Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 10 de março de 2023
Guiné 61/74 - P24135: Notas de leitura (1562): "Livro de Vozes e Sombras", de João de Melo; Publicações D. Quixote, 2020 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Junho de 2020:
Queridos amigos,
É um belo romance, urdidura sólida, sempre a satisfação do autor a retratar personagens, a vincar ambientes, a levar-nos com imenso prazer pelos prados de S. Miguel, a sentir o vento e a humidade. Dá um tratamento imaginativo àquilo que se designa por uma história de retornos e até de exílios. Com um bom ponto de partida, uma entrevista com um operacional lendário da Frente de Libertação dos Açores. Deplora-se que o autor imagine uma Guiné de clichés, numa atmosfera de Angola de 1961, não houve o cuidado de perguntar a alguém como era o orografia daquele terreno, senão não teríamos o falsete de um operacional dementado a querer atirar um guerrilheiro para um precipício, é mesmo não ter o cuidado de saber que naquela terra há tudo menos montanhas e abismos. Mas do mal o menos, tirando este episódio menor, mal talhado e engerocado, lê-se com imenso agrado, toda a descrição turbilhonante daquela Angola em chamas, convulsiva, de 1975, assegura páginas brilhantíssimas do que há de melhor na nossa literatura contemporânea.
Um abraço do
Mário
Um ex-operacional da Frente de Libertação dos Açores na guerra da Guiné
Mário Beja Santos
Não hesito em considerar o romance "Livro de Vozes e Sombras", de João de Melo, Publicações D. Quixote, 2020, como uma das obras mais bem conseguidas do autor de "Autópsia de um Mar de Ruínas" e "Gente Feliz com Lágrimas", tem sólida estrutura, ressuscita o período da agitação independentista nos Açores, dá-nos quadros fulgurantes, entre os melhores que a literatura portuguesa produziu sobre o fim do nosso Império, da tragédia da descolonização angolana, e estabelece um arco feliz, original, nestes diferentes passos tumultuosos. Tudo começa quando uma jornalista, umas boas décadas depois das turbulências em que se contextualizaram as atividades da FLA – Frente de Libertação dos Açores, consegue permissão para ir entrevistar um antigo operacional, de nome lendário. Aqui se inicia uma narrativa de múltiplos regressos. Não menos singular e inspirador é o modo como decorre a entrevista e a substância da mesma, o jogo de cintura entre entrevistado e entrevistadora, a importância do não dito, como igualmente, pela voz de uma cega é-nos dada uma apreciação do retorno, e poder discretear sobre o fim do Império, obrigando aquela jornalista a entender que algo havia de novo no seu trabalho: a dignidade das vítimas.
Mariano Franco, o ex-operacional da FLA, combateu na Guiné, o tema surgiu necessariamente na entrevista. Foi voluntário, quis ir defender a sua pátria de então, passou pelas Operações Especiais, esteve em Tancos, a aprender minas e armadilhas. “A pátria que fui defender à Guiné unia num todo as nossas terras ultramarinas e europeias, a História nacional, séculos carregados de obras por esse mundo fora, a luz acesa da civilização lusíada nas trevas primitivas de Catió, Bafatá, Farim e Bassorá [provavelmente o autor queria ter escrito Bissorã]”. Conheceu rios e pântanos, matou cobras e ratazanas, adoeceu de paludismo, começou a ficar louco. Confessa à entrevistadora que viu de tudo na Guiné, “pernas e braços decepados pelo rebentamento das granadas, peitos abertos e vazios como arcas arrombadas, negros degolados e com as cabeças empaladas, cadáveres sem sepultura na sua própria terra, e que dariam de comer aos crocodilos; vi mulheres esventradas que acabavam de dar a vida pelos filhos, restos humanos cobertos de enxames de moscardos, à espera dos abutres e das hienas malhadas; vi corpos despedaçados no meio da lama, olhos abertos de espanto e ainda por morrer: pareciam seguir-nos no caminho que levávamos, tal e qual os olhos dos retratos e das pinturas nos salões e nos museus. A minha loucura foi varrida pelo sopro dos canhões sem recuo nos ataques ao quartel. Aguentou o clamor, o desvario das explosões, o fogo repentino das emboscadas, capaz de resistir a qualquer massacre. Até que um dia ela, essa minha loucura, se moveu dentro de mim, entre silêncios e estrondos, para me tornar mais feroz do que tudo quanto nos feria e nos matava na guerra”.
E conta uma história, durante uma operação intersetaram gente que à cabeça carregava cestos, trouxas de roupa, sacos de farinha e arroz, decretou-se uma sentença de morte para alguns deles, era o olho por olho, dente por dente, ainda recentemente tinham tido mortos e feridos no pelotão de Mariano Franco. Bem podiam ter dado voz de prisão a uma vintena ou até um pouco mais daqueles carregadores do mato e trazê-los para Bissau, o general Spínola até podia atribuir uma condecoração, daquelas que eram dignas do 10 de junho. Mas Mariano tinha sede de sangue, estava turvado pela vindicta, ordenou que lhe reservassem um prisioneiro só para ele. O prisioneiro, um carregador do mato, dir-lhe-á, pensa ele em imaginação: “Branco colono, tuga militar, traficante de escravos, limpa-retretes do Salazar, capataz do fascismo português em África!”. E continua: "ele a tratar-me por esclavagista e por colonizador, veja, estando eu na Guiné a arriscar a vida civilizadora de tantas etnias da pretalhada: mandingas, manjacos, fulas, papéis, balantas, bijagós, felupes, uns macacos do inferno que cuspiam no prato que se lhes dava a comer!”.
E avançam para um penhasco, do cimo do qual se precipitava um barranco fundo. O prisioneiro continua a fazer frente ao torcionário, já descontrolado preparou-se para o degolar, e foi Pires, o seu guarda-costas que se atirou ao prisioneiro de catana em punho, despachou-o com uma guilhotinada na nuca. “Voou-lhe uma rodela do casco traseiro da cabeça. E empurrou-o para o abismo. O corpo guinou, deu meia volta no ar e ainda se voltou para mim, parecia que o comissário da guerrilha pretendia olhar-me uma última vez nos olhos e acusar-me do meu crime de guerra. Não sinto culpa nem remorsos de nada. A minha ideia de pátria multicontinental começou a morrer aí. E acabou de vez no meu regresso ao país anterior, não este; o que me mandou morrer e matar para defender o que nunca fora meu”. Mariano Franco guarda alguns cadernos onde fez o inventário dessa guerra que teima em não lhe sair da pele. “A minha guerra pessoal amarrei-a com uma mordaça em cinco cadernos escritos à mão. Depois de a escrever, expulsei de mim o espírito do mal que me possuíra. Pude voltar a dormir, sem pesadelos nem sonhos, sem novos regressos a África por entre suores ardentes e sobressaltos, a boca seca e as goelas a arder, com uma sede de tísico a meio da noite, e eu afinal deitado na minha cama”.
É o troço da obra de João de Melo menos inspirado, tudo aquilo é um cenário de papelão, não procurou informação condigna sobre o terreno da Guiné, senão não teria inventado aqueles precipícios e abismos que seguramente viu em Angola, quando por lá andou, e que não existem na Guiné, o que há de mais elevado é na região do Boé, umas elevações raquíticas, inadequadas à fantasmagoria que ele criou. Acresce que não há nada de novo, é uma escrita mastigada, em que se rebuscam violências, cabeças empaladas, gente sanguinária a dar com um pau. Mesmo a imagem do guerrilheiro resistente, convertido em mártir, é aqui excessivo e postiço, e João de Melo socorre-se de frases destemperadas, do género: “Tinha pela frente o meu Gungunhana, novo imperador de Gaza: tão soberbo quanto ele perante o Mouzinho ao mandá-lo sentar-se no chão, a seus pés, e ele a recusar dizendo que não se sentava. Porque não? Porque o chão estava sujo! Assim via eu esse homem à minha frente, de pé, qual feiticeiro da tribo, de rosto levantado, a olhar de alto para mim. Eram sobretudo os olhos que me desafiavam. Os olhos, os olhos. Sanguíneos, na expetativa de um desvario na cobardia dos meus atos”.
É um belíssimo romance, bom será que em novas edições este ridículo episódio guineense seja totalmente retocado para ser digno de caber num romance onde se fala de alguém que viveu as asperezas de uma vida operacional, mas sem os delírios, os precipícios e os abismos que não houve na guerra e continua a não haver no espaço físico da Guiné.
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Nota do editor
Último poste da série de 6 DE MARÇO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24123: Notas de leitura (1561): Curiosidades guineenses no fundo do baú (Mário Beja Santos)
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