Vieira.
Se tivesse funcionado, o resultado negativo para os guerrilheiros do PAIGC teria sido muitíssimo maior.

A Força Aérea representava uma boa ajuda, com os heli-canhão e os Fiat, em operações RVIS, voos de reconhecimento, mas tinha muita dificuldade de progressão, pois as antiaéreas do PAIGC, sem esquecermos os célebres mísseis terra-ar Strela (SAM7), fabrico soviético, estavam bem posicionadas, ao longo da fronteira, na nossa frente, e já tinham feito estragos, noutras ocasiões.

Para o Daniel ter uma ideia das múltiplas acções que entram nas probabilidades de ocorrência, apanhámos um infiltrado no lado da tabanca, onde tínhamos a pequena comunidade local sob nossa protecção, em cima de uma tabanca, ao anoitecer, a fazer sinais de luz com uma lanterna, bem na direcção da fronteira, uma das formas de facilitar a localização exacta do aquartelamento, no meio da mata.
Interrogado, concluiu-se ser um elemento guerrilheiro do PAIGC que se infiltrou na zona, vindo da fronteira em frente, cuja missão era aquela, apenas: marcar o ponto exacto do nosso aquartelamente, permitindo a regulação das armas já montadas ali perto de nós, para o ‘espectáculo’ que começaria, pouco depois.
Os guerrilheiros do PAIGC, supondo que o seu enviado tinha cumprido a missão e já estava retirado, em segurança, já tinham tudo preparado e estavam mais perto de nós do que poderíamos pensar, a prepararem mais uma operação que, caso conseguissem o resultado previsto, poderia ser o fim de Gadamael Porto, o fim de todos nós.
Ali ficou, deitado no chão, bem no centro do aquartelamento, como primeiro castigo, até tudo terminado…

Sim, porque o arraial começou pouco depois, durando umas horas, com as armas dos guerrilheiros do PAIGC bem reguladas, indicação da lanterna do infiltrado, prisioneiro…
Foi uma das noites horríveis de baixas e destruição, até termos ficado sem munições das armas pesadas, principalmente, ‘supositórios’ (munições dos obuses)!
Contra as expectativas dos guerrilheiros do PAIGC, que nem notaram que estávamos sem munições, a nossa sorte, os resultados não foram o suficiente para acabarem com Gadamael Porto.

No dia seguinte, a nosso pedido, chegaram dois hélis, um destinado ao prisioneiro, outro para os feridos, todos com destino a Bissau.
As ‘salgadeiras’ (urnas funerárias) vinham de batelão, a nosso pedido via rádio, depois de cada baixa declarada.
Depois de tudo tratado, as ‘salgadeiras’ eram enviadas, em batelão, para um outro aquartelamento perto, Cacine, como entreposto, antes de partirem para Bissau.

Depois, dois dias sem dormir e quase sem comer, para levantarmos o que era possível do aquartelamento.
Aqui, a vertente psicológica manda e vence!

Uma outra tarefa, bem desagradável, eram as colunas a Guilege, que fazíamos algumas vezes, para abastecimento de mantimentos, géneros alimentícios e material de guerra.
Os géneros que nos enviavam, acondicionados em redes, deixados cair dos hélis, ou trazidos de batelão, quando possível, eram repartidos com Guilege.
Era a única forma de Guilege os receber, o que justificava o sacrifício e riscos e nos motivava para tal operação.
Porquê? Porque Guilege não podia ser abastecido de outra forma, nomeadamente, de heli, pois estava um pouco mais a leste, ainda mais junto à fronteira, perto de Kandiafara, um posto militar do PAIGC, dentro da Guiné-Conacry, onde as antiaéreas estavam alerta, permanentemente.

Era um percurso de alguns quilómetros, por picada, com alguns homens a montar segurança, ao longo do percurso, mas de difícil progressão, pois os guerrilheiros do PAIGC andavam por ali, como rotina, e algumas vezes nos dificultaram a vida e nos causaram mossa…
Este percurso fazia parte do célebre ‘corredor da morte’, com início em Kandiafara, atravessando a fronteira, passando por Guilege e seguindo para Gadamael Porto.
Deste designado ‘corredor da morte’, também faziam parte Ganturé, Gadembel e Aldeia Formosa, compondo toda a zona de acesso às Matas Morés e Cantanhês, onde o PAIGC tinha estruturas fortes de protecção e tratamento dos feridos, uma espécie de hospital de campanha subterrâneo, e onde o acesso era quase impossível.

O PAIGC andava sempre em cima desta zona, pois tinham o objectivo de ir ganhando terreno, desde a fronteira, o que já tinham conseguido, de certa forma, e a prova estava nos nossos aquartelamentos e destacamentos desactivados ou abandonados, porque as nossas tropas já tinham atingido o limite da resistência, como Sangonhá, Gadamael Fronteira, Cacoca, Tombombofa, Ganturé, Gadembel.

Gadamael Porto tinha a missão de controlar e defender toda a zona, uma ZA (zona de acção) alargada, que requeria um esforço acrescido, originando um grande desgaste…
Um dos problemas da nossa posição e fragilidade, comum às outras zonas da Guiné, residia no facto de que tudo era perto, tudo se concentrava em área reduzida, os passos que se davam não permitiam a mais pequena distracção ou facilidade, uns metros de progressão poderiam terminar em tragédia, pela surpresa, claro.
Ouvi isto, ainda na metrópole, mas só o confirmei ali, quando comecei a viver essa realidade, sem poder voltar para trás.
Mesmo que pensasse na possibilidade desta alternativa, o pensamento nos homens que tínhamos preparado e ‘treinado’ sobrepunha-se a qualquer alternativa.

Não posso esquecer a criatividade e habilidade do Ferreira, o nosso furriel mecânico e sua equipa, na concepção de peças improvisadas para fazer funcionar as velhas GMC.
Uma das GMC tinha o equipamento mais ou menos completo, mais coisa, menos coisa, e servia de carrinho de choque para fazer andar as outras duas, que não tinham qualquer equipamento, acelerador, travão, embraiagem, limitando-se a uma velocidade engrenada.
Estas GMC eram usadas no transporte dos bens para abastecimento a Guilege, sem as quais não seria possível.
Depois de uns sacos de terra colocados em cima de algumas partes das viaturas, a única forma de reduzir o impacto provocado pelas minas anticarro, lá ia a coluna, na expectativa de missão cumprida, sem grandes estragos… A par dos episódios de guerra, as condições atmosféricas, bem agressivas, eram mais uma dificuldade a vencer e deixavam rasto de destruição, como nos aconteceu.
Trovoadas e chuvas monumentais, aumentavam as dificuldades dos terrenos que, já por si, eram bem ingratos.
Quando a coisa dava para o tornado, então, era esperar que alguma coisa ficasse de pé!

As duas pequenas viaturas blindadas do pelotão Fox ficaram reduzidas a uma só, pois a outra foi destruída por um disparo do canhão sem recuo dos guerrilheiros do PAIGC, aquando do ‘ataque aos arames’ de que lhe falei, de que resultaram baixas para as nossas tropas, mas muitas mais para os guerrilheiros do PAIGC.

Como tudo estava organizado/montado pelos guerrilheiros do PAIGC, mesmo ao cimo do aquartelamento, à saída do arame farpado, sem termos noção do que se tratava, muito menos, do efectivo e arsenal lá montado, foi decidido sair uma Fox, comandada pelo Oliveira Soares, e um pequeno efectivo da nossa companhia, escalado no momento, eu de um lado com dois ou três homens, e o Ponte, comandante do primeiro grupo, com mais dois ou três homens do outro lado, mas logo ‘levámos nos queixos’, uma morteirada de canhão sem recuo, sendo obrigados a parar e a optar por morteirada 60, o mais fácil de manusear, naquelas circunstâncias, já com o condutor morto e o Oliveira Soares ferido.

De noite, as coisas tornam-se ainda mais difíceis…
O resto, foi morteirada 60 e 81, acompanhados de batidas de obus, pois sabíamos que os ‘gajos’ tinham de recuar e retirar para a fronteira.
Na madrugada, constatámos o rasto de sangue bem marcado das baixas dos guerrilheiros do PAIGC, estendendo-se até à fronteira, e capturámos o material que deixaram, como vários carregadores de AK47, vários invólucros de canhão sem recuo, uma Tokarev 7,62 mm (origem soviética).
Ainda guardo fotos deste material, além de um invólucro de canhão sem recuo, fabrico chinês, que resolvi trazer, para fabricar um cinzeiro de pé.

Além disso, encontrámos um guerrilheiro morto, na mata, deixado pelos outros, talvez porque já não conseguiam levar mais mortos e feridos.
Era um chefe de grupo, pela forma como estava equipado, que calculámos ter cerca de dois metros, um pé de dimensões ‘anormais’ e uns roncos (anéis simbólicos) nas mãos.
Claro que ninguém deve mexer, pois fica armadilhado, uma prática corrente de qualquer dos lados.

Nós tínhamos conhecimento das baixas e destruições que causávamos ao PAIGC através da Rádio Libertação da República da Guiné-Conacry.
Era comum ouvirmos o Amílcar Cabral dirigir-se a nós, iniciando com as seguintes expressões:
‘Jovens colonialistas e assassinos de Gadamael Porto,…’

Uns dias menos ansiosos do que outros, uns dias menos atribulados do que outros, o que nos esperava durante os muitos meses que se seguiriam.
A população da Tabanca que tínhamos de proteger e que nos dava um certo apoio logístico, como era o caso das lavadeiras, envolvia algumas etnias como Fula, Tanda, Papel.
As nossas roupas eram lavadas um pouco à ‘porrada’ sobre as pedras carcomidas e agressivas da bolanha, naquela água salgada, resultando em botões partidos e alguns rasgões.
Mas isso nada nos importava, pois queríamos os camuflados lavados, sem aquela lama agarrada e a cheirar mal.

Só a população tinha direito a abrigos subterrâneos, que tínhamos de assegurar.

As entidades importantes da Tabanca eram o Padre, normalmente, muçulmano, o Régulo, ou chefe da Tabanca, e o Cipaio, o polícia da Tabanca.

Eu tive a sorte de ser bem recebido e acolhido na Tabanca, onde me refugiava, muitas vezes, ao anoitecer, participando em serões da família das minhas lavadeiras, a Cira e a prima Cadi, todos sentados no chão, à luz ténue e dissimulada de um pequeno bocado de madeira aceso, com grande esforço para entender o que diziam, pois os dialectos eram muitos, normalmente, cada etnia o seu dialecto - mas lá ia conseguindo, mais coisa, menos coisa.
O crioulo usado nesta zona era um idioma pobre, uma mistura de influências latina, francesa e inglesa, de outros tempos, mas os cabo-verdianos falam um crioulo mais rico, mais aperfeiçoado.
Mas, como tínhamos mais do que uma etnia, o próprio dialecto ou idioma não era igual em todas elas.

Na Guiné-Bissau, além do nosso português, fala-se o crioulo cabo-verdiano, o fulbe, o mandê e o mandinga, embora não usado em todas as etnias, dependendo das influências de vários povos, nas suas movimentações nómadas.
Cada homem grande, caso tivesse património, como galinhas, vacas, porcos, cabritos, pequenas parcelas de terra cultivadas, arroz (bianda), amendoim (mancarra), poderia ter mais do que uma mulher, regime poligâmico.
E não havia descriminação pela idade pois, apesar de velhos, tinham várias mulheres, algumas delas bajudas (raparigas).
Em determinadas zonas, embora eu nunca tenha sabido quais, também se praticava o regime poliândrico, pelo qual uma mulher pode ter vários homens, desde que reúna condições para tal.

Em Gadamael Porto, o património limitava-se a umas galinhas e umas pequenas parcelas de cultura de arroz e amendoim, quando as condições de segurança permitiam.
Cheguei a comer galinha cozinhada com frutos vermelhos da palmeira, tudo envolvido em bianda (arroz cozinhado).
E todos metíamos a mão dentro da meia abóbora seca, puxando e enrolando os bocados na mão, tipo almôndegas, que levávamos à boca.

Não esquecerei o rigor e disciplina impostos na Tabanca, controlados pelo Cipaio.
Por exemplo, uma cena que me deixou marcado, aconteceu com uma bajuda acabada de casar com um homem grande, mas os chamados casamentos forçados, negociados.
Na noite de núpcias, a consumação do casamento era feita na presença de uma mulher grande (mulher casada), com o objectivo de mostrar o pano sujo de sangue.
Depois da cerimónia, a bajuda, agora, mulher grande, resolve escapar-se para os lados da bolanha.
Apanhada pela população e pelo Cipaio, o castigo é brutal, começando com as chicotadas da praxe, continuando com outros castigos de que prefiro não falar…

Também não mais esquecerei a cultura da circuncisão, lá conhecida por fanado.
Tantos miúdos massacrados, cuja operação era feita com uma espécie de machadinha ou catana, em ferro, em cima de um improvisado pequeno cepo de madeira!
As infecções proliferavam e, alguns não resistiam!

"Ouvi falar e li alguns artigos sobre costumes e tradições de povos de diversos locais do planeta, alguns dos quais ainda parados no tempo, segundo a nossa cultura, claro.
Aquilo que o Adolfo acaba de me relatar, apesar do contexto, leva-me a pensar nas organizações humanitárias que angariam voluntários, com o objectivo de desenvolverem iniciativas, nomeadamente, na área da sensibilização e apoio alimentar, saúde, educação.
E nunca será demais, pelo contrário, sabemos que muitas e muitas acções continuarão na expectativa de resultados satisfatórios…"


Pois, mas algumas tradições estão presas a crenças religiosas, fora de tudo o que consideramos de bom senso ou racional, mas passaram séculos e sabe-se lá quantos mais passarão…

Não posso deixar de falar nas dúvidas, suspeições e reticências constantes com que tínhamos de conviver, uma vez que se tratava de uma guerra de informação, subversiva, em que tudo e todos os que nos rodeavam eram, supostamente, suspeitos.
Dizia-se, por exemplo, que o Padre era o maior ‘turra’ que tínhamos dentro daquela pequena comunidade, havendo alguns sinais disso, mesmo…
Por exemplo: sempre que tínhamos flagelações mais prolongadas e agressivas, o Padre nunca estava na Tabanca, tinha arranjado maneira de sair para Bissau, na véspera…

(Continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE DEZEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Guiné 61/74 - P23833: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte IV - Guiné


1. Parte IV da publicação de um excerto do livro "Um Olhar Retrospectivo", de Adolfo Cruz (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796 - Gadamael e Quinhamel, 1970/72), parte que diz respeito à sua vida militar.


IV - Guiné…

Dia 31 de Outubro de 1970, outra data marcante, lá estamos, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, o
nde o velho Carvalho Araújo nos aguardava para o embarque rumo à Guiné.

O agora capitão Assunção e Silva, promovido nessa altura, pôde confirmar a falta de mais dois graduados, o Cunha e o Rosa, nessa altura, já em França… Mas o Neves e o Cruz estavam presentes…

O capitão Assunção e Silva era conhecido, em Lamego, onde tinha dado instrução, por ‘assassino das falinhas mansas’, pelo baixo tom de voz e porque atingiu dois instruendos, durante a instrução, com bala real de G3.

Eu poderia ter pedido adiamento da ida para a Guiné, pois o meu irmão ainda estava em Moçambique, nesta altura, embora por mais dois ou três meses. No entanto, isso significaria mais tempo de serviço militar, para mim, abandonar a companhia já formada e ser mobilizado, novamente, em rendição individual, logo que o meu irmão chegasse.

Cerca do meio-dia, o Carvalho Araújo apita e começa a arrastar-se pelo Tejo, deixando aqueles lenços brancos a esvoaçar e as lágrimas das gentes a correr pelas tristes faces. A navegar, começámos a sentir uma certa instabilidade no navio, bastante de lado, água e lamas pelos corredores e pelos camarotes que utilizávamos, as portas dos corredores arrancadas para passarem a servir de passadeiras, sobre a água e lamas, uma maravilha. E eu que detestava barcos, não pelos barcos, em si, mas pela água, pois não conseguia ver o que estava lá em baixo…

Tudo indicava que não conseguiríamos comer com sossego e isso veio a verificar-se. Além do enjoo que se instalou, os tabuleiros com a comida deslizavam para todo o lado, ao sabor dos balanços do navio. Nos porões, onde era acondicionado o gado dos Açores, durante anos, os soldados tentavam descansar, com um enorme esforço para se alhearem daqueles odores impregnados, sem alternativa.

Ainda não tínhamos completado um dia de viagem, é-me entregue um telegrama. O sentido apurado de mãe e o facto de ter desconfiado da minha despedida, diferente do habitual, no seu dia de aniversário, levou-a a telefonar para o Campo Militar de Santa Margarida e correr tudo até lhe ser dito que eu tinha partido para a Guiné, já a navegar, no Carvalho Araújo! Aquele telegrama da minha mãe deixou-me um pouco triste mas, ao mesmo tempo, cheio de força para enfrentar a aventura que me esperava.

Um dia de felicidade, quando fizemos a escala em Cabo Verde, ilha de S. Vicente, cidade do Mindelo, onde estivemos cerca de doze horas, para abastecer o navio.

Antes de acostarmos ao cais, os miúdos mergulhavam nas águas transparentes daquele mar livre de poluição, para apanharem as moedas com a boca. Mas a felicidade acabou por ser aparente, durante aquelas horas pois, apesar de termos tido a possibilidade de comer bem e relaxar um pouco, o cenário encontrado deixou-nos infelizes, frustrados, revoltados.

Entrámos na cidade - aquilo era uma cidade?! - E procurámos os correios e um sítio onde houvesse jornais ou qualquer coisa que nos desse notícias. Estou nos correios, a preparar um telegrama para a Metrópole, quando sinto alguém a mexer-me nos pés: era um miúdo dos seus quinze anos a limpar-me os sapatos e com material para engraxar.

Disse-lhe que não precisava, pois havia muito pó e iria sujar-me, logo a seguir. Logo me respondeu que precisava de ajuda, que tinha o quinto ano, mas não havia trabalho. Dei-lhe uns escudos, que trocaria por pesos, a moeda local.

A casa do governador, uma moradia de traça tropical, um liceu novo e um hotel novo, tudo o que sobressaía daquele mundo de casinhas de madeira, algumas transformadas em cafés, com esplanadas, e muito, muito pó castanho avermelhado pelo ar. Ficção, pensava eu, mas as cabras e vacas passeavam pelas ruas e comiam papel de jornal!

O pior deste cenário triste era a prostituição, como é costume dizer-se, porta sim, porta sim, ao longo daquelas ruelas de terra e pó castanho, sinal da necessidade instalada.

Hora do almoço e sou aconselhado a comer no hotel. Lagosta enorme, Pesos 70$00 (Esc 70$00 = € 0,35). Garrafa de Casal Garcia, Pesos 120$00 (Esc 120$00 = € 0,60). Claro que os produtos atingem preços altos, mais por força do custo do transporte.

Cenários que foram mal reconstruídos e continuaram mal tratados, podendo ter tido outro destino, principalmente, no acompanhamento dos mais pequenos, aqueles que mais sofrem, pois têm de ajudar os pais, pobres e sem horizonte. 
Aliás, tivemos esse exemplo por cá, em certas zonas do país, como já falámos.

Viagem retomada, restavam-nos as cartas, lerpa, sete e meio e montinho, principalmente, com muito dinheiro a rolar na nossa frente. Final do dia, já noite, notámos a falta do nosso enfermeiro, o Vítor Coelho. De um lado para o outro, corremos tudo e nada dele. Continuámos, até que, num camarote, um rabo e umas pernas saíam de uma janelinha redonda, constatando que o resto do corpo estava do lado de fora do navio.

Era o Vítor Coelho, debruçado para o lado de fora, com um cabo de vassoura na mão, a que tinha atado uma faca de mato, em ângulo recto, a tentar apanhar um peixe voador. Só o Vítor Coelho poderia lembrar-se disto!…

Algum tempo depois, passámos pela capital, a cidade da Praia, na ilha de Santiago, com pena de não ter sido possível conhecer, pois era a parte mais avançada do arquipélago. Limitámo-nos a apreciar, de longe…

No decorrer da viagem, fomos dando algum conforto moral aos soldados, pois eram os que mais mereciam, dadas as circunstâncias em que viajavam. Comer, uma grande dificuldade, pois tudo andava às voltas…

E a viagem continuava longa, como nos tinham dito. O que não nos disseram foi que o navio andava de lado, com água nos corredores e camarotes pelo meio da perna, lama, probabilidade de incêndio, etc.

E dez dias passaram, até que chegámos ao porto de Bissau. Não nos deixaram desembarcar, claro, pois o anoitecer estava perto e tornava-se perigoso.

Sabe uma coisa, Daniel? Tenho pena de não ter preparado uma garrafa de vidro, com uma mensagem dentro, e atirá-la borda fora, lá no alto mar, só para ver onde iria ter e se teria resposta, como tantos fizeram…

Porto de Bissau, oito da manhã, toca a sair do navio e entrar nas viaturas militares que ali nos aguardavam, rumo ao Depósito de Adidos, em Brá, perto do aeroporto de Bissau.
Não poderia imaginar que já éramos conhecidos ou falados, mas logo nos disseram:
- Ah, são a 2796, a que vai para a colónia penal da Guiné?!

Como acabávamos de chegar, logo, designados ‘periquitos’, eu pensei logo que poderia ser uma espécie de praxe, para nos amedrontar. Organizámos o ‘acampamento’, ajudando os nossos homens na distribuição dos espaços e das tendas de campanha, após o que nos deram uma refeição rápida, na cantina do Depósito de Adidos.

Para os graduados, tendas individuais, um colchão pneumático, já com um ou outro gomo rasgado, mas era melhor do que nada. Silêncio, luzes de presença e segurança, ali estávamos a tentar descansar, já sentindo um certo cheiro a pó africano.

De repente, sinto qualquer coisa nas traseiras da tenda, que davam para a vedação de arame farpado, um som que correspondia a corte na lona. Mesmo na penumbra, vejo uma lâmina a entrar e a sair, lentamente, com cuidado, a cortar a lona, junto ao chão de terra castanha com tom avermelhado.

Consigo resvalar para o lado contrário, a saída da tenda, e rastejar de faca de mato na mão, a única coisa de defesa que tinha, pois ainda não tínhamos recebido as armas. Quando chego ao lado de trás, só vejo um vulto, africano, a correr em direcção ao arame farpado, dando um salto de peixe na primeira linha e novo salto na segunda linha, desaparecendo no escuro…

Logo chamei a atenção do sargento Moreira, no sentido de providenciar a distribuição de armas para o dia seguinte, logo de manhã, pois não se sabia que mais nos estava reservado, mesmo dentro do Depósito de Adidos.

Entretanto, tínhamos de aguardar disponibilidade de LDG (lancha de desembarque grande), com transbordo para LDM’s (lancha de desembarque média) e para LDP’s (lancha de desembarque pequena) ou batelões, caso apanhássemos a maré vazia, um grande problema.

O Daniel está a ver que lanchas são estas, as tais utilizadas no desembarque das forças aliadas, EUA, Inglaterra, França Livre e aliados, na Normandia, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1944, considerada a maior invasão marítima da história, episódio que quase era dos nossos tempos. Parece que partiram todos de vários portos de Inglaterra, atravessaram o Canal da Mancha e invadiram a França ocupada pelos alemães, a Normandia.

Como eu ia dizendo, enquanto esperávamos pela hora da partida para o Sul, dava para umas visitas ali perto, Engenharia, Força Aérea, Comandos e à cidade, onde podíamos comer e beber umas coisas melhores do que no quartel, enquanto não nos avisavam da hora de partida para Gadamael Porto.

Na Força Aérea, encontrei um amigo da Figueira da Foz, o Flórido, que estava a acabar a comissão, logo, a preparar o regresso à Metrópole. Ficou contente por me ver e, ao mesmo tempo, preocupado comigo, quando lhe respondi que ia para Gadamael Porto, e isso respondeu à minha dúvida sobre o que nos tinham dito quando chegámos, ‘colónia penal…’.

Na cidade, além de tomarmos contacto com alguns locais que nos diziam interessantes e úteis, sinceramente, nada de jeito, tivemos a primeira noção de realidades estranhas, como produtos de consumo corrente com preços distintos, conforme procedentes da Metrópole ou importados, ou produtos inexistentes, sem justificação, para nós. Por exemplo, não havia água de Castelo, sumos e refrigerantes, logo, nacionais.

Havia água Perrier, coca-cola, logo, estrangeiras. Whisky, Gin, Licores de Whisky, por exemplo, imensas marcas, tudo original, importado - mais baratos do que qualquer bebida idêntica na Metrópole. Na esplanada de um café, um cálice balão de Whisky, Pesos 2,50 e uma água pequena Perrier, Pesos 7,50.

Os armazéns e retalho, principalmente, propriedade de portugueses, embora alguns de propriedade libanesa, pela tradição de comércio instalado, que era feito entre os países africanos, passando pela Guiné Conacry, atravessando a Guiné Bissau e seguindo pelo Senegal.

Vasta gama de equipamentos de alta-fidelidade e fotografia, pelo que adquiri um leitor gravador Hitachi, de boa qualidade, e uma máquina fotográfica Olympus.

Ainda me recordo de algumas casas, como a Casa Ultramarina, ligada ao BNU, a Casa Gouveia, ligada ao grupo CUF, a Casa António Pinto, conhecida por Pintosinho.

E fomos sabendo de algumas das etnias indígenas que encontraríamos pela Guiné, como Bailundos, Nalús, Sossos, Manjacos, Futa-Fulas, Fulas, Papeis, Balantas, Mandingas, Beafadas, Bijagós, Mancanhas, Felupes, Banhus, Tandas… Cada etnia tinha a sua própria cultura e estou a lembrar-me dos Manjacos que se distinguiam pelos panos que produziam em teares artesanais, os panos coloridos muito apreciados, as danças e sons muito característicos, só a título de exemplo.

E, apesar da grande confidencialidade, conseguimos um ’cheirinho’ sobre a razão da demora em partirmos para Gadamael Porto: qualquer coisa relacionada com as tais lanchas, ao mesmo tempo que davam a entender qualquer coisa de operações em curso, enfim, coisas que nada nos diziam, mas tinham todo o sentido, pelo que veio, a seguir…


(Continua)
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Nota do editor

Poste anterior de 29 de Novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23827: "Um Olhar Retrospectivo", autobiografia de Adolfo Cruz, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2796. Excerto da pág. 407 à 483 - Parte III - Abrantes e Santa Margarida; três dias de detenção e, o Rosa e o Cunha

domingo, 30 de outubro de 2022

Guiné 61/74 - P23749: (Ex)citações (419): O termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu (Cherno Baldé)

1. Comentário de Chermo Baldé, nosso colaborador permanente, assessor para as questões etnolinguísticas, e que vive em Bissau, ao poste P23736  (*):

Caros amigos,
Este testemunho de um guerrilheiro que participou na batalha de Como ajuda-nos a compreender um pouco como as coisas se passaram, visto do outro lado, mesmo se ainda continua coberto com uma pequena áurea da mitologia de glorificação das suas acções com que o PAIGC quis cobrir estes acontecimentos do início da guerra na Guiné que foi, de facto, nada mais nada menos que uma das maiores operações militares da chamada guerra do Ultramar português.

De certa forma está pequena crónica simboliza uma justa e sentida homenagem ao enorme sacrifício consentido pelo povo Balanta (Brassa) que, de forma insensata foi quase que empurrada para os braços do PAIGC pelo comportamento pouco prudente das chefias militares portuguesas presentes no terreno nos primeiros anos da guerra aqui contados pelo veterano CMD Amadú Bailo Djaló no seu livro aquando da sua passagem por Bedanda que não souberam gerir da melhor forma os dilemas e as relutâncias em que viviam estas comunidades, apanhadas entre dois fogos.

No mesmo período, no Norte e Nordeste, também acontecia a mesma coisa, com a diferença de que, também os guerrilheiros, perante a recusa de adesão da população à sua causa, sobretudo do povo Fula, estando posicionados maioritariamente do lado português, eram vítimas de actos semelhantes, quando não era a tropa a roubar e matar o gado encontrado no mato.

Quanto ao termo "Brassa" como os Balantas se auto-denominam, na verdade, trata-se da denominação histórica de uma grande área geográfica que correspondia à província mandinga de Braço, B'raço ou Brassu. Ao império mandinga de Kaabu ou Gabú correspondiam duas províncias ou Farinados governados por um Farim (donde vem a designação da cidade de mesmo nome no rio Cacheu): A de Gabú (Farin-Kabu) e a de (Farin-B'rassu). Dito isso, não é de estranhar que hajam outros povos que viviam na mesma área geográfica também se considerarem como sendo de "B'rassu" ou, como dizem os nossos irmãos Balanta "Brassa". Assim, durante muito tempo, no império mandinga de Gabú, os residentes da província de Gabú eram os chamados "Kaabunkês" e da outra província de "B'rassunkês", termo que assim designava não um grupo étnico em si, mas todos os grupos ali residentes sem excepção, de tal maneira que dentro dos grandes grupos étnicos existiam estas divisões consagradas inclusive numa certa forma de falar (sotaque) que se distinguia claramente da outra província (línguas regionais). No caso do grupo Fula essa distinção ainda hoje é vivida em forma gracejos. Portanto, para dizer aos nossos irmãos Balanta, também nós somos "B'rassa" no sentido geográfico e étno-linguistico.

E eu, toda a nossa família assim como o regulado de Sancorla que constitui a herança de muitas gerações dos nossos antepassados que conviveram e trabalharam sob a dominação imperial dos Farinados mandingas do histórico Braço ou B'rassu, território que se estendia desde o rio Cacheu até às margens do rio Gâmbia, são B'rassunkês ou se quiserem "Brassas".

O nome do meu pai é Tambá que ele herdou do passado e que hoje, na Guiné-Bissau, é reconhecido como um nome tipicamente Balanta, mas que, na verdade, é de raízes mais profundas ou seja do grupo Banhum (em francês Baynunk) que, antes dos mandingas, dominava toda esta área geográfica e grande parte do espaço territorial entre a actual GBissau, a região de Casamansa no Senegal e a Gâmbia.

Tudo isso para dizer que na África Ocidental, a mestiçagem era uma prática corrente e tudo girava a volta do poder e de quem a controlava em benefício de todas as comunidades. No grande Braço ou B'rassu conviviam diferentes comunidades. A par dos mandingas que, na altura, detinham o poder, viviam Banhuns, Padjadincas, Kocolis, Balantas, Biafadas, Fulas, entre outros que, necessariamente, interagiam em diferentes domínios, inclusive no das relações matrimoniais e de consanguinidade.

Convinha a eles e a todos nós guineenses, que pesquisássemos mais ao fundo e assim trazer ao de cima os aspectos que nos uniam no passado e desta forma melhorarmos a nossa convivência actual a fim de construirmos um país onde todos possam viver e trabalhar em paz em vez de criarmos guetos tribais que perpetuam as nossas diferenças e as nossas querelas nos períodos mais recentes.

A este propósito e nesta mesma senda, propunha a mudança da designação do Blogue "Intelectuais Balantas na diáspora..." Para Blogue dos "Intelectuais Guineenses na diáspora..." que, no fundo, é a mesma coisa, mas seria mais abrangente, podendo incluir outras visões e ideários sobre o mesmo país e outras verdades que, também, não deixam de o ser.

Bem hajam
Cherno Baldé


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A quem se interessar uma leitura ou pesquisa mais profunda e bem elaborada sobre este assunto da mestiçagem no espaço da Senegâmbia, pode procurar as obras do investigador guineense de Conacry e especialista sobre o império mandinga de Kaabu (Gabau), Djibril Tamsir Niane de quem tenho várias citações e referências na monografia que estou a preparar, há bastane tempo, sobre a minha terra (Fajonquito), donde vos extraio este pequeno excerto para dar uma amostra:

ORIGEM E SIGNIFICADO DO NOME SANCORLA

"(...) Tudo leva a pensar que o nome Sancorla (da grafia portuguesa) vem da palavra Soncoya ou Sonkoya que significa terra dos Sonco ou Sonko. Segundo Djibril Tamsir Niane (Guiné-Concri), investigador e especialista do império mandinga de Gabu, na origem, Sancorla podia ser Sonkolla, quer dizer, terra ou território pertencente à dinastia dos “Sonco/Sonko”, príncipes de origem diversa mas assimilados à cultura mandinga que governavam esta Província mestiça de Birassu/ B’rassu (para mandingas e fulas), Brassá/Brazza (para os balantas) no período áureo do império de Gabú ou Káabu. Ainda, segundo Djibril Tamsir Niane a Provincia de Sonkolla era o domínio do clã Sonko, originários de uma miscigenação de autóctones Banhuns mandiguizados com grupos de fulas pastores vindos de Mali (Macina) e de Boundu (Senegal) que, em ligação com as províncias mandingas iniciais de Gabu - (províncias Nanthiôs de Pathiana/Propana, Djimara e Sama/Manna), formaram as províncias designadas pelo termo mandinga de Kôring (ou seja de origem não mandinga) de Birassu/Brassu (Farin-Ba) de que a região de Sonkolla seria parte integrante, se não mesmo o seu centro. Ainda segundo Tamsir Niane (citando Sekéné Mody Cissoko), o nome de “Farinsangul” na historiografia portuguesa (reinado de D. Joao I), seria a deformação de Farin-Sonkolla, em referência ao poderoso governador de Soncolla em Berécolon.

No séc. XV, os chefes (Farins) de Sonkolla, província habitada por uma população mista e belicosa, se extenderam a Oeste e fundaram muitas aldeias entre as quais Salikénie (situado na fronteira entre o Sénégal e a Guiné-Bissau perto de Cambaju) , Solikoo (em português Solucocum, também na linha da fronteira entre Cambaju e Sitatô), Bantadjam (Bantandjan) e Kagnamina (Canhámina, actual capital do Régulado de Sancorla).**

A capital da província, Bérécolong (Berecolón), situada a norte da actual vila de Fajonquito, onde residiam os chefes da província (Farim) e que desempenhavam um papel preponderante nas relações entre o poder central do império de Mali e o reino de Portugal em meados dos séc. XIV/XV, é uma localidade tão antiga como a velha Kansala, capital do império mandinga de Kaabu, diz-nos Tamsir Niane."


Com um braço amigo,
Cherno Baldé

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(*) - Vd poste de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23736: Casos: a verdade sobre... (31): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte II: Visto do lado de lá

Último poste da série de 25 DE OUTUBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23738: (Ex)citações (418): Os Consulados da Guiné, a Preparação Militar e a tarimba dos "velhos" (Victor Costa, ex-Fur Mil, At Inf, CCAÇ 4541/72, Safim, 1974)