quarta-feira, 8 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24128: S(C)em Comentários (6): Penso que Salazar sabia que não era com homens e armas que ganhávamos aquela guerra (António Rosinha)


Angola > 1961 > Desfile de tropas > O Rosinha, furriel miliciano aparece aqui em primeiro plano, assinalado com um X. Repare-se no tipo de armamento, obsoleto, das NT: pistola-metralhadora FBP, para os graduados; espingarda Mauser, para as praças, capacete de aço para todos; farda: caqui amarelo e polainas, como na Flandres...

Foto (e legenda): © António Rosinha (2006). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Comentário do António Rosinha ao poste P24119 (*):

Antº Rosinha foi fur mil em Angola, 
1961/62; e depois topógrafo da TECNIL, 
na Guiné-Bissau,  em 1979/93...
Aqui, em Pombal, em 2007,
 no II Encontro Nacional da
Tabanca Grande. 
Foto: LG (2007)
Se começou tudo numa desordem total (1961), e sabemos que o fim foi um-deus-dará, como é que não devia ser um eterno improviso durante toda a guerra?

Nunca ninguém viu uma secção abandonada, sem Companhia, quer militarmente quer administrativamente?

Num posto isolado durante alguns meses, 
onde havia apenas dois pequenos comerciantes daqueles do mato, nem chefe de posto havia?!... Era e será hoje, esse lugar um autêntico cu de judas.

Após alguns meses abandonados, ou 
esquecidos, será este o melhor termo, esses oito ou nove rapazes, uns brancos outros mulatos, outros assim assim, em finais de 1961 em Angola no Quanza Norte, já não tinham farda nem botas ou sapatos militares em condições, remediavam-se com alguma roupa civil, sem qualquer transporte nem rádio, incomunicáveis portanto.

Tinham mausers, uma metralhadora e um morteiro e respectivas munições, estas com relativa fartura.

A alimentação, o furriel e um dos cabos (havia mais que um cabo) assinavam uns vales aos dois comerciantes que ali havia, e lá se resolveria um dia, esses vales era uma tradição angolana antes da guerra, não era muito estranho.

O ambiente psicológico é que já era explosivo, ao ponto de o furriel apanhar uma boleia de um camionista e foi bater à porta da companhia que os abandonou, mais de 40 Km,  e requerer um médico.

Conheço esta história porque fui eu substituir esse furriel que, de facto, esse rapaz estava mesmo a "bater válvulas" como se dizia a quem precisava de psiquiatra.

Tive sorte de não ter de pegar em armas, ao contrário do que aqueles rapazes tinham sofrido nos meses anteriores, antes de serem esquecidos naquele lugar, e passados uns 3 meses por meios que seria um excesso relatar aqui, fomos passar o Natal a Luanda com tudo resolvido e mais ou menos prontos para esquecer.

Um daqueles cabos ainda antes do Covid reuníamos em almoço anual do Regimento de Luanda e nos lembramos do barril de 100 litros que deixámos em duas asnas, já meio vazio no hall de entrada da casa abandonada de comerciante, que nos servia de quartel.

Tive sorte nesta guerra, sem tiros, só na caça e só por obrigação, que detesto caçar.

Por mim ainda havia dinossauros e não se tinha colonizado ninguém, nem os romanos nos tinham colonizado.

Penso que Salazar sabia que não era com homens e armas que ganhávamos aquela guerra.(**)

5 de março de 2023 às 23:57 

8 comentários:

antónio graça de abreu disse...

Por acaso,em Angola 1974 estávamos quase a ganhar militarmente aquela guerra. O que não acontecia na Guiné e Moçambique, onde a solução da guerra de guerrilha era de natureza política, com base do que acontecia no terreno. Certo é que no meio de tanta incompetência, o desenrascanço, à portuguesa, às vezes funcionava.

Abraço,

António Graça de Abreu

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tirando a "viagem marítima para a Índia", cuja preparação e execução terá levado um século, e seguiu um plano meticuloso e empiricamente fundamentado, a nossa história milenar é muito isso, "10% de inspiração e 90% de transpiração"... E a "companhia de caçadores", com os seus Grupos de Combate, em vez dos clássicos pelotões, é também um exemplo da nossa capacidade de "adaptação" às circunstâncias, ou até de mimetismo...

Como já aqui tenho escrito, para além de valente soldado, na verdade, o tuga, o portuga, o Zé , o Zé Povo em armas também foi engenhocas, carpinteiro, marceneiro, trolha, caboqueiro, picheleiro, funileiro, canalisador, bate-chapas, desempanador, topógrafo, construtor de pontes, caçador, pescador, ama-seca, parteiro, professor,sacristão, missionário, enfermeiro, carteiro, cronista, descascador de batatas, auxiliar de cozinheiro, hortelão, arrebenta-minas, picador, cangalheiro, animador cultural, mediador cultural, psicólogo, conselheiro, juiz de paz, casamenteiro, e sei lá que mais... E o nosso saudoso "alfero Cabral" que Deus já lá tem, até foi, imaginem!, "consertador de catotas"...

O Zé Povo no TO da Guiné foi mais do que o três em um... Foi o homem dos sete oficios... O "desenrascanço" fazia parte do seu ADN e a verdade é que conseguiu transmitir esse gene aos seus filhos e netos espalhados por esse mundo de Deus e do Diabo (que ninguém, se ofenda, que isto é apenas uma metáfora, uma figura de estilo literário!)...

E até o Rosinha conseguiu dar o dito por não dito, e acabar por aceitar o meu/nosso convite para se juntar ao Blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné... Reproduzo aqui um seu mail de
2 de Novembro de 2006:

(...) Luís Graça, obrigado pelo convite, mas não vou poder aceitar, com muita pena minha, ser integrado numa tertúlia com a envergadura dessa, em termos históricos, humanos e até mesmo políticos, e que com a tua coragem deve continuar como até aqui...Vou indicar o principal motivo porque não devo pertencer ao vosso grupo: a qualidade desse espaço é tal que cada vez haverá mais ex-militares a escrever, e além de fazerem a verdadeira história descomprimem.

Porque muito do stress que existe é motivado também por se do ouvir em jornais mais repetições tipo Wiriamu, que até parece que foi a generalidade (...). Eu próprio tive um irmão que, depois de viver num certo ambiente politico (Arsenal do Alfeite), achava que eu, que estive lá, seria naturalmente um sanguinário...Quando o convenci que estava enganado, ficou de tal maneira revoltado que ele é que ficou com stress. (Não é força de expressão).(...)

Agora, sobre factos ou histórias de gente e lugares da Guine posso, sem compromisso da vossa parte, dar a colaboração que possa. Um abraço e coragem. (...)
)

Valdemar Silva disse...

O Antº. Rosinha tem pontos de vista interessantes, até, por vezes, muito interessantes.
Claro que Angola nada tem de comparações com a Guiné. Em Angola, julgo, não havia tropa misturada com a população dentro do mesmo espaço das tabancas/aldeias.
Quando Salazar atira com o 'para Angola e em força' estava a tentar neutralizar qualquer acção a partir dos brancos residentes e um provável "grito do Ipiranga".
Ele também receou com o apoio americano à UPA começar a criar-se uma divisão de Angola tal como estava delimitada Província Ultramarina.
Com o andar, prolongado, do tempo da guerra em Angola, anulação da UPA, concentração/limitação da zona de acção do MPLA e da ajuda da UNITA, parecia que a guerra estava controlada e o mapa inalterado. Seria assim?
O meu compadre, que até tinha uma bandeira da UPA, comerciante na zona fronteiriça com o Congo era de opinião que se a guerra se prolongasse mais tempo, a UPA e a zona da província do Zaire e Uige se tornariam independentes apoiados pelos USA.
Posteriormente, após o 25 de Abril de 1974, com a descolonização a decorrer não fora a guerra civil do MPLA, com ajuda da URSS e Cuba, contra UPA e UNITA principalmente, teríamos agora duas ou três Angolas.
Deve-se ao MPLA com o "aniquilamento" da UNITA, Angola ser o país com as fronteiras do Capelo/Ivens, que hoje conhecemos.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

"Posteriormente, após o 25 de Abril de 1974, com a descolonização a decorrer não fora a guerra civil do MPLA, com ajuda da URSS e Cuba, contra UPA e UNITA principalmente, teríamos agora duas ou três Angolas"....

Valdemar, acrescenta a África do Sul do "apartheid"...

Mas, é verdade, tal como o Brasil em 1821, Angola não foi partida e repartida em 1975... Os angolanos sabem disso, embora o preço, pago na chamada "segunda guerra da independência", tenha sido brutal... Será que um dia os mortos se levantam para pedir a indemnizaçáo devida ?...

A nossa insensatez (!)... Não conseguimos abrir um período de transição pacífica (de 10, 15, 20 anos ) para estes países e povos tomarem os seus destinos nas suas mãos... Quantas tragédias poderíamos ter evitado, a começar pela maldita guerra colonial?!...

Fernando Ribeiro disse...

Alguns anos depois da independência de Angola, ouvi um alto dirigente do MPLA dizer que o governo angolano deveria agradecer às Forças Armadas Portuguesas o facto de existir uma consciência nacional em Angola, em vez de uma pertença tribal somente. Explicou ele que, no serviço militar prestado nas fileiras das Forças Armadas Portuguesas, foram postos em contacto angolanos das mais diversas etnias e origens geográficas, o que os levou a descobrir que o que os unia era mais do que o que os separava.

Em Angola não havia "pelotões nativos", "comandos africanos" ou "companhias indígenas", cujos membros pertenceriam, na sua maioria ou mesmo na sua totalidade, à etnia A ou à etnia B. Havia apenas militares regulares, que eram jovens como nós, cumpriam o serviço militar obrigatório como nós e no fim passavam à "peluda" como nós. Assim como nas companhias e pelotões metropolitanos eram indiferenciadamente incorporados minhotos, alentejanos e transmontanos, também nas companhias e pelotões angolanos eram incorporados, sem distinção, ovimbundos, bacongos e quiocos. Nos últimos anos da guerra, esta mistura foi levada ainda mais longe, com a incorporação de militares angolanos em unidades e subunidades metropolitanas, que saíam de cá incompletas. Foi o que se passou com o meu batalhão, que teve alfacinhas, tripeiros e beirões misturados com luandenses, malanjinos e beguelenses. Tudo misturado. O resultado foi francamente positivo, na minha opinião.


Fernando de Sousa Ribeiro, ex-alferes miliciano da C.Caç. 3535, B.Caç. 3880

Valdemar Silva disse...

Caro Fernando Ribeiro.
Não há comparação possível, a não ser o barulho da guerra, com a prestação do serviço militar na Guiné e em Angola.
Os mais jovens soldados da minha CART11, soldados fulas do recrutamento local, os mais jovens e mais velhos, não teriam outra coisa que fazer a não ser estar na tropa.
Maioritariamente eram agricultores, ou com actividades ligadas ao dia a dia das suas tabancas.
As suas tabancas, "tabanca quartel", estavam cercadas de arame farpado com tropa, ou tinham desaparecido, e a agricultura estava reduzida ao cultivo da mancarra para os homens grandes, e nas localidades como Nova Lamego ou Bafatá os empregos estavam ligados ao comércio com a tropa e não teriam lugar para eles.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz
Estou a generalizar em relação ao sector Leste que eu conheci.
O Casimiro esteve em Paúnca quatro anos depois de eu ter de lá saído, e ainda por lá andavam muitos soldados da minha Companhia.
Concluindo, os soldados guineenses seria sempre soldados enquanto durasse a guerra, era o seu emprego.

Fernando Ribeiro disse...

Caro Valdemar Queiroz,

As diferenças são realmente gritantes. Os nossos militares angolanos não eram habitantes locais, de maneira nenhuma, porque estes estavam todos na mata com a guerrilha. Os nossos militares angolanos estavam a centenas de quilómetros de casa, nalguns casos a mais de mil quilómetros.

Os nossos militares angolanos não usavam a palavra "comissão", mas era uma verdadeira comissão militar aquilo que eles estavam a cumprir, porque só podiam estar junto das suas famílias quando iam gozar as suas férias anuais ou depois de terminarem o serviço militar. Esta situação contribuía para aproximá-los ainda mais dos seus camaradas metropolitanos. Eles não se queixavam, porque sabiam desde o início que iria ser assim, mas não conseguiam disfarçar as saudades que sentiam dos seus pais, das suas mães e das suas namoradas. Tal como os metropolitanos.

Os nossos camaradas angolanos tinham tido as mais diversas profissões na vida civil. Muitos deles eram camponeses, mas muitos outros eram operários da construção civil, pescadores ou até empregados camarários que varriam as ruas e faziam a recolha do lixo. Os primeiros-cabos, que tinham mais estudos, eram maioritariamente empregados de escritório ou então contínuos em bancos. Seja como for, uma coisa é certa: fossem eles camponeses ou fossem citadinos, eram todos uma malta fenomenalmente estupenda!

Valdemar Silva disse...

Eu queria dizer que os jovens e os meus velhos soldados fulas da CART11 eram quase todos camponeses e não agricultores.

Valdemar Queiroz