segunda-feira, 6 de março de 2023

Guiné 61/74 - P24123: Notas de leitura (1561): Curiosidades guineenses no fundo do baú (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Pediram-me para andar a esgravatar na biblioteca de um grande amigo recentemente falecido e lá encontrei reportagens que desconhecia, bem como uma publicação do FAOJ dedicada a Amílcar Cabral, também inteiramente desconhecida para mim, aqui fica o seu registo. Descobri igualmente um livro de Francisco Valoura, já aqui referenciado, bem como "Guinéus", de Alexandre Barbosa, que estou a reler com satisfação, o que se volta a ler, quando é impressivo e vivificante, traz aspetos novos, dar-vos-ei conta desta saborosa agenda de recordações da literatura colonial guineense.

Um abraço do
Mário



Curiosidades guineenses no fundo do baú

Mário Beja Santos

Tendo falecido um dos meus mais queridos amigos, os filhos pediram-me que os ajudasse a verificar as existências entre os seus milhares de livros, pastas com documentos, inumeráveis dossiês de recortes, pilhas de revistas, coletâneas de documentos pessoais que se prendiam com os seus vastíssimos interesses que iam da genealogia e heráldica ao movimento surrealista português, e que sugerisse os mais apropriados destinos. Dessa safra dou conta de algumas curiosidades guineenses que podem merecer a vossa atenção.
Primeiro, um número da "Flama" de junho de 1974, o artigo intitulado “Guiné-Bissau à procura do cessar-fogo e da paz”, assinado pelo jornalista Fernando Cascais. O autor dá conta das conversações iniciadas em Londres, em 25 de maio, e aproveita o momento para fazer uma síntese da história da luta armada e do papel do PAIGC. O regresso à democracia suscitara o empenho das maiores instâncias internacionais em obter-se a paz e abrir-se as portas à independência das antigas colónias. Um dirigente do PAIGC relatava mesmo que fazia todo o sentido as negociações, começar-se por um firme cessar-fogo e abrir conversações para as exigências do PAIGC, designadamente: - o reconhecimento da República da Guiné-Bissau e do direito do nosso povo, nas ilhas de Cabo Verde, à autodeterminação e à independência; - o reconhecimento desse direito aos povos das outras colónias portuguesas.

O histórico da luta da libertação da Guiné inclui a declaração unilateral de independência, o assassinato de Amílcar Cabral não podia deixar de ser mencionado, nesta fase ainda se batia muito a tecla de que entre os conspiradores havia guineenses que eram agentes da PIDE. O artigo termina com longuíssimas citações da mensagem para o ano de 1973 de Amílcar Cabral.
Da revista "Notícia", publicada em Luanda e Lisboa, número de 24 de maio de 1969, dá-se à estampa uma reportagem intitulada "O Paraíso Perdido", assinam António Gonçalves e Joaquim Cabral. O fascínio da viagem começa nos Bijagós, cantam-se as belezas naturais e o seu espantoso folclore. Os jornalistas vão assistir às danças Bijagós, e escreve-se:
“A luta é muito semelhante à greco-romana. A finalidade é derrubar o adversário. Apenas isso. Sem ser necessário o assentamento de espáduas. É preciso conjugar equilíbrio com agilidade e força. As pernas bem abertas, os corpos fletidos em frente. Com as mãos, os lutadores tentam agarrar uma das pernas do adversário ou rodear-lhe as costas para as forçarem a dobrar-se e tombar. Esta técnica é mais evidente nos Balantas, como iremos ver mais tarde. Mas tanto nos Papéis como nos Balantas o sentido desportivo é perfeito. Ao ser derrubado um dos contendores, a luta termina. Sem um gesto de enfado, sem a mais simples exteriorização de jactância. Não há humilhação nem glória.
Estávamos em Nhacra porque íamos almoçar em casa de Carlota e porque o administrador de Mansoa nos prometera uma batucada de Balantas. A tantã propaga-se e, aos poucos, timidamente, vai surgindo gente. Não resistem à curiosidade, a chamada atrai-os. Trazem consigo as suas latas, adornos estranhos e barulhentos. Fixam-nos às pernas e aos braços. Começam uma dança que se desenvolve em círculos. Aumenta o número das raparigas e das mulheres com os filhos às costas. A dança ganha aspeto alucinante. Cada um que chega é mais ágil. O barulho é ensurdecedor. Os guizos e a as latas contrastam com o som cavo dos tambores. O ritmo da dança é articulado, com paragens súbitas. Todos se libertam da presença estranha que os admira. Entregam-se ao frenesim dos saltos”
.

Os repórteres não deixam de comentar a diversidade étnica, porventura mal-informados falam em 14. Referem o fanado e os deuses Nalus. E regressam a Luanda.

Em 1976, o FAOJ – Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis, do Ministério da Educação, na coleção Juventude e Cultura, N.º 8, é dedicada uma coletânea de intervenções a Amílcar Cabral. Abre a publicação com o papel da cultura na luta pela independência, transcreve-se um texto:
“A cultura é o próprio fundamento do movimento de libertação e que apenas podem mobilizar-se, organizar-se e lutar as sociedades que preservam a sua cultura. Esta, quaisquer que sejam as caraterísticas ideológicas ou idealísticas da sua expressão, é o elemento essencial do processo histórico. É nela que reside a capacidade de elaborar ou de fecundar os elementos que asseguram a continuidade da História e determinam, ao mesmo tempo, as possibilidades do progresso ou de regressão de uma sociedade (…) Tanto os dirigentes do movimento, na maioria originários dos centros urbanos (pequena burguesia e trabalhadores assalariados), como as massas populares (cuja esmagadora maioria é constituída por camponeses) melhoram o seu nível cultural: adquirem um maior conhecimento das realidades do país, libertam-se dos complexos e dos preconceitos de classe, ultrapassam os limites do seu universo, destroem as barreiras étnicas, consolidam a sua consciência política, integram-se mais profundamente no seu país e no mundo. Qualquer que seja a sua forma, sabe-se que a luta exige a mobilização e a organização de uma maioria importante da população, a unidade política e moral das diversas categorias sociais, a liquidação progressiva dos vestígios da mentalidade tribal e cabal, a recusa das regras e dos tabús sociais e religiosos incompatíveis com o caráter racional e nacional do movimento libertador”.

A coletânea prossegue com o texto escrito de Amílcar Cabral apresentado numa reunião da UNESCO, em julho de 1972, e não deixa de observar um aspeto da mentalidade dos colonizados que o preocupava e que, como é bem sabido, acabou por triunfar quando o PAIGC perdeu qualquer forma de coesão ideológica:
“No decorrer de pelo menos duas ou três gerações de colonizados, forma-se uma camada social composta de funcionários de Estado, empregados em diversos ramos da Economia (sobretudo no comércio), profissionais liberais e alguns proprietários urbanos e agrícolas. Esta pequena burguesia autóctone, forjada pela dominação estrangeira e indispensável ao sistema de espoliação colonial, ocupa uma faixa social titulada entre as massas trabalhadoras do campo e dos centros urbanos e a minoria de representantes locais da classe dominante estrangeira.
Embora podendo manter relações mais ou menos intensas com as massas populares ou com os chefes tradicionais, essa pequena burguesia aspira em geral a um tipo de vida semelhante, se não idêntico, ao da maioria estrangeira. Isso resulta que, enquanto restringe os seus laços com as massas, tenta integrar-se nessa minoria, muitas vezes em detrimento de laços familiares ou étnicos, e sempre a grande custo pessoal. Porém, a despeito das exceções referentes, essa pequena burguesia nunca chega a ultrapassar as barreiras impostas pelo sistema, e cai prisioneira das contradições da realidade cultural e social em que vive, é-lhe sempre impossível escapar à sua condição de classe marginal. Essa marginalização constitui, tanto no país como entre os emigrantes instalados na metrópole colonialista, o drama sociocultural das elites coloniais ou da pequena burguesia indígena, que divide mais ou menos intensamente segundo as circunstâncias materiais e o nível de aculturação, mas sempre num plano individual e não coletivo”
.

A coletânea procede com um texto lendário, que são as palavras de ordem de Amílcar Cabral aos representantes do partido, em novembro de 1965. Desconhecia inteiramente esta publicação, e como outros camaradas do blogue, sinto que é nosso dever deixarmos aqui registado tudo o que se publicou sobre a Guiné Portuguesa e os acontecimentos alusivos ao país independente, com quem os ex-combatentes e Portugal pretendem manter laços fraternais.

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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24114: Notas de leitura (1560): "Sons da Guerra Colonial", por Carlos Miranda Henriques; Edições Vieira da Silva, 2023 (Mário Beja Santos)

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