Mostrar mensagens com a etiqueta Francisco Baptista. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Francisco Baptista. Mostrar todas as mensagens

sábado, 10 de agosto de 2024

Guiné 61/74 - P25829: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (29): Inspeção militar: "Ir às sortes", em Brunhoso, Mogadouro, 1967 (Francisco Baptista, ex-alf mil inf, CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892, Buba, 1970/71, e CART 2732, Mansabá, 1971/72)

Capa do livro do Francisco Baptista,  "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia" (Edição de autor,  2019, 388 pp.)


Francisco Baptista 

(i) ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72); 

(ii) natural de Brunhoso, concelho de Mogadouro, Nordeste Transmontano;

(iii)  é autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia" (Edição de autor, 2019, 388 pp.);

(iv) integra a nossa Tabanca Grande desde 19/8/2013;

(v) tem cerca de 160 referências no nosso blogue;

(v) autor das séries: 

  • Memórias da CCAÇ 2616 (Buba, 1970/71); 
  • Brunhoso há 50 anos.

1.  Diversos camaradas já abordaram aqui, ao longo dos vinte anos do blogue, o tema da ida às sortes (ou, seja, a inspeção militar) (*)... Todos passámos por essa "experiência", no ano em que perfazíamos os 20 anos. Alguns ainda guardam memórias vivas  desse "rito de passagem" que, naquele tempo, para a nossa geração, representava verdadeiramente a entrada na vida adulta... 

Deixavam de nos chamar mancebos, rapazolas, gaiatos, canalha, meninos e moços, adolescentes, imberbes, etc., e  passávamos a ser adultos, homens de barba rija (... mesmo que a maioridade, legalmente, fosse aos 21 anos... até 1977!).

E tinha outras consequências, não apenas simbólicas, mas mais práticas,  para a grande maioria de todos nós o ser considerado "apto para todo o serviço militar", num tempo em que estava em vigor o SMO (Serviço Militar Obrigatório) e o país estava em guerra a milhares de quilómetros de casa, em Angola, Guiné e Moçambique... Dali a um ano, no máximo, éramos chamados para fazer a recruta, jurar bandeira, tirar uma especialidade, ser "mobilizado para o ultramar", formar uma unidade (batalhão) ou subunidade (companhia), fazer IAO, embarcar, desembarcar, pegar na G3 e ir para o mato, matar, morrer...

Há muita gente com muito talento para  a escrita no nosso blogue. Há textos que tèm direito a ser relidos como este, do Francisco Baptista, perdido na série "Estórias avulsas" (**). Esperemos que seja mais um incentivo para outros mandaram também, por escrito, para a publicação, agora no píncaro do verão, na série "Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços"... as suas lembrança desse dia da  "ida às sortes"! 



Ir às sortes", em Brunhoso, Mogadouro, 1967 

por Franscisco Baptista


Éramos homens, tínhamos força, confiança, tínhamos sonhos, queríamos conquistar as mulheres, queríamos conquistar o mundo, queríamos ser nós a governar a nossa vida.Éramos capazes de transportar sacos de trigo de 80 quilos ou mais, de ceifar três sucos de trigo como os mais velhos, de varejar as oliveiras e cavar tanto as oliveiras como as vinhas.

Sabíamos lavrar com vacas como com bestas, sabíamos semear o trigo e o centeio, plantar as batatas, as abóboras e as hortaliças.

Estávamos confiantes e preparados para entrar na sociedade dos adultos, era o nosso dia e toda a aldeia de Brunhoso iria ter orgulho nos seus filhos que tinham atingido a maioridade.

Tínhamos 20 anos e tinha chegado o dia das sortes.

Pela manhã fomos todos, a pé, até à vila, eram só cinco quilómetros e nós estávamos habituados a calcorrear os carreiros e caminhos do termo da aldeia. No dia anterior tínhamos ido todos, como a tradição mandava, tomar banho ao ribeiro da Lagariça.

Vestimos as nossas melhores roupas porque o dia era solene e de festa. Éramos quatro nascidos em 1947, o Amílcar, o José Luís, o Ernesto e o Chico (sou eu, pronuncia-se quase tchico por lá).

Outros quatro já tinham emigrado, eram eles, o António Borges e o Adelino para o Brasil, o José Maria e o Manuel da Glória para Angola.

Os meninos mortos de 1947, pois morriam tantos nesse tempo, não eram nomeados, nem chorados, pois eram anjos que tinham ido diretamente para o céu. Importa falar dos vivos e de todos, presentes ou ausentes, porque a tradição estabelecia uma irmandade entre todos os nascidos no mesmo ano.

Os da mesma idade eram os praças.
A razão deste tratamento teria a ver com o facto de todos assentarem praça no mesmo ano. O dia das sortes significava naquelas terras o dia da passagem à idade adulta, o dia da emancipação.

A inspeção não foi muito demorada. Numas instalações que a Câmara Municipal punha à disposição das Forças Armadas, despíamo-nos e íamos passando pelos médicos militares que avaliavam a nossa masculinidade e a nossa saúde.

Ficamos os quatro aptos para o serviço militar o que era sempre motivo de contentamento para o grupo, pois ninguém gostava de ser excluído. Era sinal de saúde e de que passávamos a ser cidadãos capazes de defender a nossa terra.

Ficar excluído era um anátema terrível que marcava um homem pela vida fora.

Ainda recordo tal como ele contava, a história da inspeção do "tio João Passarinho" que ouvi várias vezes, pois ele trabalhou muitos anos à jeira na casa do meu pai e já tinha trabalhado antes na casa dos meus avós paternos.

O tio João Passarinho era um homem valente e trabalhador, que sabia fazer todos os trabalhos do campo melhor do que ninguém. Desde cortar a erva nos lameiros à gadanha para feno, a tirar a cortiça dos sobreiros, ele sabia fazer tudo com destreza. Era todavia um homem franzino e baixo, com um metro e cinquenta de altura ou pouco mais. Viveu até aos oitenta ou mais anos e trabalhou sempre enquanto pôde.

Nunca teve férias nem reforma, como a maioria dos trabalhadores do campo desse tempo. Hoje se fosse vivo já teria mais do que 110 anos pois conheço um filho dele, o Joaquim, muito parecido com ele que apesar da idade avançada continua a trabalhar, já com 85 anos.

O tio João talvez nunca conformado por ter ficado isento do serviço militar, nos anos 20 ou 30 do século passado e porque gostava de efabular, contava que quando foi visto pelo médico militar no dia da inspeção ele lhe disse:

- Aqui está um homem bem constituído, alto, forte, espadaúdo. Temos um marinheiro!

Nunca eu o contrariei quando ele fazia estas afirmações e ouvi-as várias vezes. Tinha muito respeito por ele, desde menino fui criado na companhia assídua dele, era um homem respeitável, bondoso e trabalhador.

Sempre soube que dizia uma grande mentira, bastava olhar para ele, mas ele tinha direito a ter os seus defeitos e essa mentira, como outras em que era pródigo, não prejudicava ninguém.

Comprámos quatro foguetes e muitos rebuçados e regressámos à aldeia. Quando estávamos a um quilómetro, numa colina sobranceira, lançámos o primeiro foguete, os outros foram lançados já na aldeia. 

Demos a volta a todas as ruas a distribuir os rebuçados pelas raparigas, sendo naturalmente mais saudados pelas da nossa idade. Éramos amigos, tínhamos crescido perto uns dos outros, tínhamos entrado na escola ao mesmo tempo, tínhamos sobrevivido aos desejos próprios da adolescência com estoicismo e às restrições que uma moral rígida imposta, através da mãe, do pai, do padre, da professora e do falar do povo nos era imposta.

Por elas, vá lá e pelas outras, tínhamo-nos batido, em dias de festa ou de baile, com os rapazes duma terra vizinha. Muitas vezes os escorraçámos à pedrada, porque elas eram nossas e eles não se podiam atrever a conquistá-las ou a dançar com elas se algum dos nossos não gostasse. Toda a aldeia nos saudava com agrado, éramos os heróis do ano.

Fomos todos almoçar a casa dos meus pais, pois a minha santa mãe quis convidar-nos e fez-nos um almoço melhorado, um almoço de dias de festa.

Há dois anos o José Luís falou-me nesse almoço que eu já não recordava. Dos quatro que fomos à inspeção, o Amílcar e o Ernesto foram mobilizados para Angola, eu pra Guiné, o José Luís como foi sempre um bocado despistado, deve ter perdido o barco que o levaria para algum lado e fez a tropa por cá.

Quando acabou a tropa eu emigrei para o Porto os outros três para França. Dos outros, o António Borges, que nunca mais vi desde a adolescência continua no Brasil, o Adelino continua por lá também tendo-o visto nas duas vezes que ele visitou a aldeia. O José Maria e o Manuel da Glória regressaram de Angola com a descolonização, tendo o primeiro infelizmente morrido o ano passado de doença em Lisboa onde se tinha estabelecido com um negócio de padaria-confeitaria.

Ao Manuel da Glória nunca mais o voltei a ver, disseram-me que morará na Beira Alta ou Beira Baixa.

As "raparigas" da nossa idade, que eram dez, somente uma mora na aldeia depois de ter vivido cerca de 30 anos em França.

Só uma delas foi além da quarta classe tal como eu. Pertencia a uma família numerosa, com poucos recursos, mas era uma pessoa muito inteligente e, sendo sobrinha bastarda da professora, que pertencia a uma das três casas grandes da terra, terá sido provavelmente ela que a encaminhou para um convento de freiras. Na maioridade deixou o convento, constituiu família e passou a dar aulas no ensino secundário.

Desloco-me com alguma frequência à aldeia para relaxar no contacto com a natureza e sentir o ar mais puro, quente ou frio, conforme a estação, mas sempre agradável. No inverno chego a sentir saudades do ar frio e seco da minha terra. Da varanda da casa, agora quase sempre vazia, avista-se grande parte do casario da aldeia bem como pinheiros, sobreiros e alguns freixos que fazem parte da área agrícola e florestal da terra, e ao longe a paisagem típica dos montes e vales de Trás-Os-Montes que se estende por muitos quilómetros.

Ouço o silêncio duma terra que foi morrendo, que eu por vezes procuro preencher com memórias de há quarenta ou cinquenta anos, e então ouço o barulho próprio de uma casa onde viviam nove pessoas, o palrar das vizinhas, os gritos das brincadeiras dos garotos, o chiar dos carros de bois, os sons dos diferentes animais domésticos e o pregão da minha vizinha, a tia Clementina, a anunciar a sardinha.

Um caudal de memórias como o do Rio Sabor na primavera, que corre num dos limites da área agrícola da freguesia. Recordo estes rapazes e raparigas, conterrâneos da minha idade, e as vidas duras e difíceis que tiveram na aldeia e depois nos caminhos da diáspora.

Dizer que seriam pobres seria uma ofensa para eles, pois por lá os pobres eram os miseráveis que tal como os ciganos andavam a pedir de porta em porta. Os pais deles teriam uma pequena horta, algum campo para semear trigo e talvez algumas oliveiras. O sustento para a família vinha sobretudo das jeiras diárias, em tempo de colheitas para os lavradores. Sei que muitas vezes só comiam pão, batatas e caldo, mas nunca os ouvi queixar-se a mim que pertencia a uma família que sem ser rica era mais abastada.

Mas falar sobre esse mundo antigo e quase feudal é um assunto que dá pano para mangas. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos: LG)

_____________

Notas do editor LG:


(*) Excerto de 4 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12388: Estórias avulsas (73): O Dia das Sortes na aldeia de Brunhoso (Francisco Baptista)


sexta-feira, 26 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25780: S(C)em Comentáros (44): o seminário, a tropa e a guerra (Francisco Baptista, autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia", Edição de autor, 2019, 388 pp.)


1. Dois comentários sobre o tema "o seminário, a tropa e a guerra colonial", no poste P18954 (*)



(i) 
Francisco Baptista 

ex-Alf Mil Inf, CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72); natural de Brunhoso, concelho de Mogadouro, Nordeste Transmontano, é autor do livro "Brunhoso, Era o Tempo das Segadas - Na Guiné, o Capim Ardia" (Edição de autor, 2019, 388 pp.)

Dos ex-seminaristas fala-se mas não sei porquê apesar de aprenderem a falar , a ler e a escrever, poucos falam e escrevem, outros lhe dissecam as vísceras como se fossem aves frias e estranhas, do interior do país que nunca tiveram voz e autoridade religiosa ou laica para ser escutados entre as inteligências que do litoral governam tudo.

(ii) Tabanca Grande Luís Graça

Francisco, o teu comentário parece-me "sibilino"... Eu acho que o entendo... Mas há dois sujeitos da frase, se bem entendo: (i) os ex-seminaristas, apesar de terem aprendido a falar, a ler e a escrever, pouco falam e escrevem.. ; (ii) os do interior do país que nunca tiveram voz e autoridade para serem escutados pelo senhores do litoral...

É verdade: (i) os ex-seminaristas pouco escrevem sobre o tema "seminário, tropa e guerra colonial"; (ii) há um dicotomia interior-litoral, mais uma "assimetria" no discurso de uns e outros...

28 de agosto de 2018 às 20:27 

(iii) Francisco Baptista:

Amigo Luís, entre um poste e outro, para mim não foi tudo claro, daí talvez o "sibilino" entre aspas. Nem tudo tem explicação ou por outro lado nem tudo merece ser explicado porque ao sê-lo pode-se expor demasiado algum mistério que deve existir sempre nas relações entre as pessoas de modo a não perderem o entusiasmo por um convívio estimulante.

Os seminaristas do nosso tempo foram os pobres, filhos de pobres, a maioria do interior, que na procura de mais conhecimentos e mais dinheiro se sujeitaram a viver ainda crianças nos seminários, grandes edifícios parecidos com enormes quartéis, frios, húmidos, impessoais, sujeitos a uma disciplina rígida e desumana ministrada por homens frustrados sem mulheres e sem filhos.

O meu ano no seminário (**) , longe de casa, a viver numa terra plana, onde não havia mar à vista em alternativa, sem a amizade dos amigos de infância, sem o calor da família e da lareira. foi o pior ano da minha vida. Pior do que o pior dos três anos de tropa.

A maior parte dos seminaristas não falam dessa experiência como se de uma experiência traumática se tratasse. Esses anos de clausura, de estudo, missas diárias, rezas e penitências, que duravam por cada ano quase onze meses deixaram-lhes marcas psicológicas que em muitos deles ficaram sempre reconhecíveis na forma de ser, de estar e de viver. No rosto de alguns ficou sempre visível, um certo desânimo, alguma tristeza e ponderação a mais.

Passei pelo mesmo seminário onde esteve o nosso camarada coronel A. Marques Lopes, autor do livro "Cabra Cega", que gostei de ler. Conheci personagens que ele retrata,, confesso que não me lembro dele, mas lembro-me bem dum amigo dele de Cabo Verde, um tipo afável e simpático que um dia me disse, nunca esqueci, que eu nunca seria padre porque tinha muitas irmãs. Esse enigma nunca o decifrei.

Conheci o padre José Maria, um transmontano bondoso e amigo de todos, o diretor, um padre mirandês, de Ifanes, muito severo. que para castigo de todos usava os argumentos e instrumentos de suplício das professoras primárias. Quando um dia me tratou assim, explodi e gritei-lhe que não tinha o direito de me tratar desse modo, pois não era meu pai.

Quis deixar o seminário mas não mo permitiram, no fim do ano expulsaram-me, talvez para assinalarem bem a autoridade deles.

O livro "Nó Cego", do camarada Carlos Matos Gomes, que li recentemente e também gostei muito, fala de um alferes, ex-seminarista que tem uma deriva, que além de afastada dos ensinamentos religiosos e conservadores da época, é também muito desumana. Aconteceu com alguns ex-seminaristas talvez originada pela discrepância entre a violência psicológica dos anos de seminário e a santidade apregoada por palavras.

Revejo-me nalguma tristeza que durante anos cobriu de névoa o semblante de alguns ex-seminaristas e que cobriu igualmente o semblante de muitos camaradas ex-combatentes. (...) (***)

29 de agosto de 2018 às 19:35

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Guiné 61/74 - P25225: (In)citações (265): A Guerra. Nos últimos tempos as notícias tendem a ser brutais e deprimentes (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

1. Em mensagem de 23 de Fevereiro de 2024, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais um excelente texto de sua autoria, desta vez discorrendo sobre o estado de guerra em que vivemos, originado por ódios ancestrais e tentativas de recuperação de impérios, por parte de ditadores sanguinários. O resto do mundo assiste, aparentemente, impávido e impotente. Entretanto a indústria do armamento pospera.


A GUERRA

Dia 24/11/2023
Nos últimos tempos as notícias tendem a ser brutais e deprimentes, são dias de nevoeiro, em que os olhos reflectem para dentro imagens negras e tristes. Para me libertar delas, apetecia-me banhar corpo e alma com a água límpida, transparente, saborosa e pura das fontes que conheci, quando menino e adolescente na minha aldeia, já adulto, com bom vinho, tal como os meus avós, o meu padrinho José Baptista, Fernando Pessoa, Luís de Camões, grande boémio, um e outro, os maiores poetas de Portugal, meus ídolos e heróis. O vinho bebido, sem toldar as capacidades sensoriais e intelectuais, dá alimento ao espírito, melhora o gosto estético e facilita a comunicação entre as pessoas.

Há mais de um ano temos sido bombardeados com notícias catastróficas.

- Há pouco mais de um mês reacendeu-se o conflito entre árabes e judeus na Palestina, com o ataque desumano do Hamas a civis judeus, com muitas mortes e reféns capturados. Por sua vez os israelitas responderam com um ataque desmedido e desumano porque o seu poderio militar é muito superior e o respeito pelas vidas humanas desses povos inimigos é idêntico. Esse ataque sobre a faixa de Gaza, que não tem poupado habitações, escolas e hospitais e já terá matado muitos milhares de inocentes. Guerras sanguinárias alimentadas pelo ódio de ocupações de territórios que povos milenares diferentes reclamam como seus há muitos séculos e a quem a comunidade das nações no último século não tem sabido dar a melhor ajuda a bem da paz entre eles e da paz mundial.
Judeus e árabes palestinianos, tutelados por dois deuses únicos e omnipotentes, eles e os seus crentes os mesmos templos e terras sagradas, que foram de uns, mais tarde de outros, depois dos mesmos num vaivém trágico de guerras, sangue, dor e morte, que tem alimentado um ódio infernal, que torna difícil o diálogo e a paz. Os cristãos, seguidores de Jesus Cristo, um judeu, (um Deus, um Profeta?) da outra grande religião monoteista, há séculos com as Cruzadas para conquistar e manter os seus lugares sagrados, também já entraram nessas orgias de sangue e de morte.

- A Invasão da Ucrânia, agora menos audível, pelo estrondear das bombas aéreas, mísseis e granadas de canhões e carros de combate, israelitas sobre a Faixa de Gaza, continua a fazer muitos mortos militares russos e ucranianos e a espalhar a destruição e a morte na Ucrânia, uma Pátria mártir.
Infelizmente Vladimir Putin, esse ditador sanguinário e megalómano, que quer restaurar o Império da Rússia, não morre, enquanto mulheres, meninos, velhos e outros morrem todos os dias.


Dia 18/12/2023

A tragédia dos homens é olhar o mundo com todo o rol de desastres, guerras, acontecimentos fastos e nefastos e não saberem as palavras melhores e mais adequadas para formar uma corrente de pensamento, que os transporte pelos caminhos da Paz Universal.

Falo desta quadra com horror, em que os cristãos, eu também o sou, por nascimento e formação, se aliaram aos judeus para matar os palestinianos da Faixa de Gaza, futuramente haverá outros. Matam velhos, mulheres e meninos. Matam os meninos com intenção de extirpar as sementes de ódio que estão a alimentar nesta guerra cruel que poderá alimentar outras guerras contra eles. Mas haverá sempre meninos que se salvam e com a sua memória magoada irão lutar para se libertarem e o ciclo de guerra continuará.

Os meninos cristãos do ocidente felizes com excessos alimentares e excessos de brinquedos, não têm culpa da morte, da doença, da sede, da fome, e da desgraça que grassa entre os meninos do médio-oriente e muitos outros milhões de meninos lindos de toda a Terra. Os seus pais e os seus avós terão culpas pelo egoísmo, alheamento e indiferença, os políticos que eles elegeram são cúmplices também desses assassínios em massa. As religiões orientam os homens para o bem, outras vezes no caminho do mal, mas os meninos quando nascem são todos inocentes e iguais.
Longa vida para os meninos de toda a Terra e que cada vez mais sejam dadas oportunidades de vida, de alimentação, de saúde, de educação e diversão a todos eles.

Ver é melhor que pensar mas só o pensamento activa e dá calor ao cérebro cria o novo e o belo, o horrível.
Está frio e sentimos uma sensação térmica desconfortável.
Na Europa festeja-se o Natal, uma festa religiosa, capitalista e pagã nos excessos e desperdícios, tal como os romanos, os grandes arquitectos deste continente, festejavam as bacanais.


Dia 15/02/2024

A música do silêncio percorre estrelas, planetas, constelações, galáxias, e faz-se ouvir em mensagens sonhadas entre as almas presas nos corpos humanos ou libertas deles.

Cronos é o deus grego do tempo, minutos, horas, dias, anos, que sem nos dar a vida nem a morte, estará sempre presente nessa contagem, entre o princípio e o fim. Os romanos que foram copiar a mitologia e a filosofia a essa civilização mais antiga e culturalmente mais avançada, deram-lhe o nome de Saturno. O que nos desgasta e envelhece é o poder dos deuses que controlam o tempo do nosso viver.

Mais tarde os nossos grandes aliados americanos, grandes guerreiros tal como os romanos, viriam alimentar-se da vasta cultura e da religião europeia, para dar forma, alma e palavra, à grande nação que tais como os romanos fundaram em grandes batalhas de independência contra nações colonizadoras e de conquista contra os povos indígenas, que em grande parte dizimaram.
A história dos homens quando não fala do seu esforço e suor para conseguir alimentos e conforto, fala da dor, do sangue e das lágrimas derramadas, pelas guerras selvagens e desumanas, que povos bem armados provocaram ou povos mal armados sofreram.

Enfim, a nossa civilização judaico-cristã tem um verniz moderno e enganador que não nos liberta, da pré-história em que os homens em luta podiam matar famílias e até comer guerreiros inimigos.

Em Gaza não se comem guerreiros, mas matam-se famílias inteiras indiscriminadamente, com as armas fornecidas pela grande América e o beneplácito ou cobardia da Europa Ocidental. Conheci os lobos, mais pacíficos do que os cães, uivavam à distância, em noites escuras ou de luar, os cães seus primos ou irmãos, aliados aos homens, respondiam num ladrar prolongado, que se assemelhava ao uivar deles.
Ouvi-os muitas vezes, já na cama, aconchegado debaixo de lençóis e cobertores, em noites frias, quando a chuva caía e o vento assobiava entre as telhas, ou em noites de aguaceiros e trovoadas. Os lobos, animais inteligentes, que nunca atacavam os homens, no seu uivar, que parecia um lamento, queixavam-se dos homens por eles terem matado todos os animais herbívoros selvagens e não lhes permitirem comer uma cabra ou ovelha.

Os animais mais sanguinários da Terra são os homens. Nem consigo entender como ainda há deuses que os queiram salvar.


Dia 22/02/2024 - "O Observador"

"Edgar Morin, o famoso filósofo francês e filho de judeus sefarditas, acusa "o silêncio do mundo" perante a onda de violência massiva que atinge a população de Gaza."

Deste grande pensador e estudioso de várias áreas do conhecimento, que já tem 103 anos, muita experiência de vida e conhecimentos vastos em ciências humanas, que na França ocupada lutou contra os ocupantes nazis, continua lúcido e atento aos males presentes e futuros. Dele li, há mais de trinta anos, o Paradigma Perdido e o Homem e a Morte, leituras que me marcaram. Escreveu muitos outros livros.

Sinto-me confortado pelas suas palavras acusatórias. Finalmente encontro um pensador universal que sempre admirei, que projecta para toda a terra, com a autoridade que eu não tenho, a minha raiva e a minha angústia contra os senhores da guerra, os seus apaniguados, os políticos sem coragem e carácter e os pensadores menores que comem à mesa dos financeiros e dos capitalistas russos, judeus, americanos.

____________

Nota do editor

Último poste da série de 9 DE FEVEREIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25151: (In)citações (264): Adjarama, Amadu Bailo Djaló, por essa lição de vida (Cherno Baldé)

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Guiné 61/74 - P24827: Manuscrito(s) (Luís Graça) (240): Zé do Telhado (Penafiel, 1816 - Angola, Malanje, 1875): um caso de "banditismo social"? Entre o mito e a realidade - Parte VII

 

Fotograma nº 1 > "De herói a vilão", eis a história do Zé do Telhado, aqui, sargento patuleia, recebendo  a mais alta condecoração do país, a Torre e Espada, das mãos do general Sá da Bandeira, a quem salvou a vida, em combate, na Guerra da Patuleia (out 1846 / jun 1847), que se seguiu à Revolta da Maria da Fonte.

Fotograma nº 2 >  O fantasioso (no filme) assalto à Casa do Carrapatelo, Marco de Canaveses, sita nas faldas da serrra de Montedeiras e na margem direita do rio Douro, a escassos quilómetros na nossa casa em Candoz.


Fotograma nº 3 >    Um destacamento dos Granadeiros da Rainha, em perseguição, mal sucedida,  do Zé do Telhado e do seu bando, em 1852

Fotograna nº 4 >  Um filme "romântico" mas também um "western à portuguesa" onde há de tudo:  amor, perdição, ciúme, traição, nobreza, camaradagem, ação, coragem, assaltos, tiroteiro, loucas correrias a cavalo, duelo,  morte... Foi uma época, a da consolidação da monarquia constitucional, nas décadas de 20, 30, 40 e 50 do séc. XIX, violenta, pautada por sucessivos episódios de guerra civil (as chamadas "lutas liberais": dos liberais contra os absolutistas, dos liberais entre si)... Calcula-se que mais de 20 mil portugueses tenham morrido às mãos de portugueses... Estamos muito longe, portanto, do país de "brandos costumes" dos nossos contos de fadas e príncipes encantados...


Fotograma nº 5 > O "duelo de morte" com o José Pequeno, o "vilão da história", que traiu o bando, e aquem,  diz o Camilo, o Zé do Telhado,  cortou a língua com uma tesoura depois de morto. 

Mas o "ajuste de contas final" entre os dois teria sido na Lixa, e não na serra, como  vemos no filme de 1945 que, de resto, é considerado um "remake" do filme mudo, de 1929, realizado por Rino Lupo, com exteriores filmados no Solar de Beirós, São Pedro do Sul; o guião, por sua vez, tem como fonte  o livro de Eduardo Noronha (1859-1948), "José do Telhado: Romance Baseado sobre Factos Históricos" (1923)(As cenas do exterior deste primeiro filme, o de 1929, foram rodadas em diversos sítios por onde andou o "nosso herói": Amarante, Vila Meã, Lixa, Marco de Canaveses, Felgueiras, Serra do Marão, Sobreira em Caíde de Rei, Lousada, e na casa onde nasceu José do Telhado, em Recesinhos, no lugar do Telhado, Penafiel. Fonte:  Penafiel, Terra Nossa).

Fotogramas do filme "José do Telhado" (1945).  disponível no You Tube, na conta "MusaLusa". 

Uma das raras fotos da época (pormenor) do Zé do Telhado, de seu nome de batismo José Teixeira da Silva (c. 1816-1875), aqui com o seu irmão Joaquim Telhado, também ele bandoleiro, à sua direita. 

Fonte:   Manuel Vieira de Aguiar, "Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses" (Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947, 439 pp).   , 1947,  pág. 273. (Foto extraída do livro de Sousa Costa, " Grandes dramas judiciários: tribunais portuguees", Porto, O Primeiro de Janeiro, 1944)



Contracapa do livro de Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II  Vol,  8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco,  Edição Popular, 54")


1. Comentários de alguns dos nossos leitores sobre estes escritos do editor Luís Graça com referência ao Zé do Telhado, cujo "fantasma" ainda paira pelos vales do Sousa e do Támega e pelas serras à volta (Montemuro, Marão, Montedeiras...) (*)


(i) Francisco Baptista:

Amigo Luís Graça, já poucos escrevem, poucos comentam. Estamos todos a ficar com as pilhas gastas. Tu és dos poucos que continuas a dar grandes provas de vitalidade.

Gostei de saber por ti do Zé Telhado, de quem pouco sabia, como a maioria dos portugueses, sabem o nome e a fama de bandoleiro, que roubava aos ricos e dava aos pobres. Nem sabia que sobre ele já tantos escritores tinham escrito.

É natural que ele também te motivasse a ti pois além do mais era de perto de Candoz a outra terra que tu amas mais. Gostei de ler e espero por mais capitulos. Estou a pensar comprar também " As Memórias do Cárcere", de Camilo.

Obrigado. Grande abraço

22 de outubro de 2023 às 19:15 


(ii) Fernando de Sousa Ribeiro:

Estou um pouco como o camarada Francisco Baptista. No Porto, o Zé do Telhado é uma referência vaga, de uma espécie de Robin dos Bosques à portuguesa, que passou pela Cadeia da Relação da cidade antes de ser deportado para Angola. Só se fala nele quando se visita a cadeia (atual Centro Português de Fotografia) e se espreita a cela onde Camilo Castelo Branco viu o Rio Douro aos quadradinhos. Nessa ocasião fala-se de Ana Plácido, como não podia deixar de ser, e por arrastamento fala-se do Zé do Telhado também.

O encontro entre Camilo Castelo Branco e o Zé do Telhado na cadeia não terá sido o primeiro que eles tiveram. Muito tempo antes, o próprio Camilo foi assaltado pelo Zé do Telhado, numa ocasião em que viajava de diligência entre Vila Real e o Porto! O próprio Camilo fala no assalto num dos seus incontáveis livros (não me recordo de qual) e chama patife, facínora, ou outros nomes equivalentes, ao seu assaltante. Mal sabia ele que iria encontrar-se de novo com o antigo salteador na cadeia e que iria refazer a imagem que tinha feito dele.

Durante a minha comissão militar em Angola nunca ouvi falar do Zé do Telhado, nem uma só vez. Inclusivamente, no meu grupo de combate havia dois militares negros naturais de Malanje e nunca os ouvi fazer qualquer referência a ele. Já os brancos de Angola admiravam outras personagens, que não o Zé do Telhado; admiravam Paulo Dias de Novais, Salvador Correia de Sá, Silva Porto, Norton de Matos, etc.

23 de outubro de 2023 às 02:02

(iii) José Teixeira;

O Zé do Telhado tinha bem demarcada a sua zona de atuação. Do Marco de Canavezes a Vila Real até Cete, Paredes, sobretudo na orla da estrada real. A conhecida estrada Porto a Vila Real com uma variante para a Régua. Era a estrada por onde passavam os grandes comerciantes do Vinho Fino, vulgo, Vinho do Porto. 

A minha avó falava muito do Zé do Telhado, dado que o meu visavô foi contemporâneo dele. O Lugar da Árvore em Caíde, um entroncamento de estradas,  era um dos sítios onde ela costumava fazer as emboscadas. Recordo-me de em criança passar por lá várias vezes a caminho de Vila Meã. Havia sempre uma história contada pela minha avó sobre o meliante. A admiração que os mais velhos tinham pelo Zé do Telhado ia assim passando para os mais novos. Para a minha avó o Sr. José do Telhado tinha sido um grande homem. Ele roubava aos ricos para dar aos pobres e havia sempre mais uma história para contar.

20 de setembro de 2023 às 22:42 

(iv) Valdemar Queiroz:

Quanto ao apelido/alcunha "do Telhado", há três versões.

A mais conhecida é a de ser um salteador que entrava pelo telhado, outra que a casa do pai era a única com telhado de telhas em vez de colmo como as outras e a que parece mais lógica era de ser natural do aldeia/lugar de Telhado e assim ser conhecido quando foi viver para os lados de Lousada.

Antes de ser assaltante era castrador de animais e já lhe chamavam o Zé do Telhado.

No filme "Zé do Telhado", com Vergílio Teixeira, há uma cena em que ele, numa taberna, aperta a mão a outro bandidolas provocando-lhe dores.

Foi uma grande treta, o outro bandidolas era Juvenal Araújo que eu conheci, já dentro dos cinquenta anos, mas quando fez o filme era um matulão que ganhava apostas por rasgar uma lista telefónica fechada, o que deixaria o Vergílio Teixeira com as falanginhas e falangetas partidas.

15 de setembro de 2023 às 14:49

(v) Luís Graça:

O mito do país dos brandos costumes é uma invenção do salazarismo: "antes de nós o dilúvio, depois de nós o caos"... Não é por acaso que o séc. XIX era pura e simplesmente ignorado na escola (e na universidade, pouco ou nada investigado pelos historiadores)...

O que é que a gente sabia sobre o século em que a liberdade e a justiça passaram a ser também uma bandeira, pela qual muitos portugueses se bateram e morreram?!... Afinal, o século em que passámos a ter uma constituição, se consolidou a monarquia constitutucional, se derem passos importantes no processo de "modernização", se aboliu a escravatura e a pena de morte...

13 de outubro de 2023 às 12:37

Em 1945 fizeram um "western" à portuguesa em que o nosso Zé do Telhado (interpretado pelo galã Virgílio Teixeira) é um perfeito oficial e cavalheiro. (Só dei uma rápida vista de olhos ao filme disponivel no You Tube, parte dos exteriores terão sido rodados na nossa serra de Montedeiras.)

O filme está disponível aqui, na conta : https://www.youtube.com/watch?v=i_6MmOOrDh4

O cinema também serve para falsificar ou reinventar  ou reescrever a história... (O filme de 1945 não pretende ser  "uma biografia, mas  uma obra livremente inspirada na vida do célebre salteador"...)




Cartaz do filme "José do Telhado" (1945), a preto e branco, 98 minutos: produzido e realizado por Armando de Mirando, e contracebado por Virgílio Teixeira e Adelina Campos, nos dois principais papéis. Os exteriores foram filmados em Vouzela, em 1945. O filme foi estreado no Porto (Coliseu, em 15/12/1945), e emLisboa (Polteama, 16/1/1946). Fonte: Cinept / UBI (com a devida vénia...)



2. Vamos reproduzir mais alguns excertos das "Memórias do Cárcere" (1ª edição, 1862), em que o Camilo Castelo Branco traça um retrato-robô, lisonjeiro, quase hagiográfico, sobre o seu  companheiro de infortúnio (mas também precioso "guarda-costas" ...), nos calabouços do Tribunal da Relação do Porto, retrato esse que de algum modo ficou, acriticamemte, para a posteridade, criando-se assim o mito do "Robin dos Bosques português"... Afinal, também temos direito a ter um... A tradição popular, outros escritores, menores,  o cinema e a televisão (veja-se a série da RTP, "João Semana")  têm contribuido para reforçar o mito do "banditismo social"..  (Convém lembrar que Camilo não era historiógrafo, era um ficcionista, um "folhetinista", que escrevia muito, em pouco tempo, e em função do seu "nicho de mercado", que era uma clientela urbana ou urbanizada, letrada, que lia jornais,  "folhetins" e alguns livros,  com poder de compra, em suma, a pequena e a média burguesia liberal socialmente em ascensão.)

Os excertos aqui reproduzidos são os da 8ª edição (Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II  Vol,  8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966)

(...) “Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando as manifestam e apontam a extraordinários destinos (...) (pág. 83)

(…) "Na noite de 22 de Maio [de 1852] (**) deu José do Telhado batalha campal à tropa no local denominado Eira dos Mouros [freguesia de Santa Cristina de Figueiró, concelho de Amarante, distrito do Porto] (**)

O destacamento de infantaria 2  (***) conseguira capturar dois salteadores e descera com eles a uma estalagem,  para descansar. Aí o surpreendeu a horda com o chefe montado em fogosa égua. Chegou ele ao terreiro da estalagem, e exclamou: "Carregai com quartosn (****),  rapazes, que está aqui José do Telhado." 

Saiu fora a tropa, e empenhou-se um tiroteio,  que rematou pela retirada do destacamento. O chefes sustentou sempre a vanguarda da avançada, fazendo fogo de pistola e clavina. 

Estavam os dois saltadores prisioneiros na cavalariça da estalagem: um fugira logo que rompeu o fogo, o outro ficara na impossibilidade de erguer-se sobre as pernas cortadas de balas.

− Vem!   − disse o capitão ao salteador ferido.

− Não posso; matem-me que eu estou sem pernas.

− Faz o ato de contrição  − retrucou o chefe.

 O ferido resmuneou o acto de contrição ,  e a estalajadeira verteu lágrimas piedosas. 

José dos do Telhado  estirou-a com uma bofetada, e  desfechou contra o peito do camarada, dizendo;

− Acabaram-se-te os teus trabalhos,  e os meus  estão em  começo. Adeus!    

O cadáver não podia responder a este saudoso vale do seu chefe. (pp. 95/96)


(…) Noutra noite, cercou-lhe a  tropa a casa, estando ele no primeiro sono. Despertou-o  a mulher, e ajudou-o a vestir muito de seu vagar. Caminhou para uma porta transversal, e retrocedeu a ir buscar o  relógio esquecido, e a dar ordens ao criado para lhe conduzir de madrugada o cavalo a designado sítio. Abriu uma janela,  e disse para os soldados:

− Que tal está a noite, rapazes ? 

Retirou da janela, e  abriu a pequena porta, que defrontava com uma cortinha para a qual relevava saltar por cima de um quinchoso.  Aí estavam postados três soldados. José Teixeira aperrou a clavina  de  dois canos, e disse: 

− Agachem-se, que quero saltar.  Os dois primeiros que se moverem, passo por cima deles mortos. 

Os soldados agacharam se, e ele saltou.  Já de dentro da cortinha, atirou dois pintos (*****) aos soldados, e e disse-lhes:

−  Tomai lá para matar o bicho à saúde do José do Telhado.

E foi seu caminho pacífica e detidamente como se andasse espreitando a toupeira no seu meloal.  Teria ele tempo de palmilhar um oitavo de légua, quando lhe deram uma descarga. (...) (pág. 97)

(...)  José Teixeira folgava de entremeter incidentes cómicos nas suas assaltadas. A uma dama de Carrapatelo dera ele um beijo de despedida, e à mulher do senhor Camelo perguntara de que lhe servia o dinheiro, se não podia comprar uma cara mais nova e menos feia

O senhor Bernardo José Machado, muito conhecido comerciante  do Porto, ia um dia para Cerva [Ribeira de Pena, no Alto Tâmega] , sua terra natal , e alcançara,  a distância curta do Torrão, um cavaleiro bem posto no seu corpulento cavalo, e acamardou-se com ele na jornada. Falavam vários assuntos, e caiu a propósito os perigos de jornadear por tais sítios infestados pelo terrível  Zé do Telhado. 

O cavaleiro mostrou-se também horrorizado pela hipótese de o encontrarem,  e ouviu da bocado  senhor Machado a história dos flagicídios do célebre bandoleiro.  Apearam  numa estalagem, e jantaram o mais lautamente que podia ser.  O cavaleiro mudara de estrada.  e despediu-se do senhor Machado, que lhe ofereceu os seus préstimos. Pediu o comerciante a conta à estalajadeira,  e soube que o outro sujeito pagara a despesa. Perguntou o viajante, quem era aquele cavalheiro, e a mulher respondeu que era o José do Telhado. 

É bem de ver que o senhor Machado, em vista do panegírico com que o brindara,  não foi muito a seguro de o topar adiante com outra cara, ocasionando lhe um facto novo para realçar a história. (...) (pág. 99),


(...) O libelo cerra a meda dos crimes do José do Telhado om a tentativa de evasão para reino estrangeiro sem passaporte. 

A morte de José, denominado o pequeno, por antifrase, não vem incluída na acusação.

José Pequeno era agigantadado de estatura, e  o mais cruel da malta, comandada por José do Telhado.

Custava muito ao chefe refrear-lhe o instinto sanguinário; mas com melindre o fazia,  porque o parceiro era o único de quem  ele se receava em luta de braço a braço.

Andava José Pequeno cogitando no expediente mais azado a livrar-se de perseguições,  e tentou-o o demónio a atraiçoar os companheiros. Foi a malta surpreendida, estando  ausente o denunciante. Comandava a força o destemido Adriano José de Carvalho e Melo, Administrador do Marco de Canaveses. 

Carregou tão brava a polícia sobre a chusma dos ladrões,  que lhes foi remédio a fuga. Aí recebei José Teixeira uma bala nas costas a qual, segundo ele diz, o fizera saltar dez passos avante contra sua vontade. A bala  produziu-lhe  na coluna vertebral um choque elétrico meramente. 

Ao outro dia, José Teixeira teve de evidência que seu companheiro o denunciara.  Ao anoitecer foi à Lixa [concelho de Felgueiras]  onde pernoitava o traidor, entrou-lhe em casa,  e disse-lhe:

− Não te quero matar â traição; previne-te  como quiseres, que um nós há de morrer aqui.

− Ou ambos!  − disse o José Pequeno, lançando mão da faca.

−  Ou isso ! −  redarguiu o José do Telhado,  sacando de uma tesoura. E acrescentou:

−  Hei de  cortar-te com ela a língua. 

A primeira arremetida que se fizeram, apagaram a luz da vela,  e arcaram peito a peito. Revolveram-se na escuridade um quarto de hora, rugindo alternadamente injúrias e pragas ferozes. 

José Teixeira já tinha um braço rasgado; mas José Pequeno expedira o último rugido pela fenda que a tesoura lhe abria na garganta. O chefe ergueu o joelho sobre o peito do cadáver, quando  os dois gumes da tesoura se encontraram ao través da língua que o denunciara. 

O homicida aparecer na Lixa ao outro, e disse a multidão parada à porta do morto:

− Se não sabem quem matou este traidor, aqui o têm.

 E passou adiante. obrigando o cavalo a garbosa upas. 

Coisa é digna de reparo, que o ministério público não desse querela contra o assassino. Bem pensada a irregularidade, dá de si que a moral pública, representada pela polícia criminal e administrativa, propôs um voto de gratidão ao matador do formidável celerado da Lixa. (...) (pp. 100-102)

In: Camilo Castelo Branco, “Memórias do Cárcere”, II  Vol,  8ª ed. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1966, (1ª ed., Porto, 1862) (Coleçáo "Obras de Camilo Castelo Branco,  Edição Popular, 54")~

(Seleção / revisão e fixação de texto / negritos / parênteses retos: LG)

Este obra está disponível em formato pdf, no sítio da Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Lisboa, 2020, 232 pp, edição de Ivo Castro e Raquel Oliveira,  distribuição gratuita. (Segue a 2ª edição, revista pelo autor, Porto, 1864.)

https://imprensanacional.pt/wp-content/uploads/2022/03/Memorias-do-Carcere.pdf?btn=red

__________


(**) Vd. José Manuel de Castro - José do Telhado- Vida e aventura, a realidade. a tradição popular. Ed. autor, 1980, 193 pp., il. (Tipografia Guerra, Viseu).

(***) Vd. Wikipedia: Na época(1852) era conhecido por Regimento de Granadeiros da Rainha, unidade de elite criada em 1842, responsável pela guarda pessoal da Rainha D. Maria II; em 1855, o regimento adopta a actual designação de RI2 - Regimento de Infantaria 2, com sede em Lisboa. Quando Camilo escreveu as "Memórias do Cárcere" já era RI 2,

(****) O "quarto" era um equena bala de chumbo, de forma angular.

(*******) Na época o "pinto" valia cerca de 480 réis. Também era conhecido como "cruzado novo".

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Guiné 61/74 – P24789: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (14): A minha viagem para o Seminário (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Miradouro do Vale do Sabor

Foto: Câmara Municipal de Moncorvo, com a devida vénia


1. Em mensagem de 22 de Outubro de 2023, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos mais um excelente texto, desta feita, a sua ida para o Seminário:

A minha viagem para o Seminário

Até aos doze anos, para oeste de Brunhoso, nunca passei além do rio Sabor, que banhava esses limites da minha aldeia, onde ia por vezes no Inverno a ajudar à apanha da azeitona da Barca, no Verão a apanhar a amêndoa do Picão ou a apanhar os figos, dumas figueiras que a minha mãe tinha herdado, na ribeira das Picotas.

Para norte na direcção do planalto mirandês ia muitas vezes às feiras quinzenais de Mogadouro, por um caminho de terra batida, eram só cinco quilómetros, tocava com a vara vacas e vitelos que o meu pai queria vender, nas feiras quinzenais, que se realizavam num descampado enorme, onde se juntavam muitos animais, os seus donos ou os filhos deles e os compradores e intermediários, o mais conhecido tinha por alcunha o "Chispas", homem falador e irrequieto, natural da vila.

Nunca fomos ricos mas nesses anos com os meus pais em princípio de vida comum, era difícil esticar a manta para tapar umas necessidades pois outras podiam ficar a descoberto.

Recordo-me da casa onde nasci, eu e os meus três primeiros irmãos, todos varões, terei vivido lá dois anos. Casa muito humilde só com duas divisões, uma sobrelevada onde estava a cozinha e a lareira, coberta de telha vã, sem chaminé, o fumo saía por uma abertura que podia ser tapada, no caso de muita chuva ou neve, com uma chapa de metal. Descendo cinco degraus de madeira era o quarto, único, bastante espaçoso e forrado a madeira. Esta casa, contígua à casa grande dos seus sogros, terá sido herdada pela minha avó paterna, de uma parenta pobre chamada Maria "Pequena", casada mas sem filhos.

Anos difíceis para os meus pais, com poucos bens para se governarem, somente algumas terras de cultivo de cereais, emprestados pelos pais deles, e uma pequena horta, os filhos nasceram ao ritmo de um por ano, o nosso pai de compleição atlética mas a ter que tratar-se de doenças quase incuráveis para a época, uma delas a tuberculose, da outra não falo.

Sem saber se pelas condições insalubres da casa, o vento, o frio e calor a que estávamos sujeitos, ou pela falta de assistência médica, morreram dois desses meninos, outros viriam e meninas também, já nascidos em casas maiores, mais arejadas e confortáveis.

Para além dos produtos da horta e da carne de um ou dois porcos que a nossa mãe criava com farelo, castanhas, batatas e hortaliças, de que se curavam os toucinhos e os presuntos, e se faziam muitos enchidos, criava também galinhas e perus que davam ovos, que eram bons cozidos, em omeleta, ou estrelados com algum açúcar no final eram um manjar para mim, davam também boa carne para ocasiões especiais e festas, e para as alheiras que só podiam levar carne de aves ou de vitela, de porco não, segundo a tradição judaica.

Poucos produtos alimentares se compravam para a dieta alimentar da família, para além de algum peixe que a vizinha, tia Clementina, vendia na época própria, que poderia ser sardinha ou chicharro dividido para dois ou três, conforme o tamanho, para dar mais sabor às batatas e às couves, aos tomates, às vagens, aos pimentos e a outras hortaliças que a horta produzia com abundância.

A década de sessenta do século passado, depois do restabelecimento dos povos e das nações após o cataclismo da Segunda Guerra Mundial, foi muito fértil em acontecimentos sociais, políticos e artísticos. Portugal,  um pequeno país, guardado de influências externas pelo Oceano Atlântico, a ocidente, e pela Espanha franquista, fascista e imperial a leste, protegia-se da liberdade, da cultura e do progresso, pela vontade férrea de Salazar, um velho ditador puritano e asceta, durante muitos anos educado num seminário e que não querendo ser bispo, tinha uma ambição maior, ser um rei absoluto de Portugal, como os reis da Idade Média que recebiam o poder de Deus, através do Papa que os legitimava. Sem poder ser rei, tinha sangue plebeu, Salazar enquanto governante comportou-se como um rei absoluto sem coroa, tal como o ditador Francisco Franco em Espanha.

Não havia progresso, para além da agricultura e pastorícia, pois ele crente ou já descrente estava a viver nos tempos bíblicos das suas leituras religiosas que tinha vivido também na paz e bucolismo da sua infância.

Os lavradores, refiro-me a todos os que sozinhos ou com a ajuda de familiares ou pagando a trabalhadores, tinham as mãos calejadas e as sujavam na terra, com mais conhecimentos e instrução, já quase todos tinham a quarta classe, dão-se conta que com tantos filhos nascidos depois da última grande guerra, que os poucos hectares de terra que possuem, cada vez mais dividida pelos filhos, em herança, após a morte deles, mal lhes dariam alimento que bastasse a todos.

Sem máquinas agrícolas ou meios técnicos que possam pagar e sem trabalhadores agrícolas, que no limite da pobreza, estavam em fuga para a Europa rica para lá dos Pirinéus, sem terem meios económicos para pagarem a educação dos filhos em colégios ou pagarem a sua hospedagem nas cidades ou vilas onde havia os estabelecimentos de ensino oficiais, mandam os filhos a estudar para os seminários, onde os custos são menores. Tenho pensado que nos finais da década de cinquenta, Salazar terá conversado com o seu amigo e colega do Seminário, o Cardeal Cerejeira, duas faces da mesma moeda, em conhecimentos e sagacidade, um e outro, quando os seus olhos vivos, perscrutavam a sociedade, Salazar com a ajuda da polícia secreta e dos informadores, começam a dar-se conta que a juventude se afasta da Mocidade Portuguesa, da Igreja e de outros convívios "saudáveis". Muitos estudantes universitários contestam a autoridade e o Estado Novo, influenciados por ideologias de esquerda.

Será especulação ou hipótese académica, ambos conservadores religiosos e políticos, terão concluído que para afastar a juventude das ameaças das ideologias de esquerda que a podem corroer como um cancro, o melhor será franquear as portas dos seminários para educar e formar jovens mais às suas imagens e semelhanças.

Nesses meus verdes anos, dei-me conta na realidade de que houve uma mobilização de párocos e de padres de ordens religiosas a querer entusiasmar os jovens nesse sentido, com o agrado das mães contentes por poderem vir a ter um filho padre e os pais a terem um filho a estudar com poucos gastos.

Se chegassem a padres teriam um futuro, digno, sagrado segundo mães, se não conseguissem esse objectivo, muito difícil, poucos o conseguiam, poderiam fazer alguns estudos por preços bastante económicos que lhes poderiam dar acesso a um emprego no Estado, num banco, nos seguros ou nalguma empresa, que os poderia libertar da dureza do trabalho da terra e poderiam aspirar a uma vida mais limpa e digna, com outro prestígio aos olhos dos seus concidadãos e com mais vantagens económicas.

Dos seminários saíram poucos padres mas muitos estudantes, alguns com os estudos liceais completos, outros a meio ou perto do fim, muitos deles nas décadas de 60 e 70, foram preencher as necessidades de quadros milicianos militares da guerra colonial, alferes, furriéis e até capitães, na sua maior parte o regime confiava que eles não tivessem sofrido influências das doutrinas de Marx, Lenine, Mao-Tse-Tung ou dos reformadores republicanos e socialistas.

Alguns tiraram cursos superiores, da minha aldeia, o padre Neto, falarei dele adiante, formou-se como padre nos anos quarenta, nos anos cinquenta o meu amigo Francisco Carvalho, depois de muitos anos de seminário saiu e doutorou-se em filosofia e nos anos oitenta saiu padre o meu parente José Cordeiro. Os três estiveram na congregação dos Salesianos tal como eu e outros mais.

Quando no primeiro trimestre de 1969, o Batalhão de Cadetes milicianos de Mafra, na foz do Lizandro, atroou os ares, nessa noite escura e trágica, com gritos de assassinos e vamos embora, pela morte de três camaradas por incúria e desleixo dos instrutores, responsabilizando o comandante que tinha ficado no quartel, quem deu as palavras de ordem foram os estudantes universitários do Porto, Coimbra e Lisboa. Conheci bem um dos mortos, era um ex-seminarista, educado, afável, humilde, dormia perto de mim na camarata, no corredor oposto ao meu, foi o meu primeiro camarada conhecido a morrer nessa maldita guerra, recordo-o ainda com mágoa.

Somente depois de fazer a quarta classe, para meu gosto e desgosto, obedecia, os meus pais mandavam, fiz uma grande viagem para o Seminário de Mogofores, na Beira Litoral, onde o meu irmão mais velho já tinha estado um ano, os outros mais novos teriam como primeira grande viagem destinos semelhantes. Eu gostava de ir estudar, ir para o seminário nem tanto, nunca gostei de rezar mas o dinheiro era pouco. Os seminários faziam preços económicos para alojamento e alimentação, poderia até ser grátis para os filhos dos mais pobres.

No meu caso, quem me procurou entusiasmar para ir para de Mogofores foi o padre Neto da congregação dos Salesianos, amigo da casa dos meus pais, como a família dele. O pai dele era um homem respeitável na comunidade, tal como a sua mãe. O pai era um barbeiro, de ar calmo e sabedor em fazer curativos e aconselhar pomadas e chás para outros problemas. A mãe era uma senhora delicada, muito religiosa, socialmente muito estimada.  Tiveram também uma filha freira, da mesma congregação religiosa.

Pela vida fora eu e o padre Neto, fomos sempre amigos, sendo eu adolescente e ele um homem já perto dos quarenta anos, sentia-me lisonjeado por ele me tratar, tu cá, tu lá, como um igual.

Em textos anteriores já enfatizei a beleza das minhas viagens pela linha do Sabor e do Douro. O vale do Douro português será provavelmente um dos vales mais belos do Mundo.

O vale do Sabor é belo, emociona-me, arrepia-me, é o meu vale de lençóis, de águas bravas, águas azuis, verdes, castanhas cinzentas, hoje com a construção da barragem, de águas calmas, de ladeiras cobertas de oliveiras, amendoeiras, de salgueirais, troviscais, reflectidas em grandes espelhos de água.

Esta é sobretudo uma viagem no tempo, a idade não me permitia muita independência de espírito, estava muito ligado à terra, para a adjetivar com palavras belas. Dos montes da minha terra, dos vales, rios e ribeiros, gostava sem o saber, como gostava dos meus pais e irmãos, sem que que lho confessasse. O rio Douro tinha maior caudal e maiores arribas do que o Sabor.

Mal recordo a cidade do Porto, terei mudado logo, na estação de S. Bento para linha do Norte em direcção a Mogofores. Na linha do Norte, espreitei o mar que com curiosidade, nunca o vira, ter-me-ei dado conta da transformação da paisagem, sem montes, tão plana, tão diferente da transmontana.

Ainda hoje estranho um pouco as paisagens planas, dá-me a impressão que mudei de país. A região de Aveiro pela planura e pela ria lembra-me sempre a Guiné.

A linha do Sabor, que seguindo o rio a alguma distância, não o mostrava, já não existe, foi abandonada como todas as outras linhas dos afluentes do Douro, por ordem de um governante iluminado do poder central de Lisboa, com poucos protestos da capital do Norte. Não há norte ou sul, em Portugal há interior e litoral, no litoral vivem os cidadãos e no interior alguns indígenas em fase de extinção.

Na minha viagem para o seminário de Mogofores, terei ido só ou acompanhado, já não me lembro, sei que levava uma grande mala de cartão, não havia outras, com roupa marcada pela minha mãe, com as minhas iniciais, lençóis e toalhas também. Levava roupa para um ano, as distâncias eram grandes, os comboios lentos, não haveria férias de Natal ou da Páscoa.

Sendo um filho obediente, com um espírito rebelde, aceitava a necessidade de ir para o seminário, atendendo às dificuldades económicas da família que crescera, já éramos sete irmãos. A vida na agricultura nesse tempo era dura, além disso eu gostaria de aumentar os meus conhecimentos.

A minha predisposição à partida seria idêntica à dos meus conterrâneos, novos ou velhos, quando partiam para o Brasil e dos outros que saltaram fronteiras em direcção à França, a necessidade de melhor futuro fazia-nos partir a todos.

Não gostei da vida do seminário, muita igreja, logo pela manhã depois de levantar, muitas rezas, muitas filas por longos corredores húmidos, frio, fazia-me falta uma lareira, padres muito religiosos mas com pouca alma. Por vezes falava com o cozinheiro para matar saudades, era da minha aldeia, surdo, tinha aprendido a escrever, a falar e a arte da cozinha, numa casa de apoio para rapazes com dificuldades, no Colégio dos Órfãos no Porto dirigido por essa congregação.

Perto do Natal terei cometido uma barbaridade, um erro grave, um grande pecado que não consigo lembrar, por esse motivo fui chamado ao Prefeito, o padre que administrava a justiça com severidade, por quem fui punido com a dureza que se impunha, fortes reguadas. No final do castigo, furioso lancei o meu grito de revolta e disse a esse padre vermelhusco, mirandês de Ifanes, que ele não era meu pai e que portanto não tinha direito de me maltratar assim.

No dia seguinte fui falar com o Director, um padre naturalmente, a dizer que queria regressar a casa. Não me deixaram, obrigaram-me a passar o ano nesse "quartel", frio e húmido, o pior que conheci na minha vida.

Não gostei de Mafra, o tenente de instrução do meu pelotão era um sádico, que nos meses frios e húmidos do Inverno, nos tratava como animais, para meu desgosto era natural do Nordeste Transmontano.

O frio húmido do litoral entrava-me dentro pela carne e pelos ossos, o frio dos meus montes era mais agreste mas mais seco, era um ar frio que me afagava, ainda hoje é assim.

Nesse tempo os seminários condicionavam mais a personalidade dos jovens adolescentes do que a vida militar, pela disciplina excessiva, pelas práticas e o ensino religioso, tão obsoletos. Para os seminários iam jovens pré-adolescentes mais fáceis de moldar, para a tropa iam jovens já adultos, quase homens feitos.

No século passado, os seminaristas eram reconhecíveis por terem um semblante demasiado sério, quase triste, como se os anos de recolhimento e clausura lhes tivessem roubado, a alegria, a imaginação e os sonhos. A Igreja é uma instituição hierárquica, tal como a tropa que foi copiar a organização à Igreja. Em ambas se cultiva o poder e a ostentação para dominar e impressionar os simples cidadãos, há bispos, arcebispos, padres, generais, coronéis, capitães, todos muito vaidosos e vistosos, Deus, um velho já cansado a todos absolve.

Salazar esteve quarenta anos no poder, pela sua graça, de alguns polícias demoníacos e com a ajuda da Igreja e das Forças Armadas.

____________

Notas do editor

Último poste da Francisco Baptista de 6 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24374: (In)citações (246): O regresso dos Soldados (Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf)

Último poste da série de 24 DE OUTUBRO DE 2023 > Guiné 61/74 – P24787: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (13): 50 ofícios e profissões de antigamente, extintos ou em vias de extinção (Luís Graça, Lourinhã)

sábado, 14 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24755: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (9): A pisa, a desfolha, a apanha da lenha nos montes, o cultivo da batata, a olivicultura... (António Carvalho, Medas, Gondomar)

Marco de Canaveses > circa 1947 _ A vinha de enforcado, as vindimas

Marco de Canaveses > circa  1947 > O típico carro de bois de Entre Douro e Minho


Fonte: Aguiar, P. M. Vieira de - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947. (Com a devida vénia).


1. Já aqui publiquei,  há dois anos atrás,  várias notas de leitura sobre o livro "Um caminho de quatro passos", do António Carvalho. (*)

Para além das pequenas histórias relacionadas com a sua experiência como furriel miliciano enfermeiro no sul da Guiné, durante dois anos (CART 6520/72, Mampatá,1972/74),   encantou-me, de sobremaneira, na altura em que o li,  as suas vivas recordações da infância passada em Medas, Gondomar, num ambiente rural que muitos de nós ainda chegámos a  conhecer, tanto no Portugal continental como insular e até ultramarino. (estou-me a lembrar no nosso amigo e irmãozinho Cherno Baldé,  "menino e moco em Fajonquito").0

Não sendo propriamente um "menino da cidade", tendo vivido numa pequena vila à beira mar, Lourinhã, com avós, tios e primos ali ao lado, no campo, a 3 km de casa  (Nadrupe e Quinta do Bolardo), eu também acompanhei,  até aos meus 10, 11, 12 anos,  algumas das atividades marcantes da vida rural,  como a panha da fruta (as macas, os fihosGomo as vindimas, em setembro, ou a matança do porco, em pleno inverno.

Na região do Oeste, na Estremadura da minha infância, na altura uma das regiões do país com mais produção vitivinícola (até aos anos 60), vinham ranchos de homens e mulheres das Beiras, os "ratinhos" ou "bimbos", vindimar os milhares de hectares de vinha no tempo em que o vinho, dizia a propaganda nacional, dava de comer a um milhão de portugueses....  Era também um conde lho de muitas  "caldeiras"  (destilarias) onde se "queimava vinho" para a produção de aguardente vínica com destino à região demarcada do Douro.

Deslocavam-se os ranchos beirões, em grupos com um capataz, e dormiam nos palheiros, como animais... Depois, os homens foram para a guerra ou a salto para França, arrancaram-se as vinhas, mecanizou-se a agricultura, a vinha e o trigo deu lugar a outras culturas mais rentáveis, primeiro os pomares de pera rocha e depois as hortícolas, hoje as estufas, a batata, as abóboras, etc.

Mais tarde, a partir de 1975, descobri a  região do vinho verde, e ainda a tempo de "apanhar em andamento o passado", a vinha de enforcado, as latadas, o milho, os engenhos (moinhos a água), as histórias do linho e das desfolhadas, as tradições comunitárias como as "serviçadas", a matança do porco,  os carros de bois "a chiar pelos montes acima ou abaixo", a parceria agrícola e pecuária (formas pré-capitalistas de produção) , as feiras de gado, as romarias, os bailes mandados, etc.... E, pela primeira vez (e única) na minha vida também ajudei a pisar a uva (tinta) no lagar...

2. Estas  e outras tradições, ligadas a uma economia agrícola fracamente monetarizada, e ainda em grande parte de autossubsistência (como aquela que se praticava até aos anos 50/60 em Entre Douro e Minho), hoje já se perderam, embora perdurando na memória dos "antigos"...  

Voltei a encontrá-las (e a saboreá-las) no livro do António Carvalho, "Um caminho de quatro passos". Achei que havia similitudes entre Medas (Gondomar) e Candoz (Marco de Canaveses), afinal estamos a escassos 60 quilómetros de distância, na mesma região, a de Entre Douro e Minho. E até com algumas das recordações da minhas idas à aldeia dos meus avós e tios.

A primeira parte do livro (e nomeadamente a reconstituição do quotiano da vida rural em Medas, Gondomar,  até aos anos 60 do séc. XX) tem inegável interesse documental (e até etnográfico).  

E, mais, tem interesse sociológico: muitos dos homens e mulheres da nossa geração ( que fez guerra colonial / guerra do ultramar, 1961/74) conheceram a dureza da vida no campo e do trabalho agrícola, e, em muitos casos, foi vítima, "avant la lettre", da exploração do trabalho infantil.

Para além da riqueza das observações sobre as culturas e as atividades agrícolas, os apontamentos que o autor nos deixa sobre a sua infância são saborosos  pelos regionalismos ou provincianismos usados, parte dos quais  continuam por grafar nos nossos dicionários ou então são deconhecidos de muitos falantes da língua portuguesa, a começar pelos citadinos e pelos mais novos.

uma subcultura camponesa do Norte que está em extinção. Na realidade:

  • quem sabe o que é uma "pipa" e a sua equivalência em litros ?  
  • e menos ainda o significado de "desarroar as pipas" (tirar o sarro);
  • "canastro" (ou espigueiro) também é um vocábulo estranho a um lisboeta;
  • tal como "canistrel" (pequeno cesto de vime); 
  • ou como "calda bordalesa", "pingue de porco", "queiró, carqueja e tojo", "pisa", "desfolhada", etc.

A "ajuda rogada" é uma expressão idiomática que me parece muito mais nortenha do que sulista. Ou mesmo se pode dizer de "carro de milho" como medida, ou o "almude" ou a "talha de barro almudeira" (onde se guardava o azeite)... 

Embora o sistema métrico tenha entrado em vigor em Portugal, por volta de 1860, com a intenção de se uniformizae o sistema de pesos e medidas (mudança fundamental para a criação de um verdadeiro mercado e, portanto, para o desenvolvimento da economia capitalista, a par das estradas, do caminho de ferro, da máquina a vapor, do código comercial, etc.), persiste até hoje, no campo, o uso das antigas unidade de  medidas portuguesas, como por exemplo, moio, alqueire,  quarta, oitava, maquia , etc. (medidas de capacidade para secos); ou tonel, pipa, almude,pote, canada, quartilho, etc. (medidas de capacidade para líquidos).

Há, no livro do António Carvalho,  expressões deliciosas, castiças, e outras de que lembro de ler e ouvir no Norte, como:

  • "à  medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar";
  • "tanger os bois";
  • "guiar à soga";
  •  "o moleiro que arrochava os sacos de farinho sobre o dorso das mulas";
  • "os dois porcos grandes, que se queriam gordos";
  • "um terço de despacho (desembaraço)";
  • "com a sua licença, o porco";
  • "apercar";
  •  "freima";
  • "aneira";
  • "anos minguados"
  •  "barco rabão";
  •  "sortes" ... 

Enfim, vocábuos e expressões, de sabor castiço, camiliano, que enriquecem a língua portuguesa, embora tendam a desparecer ou sejam cada mais de uso local ou restrito, face ao "rolo  compressor" dos mídia, da televisão, das redes sociais, da globalização,  etc..

Por isso, volta aqui a reproduzir-se alguns excertos das primeiras páginas do livro  do António Carvalho (pp. 15-19), com a amável condescendência do autor, e como contributo para a nova série que temos em curso, "Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço", onde a sua participação  (para mais, agora às voltas com a gestação de um novo livro)  é absolutamente  obrigatória (*), a par de outros camaradas como o transmontanto Francisco Baptista, por exemplo. (Temos de recuperar alguns dos seus escritos sobre Brunhoso.)


António Carvalho, o "Carvalho de Mampatá", ex-fur mil enf, CART 6250, Mampatá, 1972/74, membro da Tabanca Grande desde 13/9/2008, autarca na antiga freguesia das Medas, Gondomar durante 28 anos (hoje, União das freguesias de Melres e Medas); tem cerca de 80 referências no nosso blogue.

(...) "Nasci aqui, neste pedaço de terra, circunscrito por uma curva muito apertada do rio Douro e pela serra de Açores, rebatizada (não sei por quem nem porquê) a partir da segunda metade do séc. XX, como serra das Flores, como aqui nasceram também, pelo menos, alguns dos meus octavós e muitos dos seus descendentes dos quais eu provenho.

(...) Talvez também por isso, nem em sonhos me passou algum dia pela cabeça assistir à assimilação da minha freguesia por outra, numa amálgama sem identidade !

(...) Espero não morrer sem ver a minha freguesia ressuscitada – a única coisa que me interessa, ao nível da política local. (...)" (pp. 212/214)  (...)

A PISA E A DESFOLHADA


Setembro era o mês de maior azáfama, porque se juntava a colheita do milho e a vindima, não havendo um minuto de folga naqueles dias ainda grandes, mas já sem as reparadoras sestas. 


Na nossa casa [ em Medas].e nas de envergadura semelhante era sempre preciso assalariar mulheres , sobretudo na vindima, mas também na colheita do milho porque, antes que viessem as chuvas de outubro, o vinho tinha que estar nas pipas e as espigas no canastro. 

Enquanto um carro [de bois, não havia ainda ] andava no transporte das uvas, dos campos para o lagar, o outro carregava as espigas, para a eira. O lagar grande, de quatro pipas, levava dois dias a encher, mas o mais pequeno ficava lotado num só dia. Se hoje havia uma pisa , amanhã podia haver uma desfolhada. As uvas eram pisadas à noite, sempre com a ajuda rogada dos nossos vizinhos. 

Nós, os da casa, à medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar, não tínhamos como evitar esse esforço acrescido, mesmo depois de um dia de trabalho pesado. 

É certo que, quando chegávamos ali aos treze ou catorze anos, entrar pela primeira vez no lagar era sinal de que já éramos homens e essa assunção, havia muito tempo almejada, de uma pretensa maioridade, envaidecia-nos. 

O meu avô nunca pisava, mas estava sempre presente para servir vinho e cigarros aos pisadores, ao mesmo tempo que apontava para um ou outro ponto do lagar onde a grainha ainda não tinha chegado à superfície, sinal de que era preciso ali mais pé. O meu pai, esse andava por ali a dessarroar as pipas e a apertar-lhes as aduelas ou agarrado à prensa a aproveitar os últimos litros de vinho. 

No fim de cada pisa, à ordem do meu avô, saia o primeiro pisador e só se lhe seguia o segundo depois do primeiro ter lavado as pernas, e assim sucessivamente até ao último. 

Alguns pediam aguardente para se livrarem da comichão nas pernas aproveitando para, de um só trago, engolir um pequeno copo dela, antes que todos subissem as escadas de acesso à nossa grande cozinha, onde a minha mãe e a minha tia tinham posto na mesa três travessas grandes de arroz de tomate com bacalhau frito. 

Lembro-me de me sentir grande quando já fazia parte do grupo dos pisadores, sentado ali à mesa, com os meus irmãos mais velhos e o pessoal de fora.

As desfolhadas eram feitas também à noite, ao ar livre, com a luz do luar, se fosse dia dele, com a ajuda de algumas pessoas vizinhas, das nossas boas relações, sobretudo mulheres e raparigas bem novas que se juntavam na nossa eira, a pouco mais de cem metros de casa. Alguns, ainda crianças, à medida que o folhelho se ia juntando, adormeciam cansados, debaixo dele. 

Havia sempre um dos meus irmãos a subir a escada de acesso ao canastro, onde cabiam mais de seis carros de milho, enquanto outro se ocupava a acomodar as espigas dentro das divisórias. 

Era ali que as espigas ficavam a secar, para serem debulhadas, à mediada que precisássemos do milho, em qualquer dia de céu limpo. Debulhava-se sempre para cima de um carro de cada vez, guardando-se o milho, já limpo, numa das caixas grandes que tínhamos em casa. 

E era dessa caixa, enorme aos meus olhos de criança que, todas as semanas, se enchiam dois sacos para entregar ao moleiro que os arrochava sobre o dorso das mulas.

E não era demasiado o milho que mandávamos moer, porque para além da farinha para a fornada semanal, também os dois porcos grandes, que se queriam gordos, gastavam dela.


A ÁREA BRAVIA E A LAVRADIA


Nenhuma casa de lavoura podia ter grande expressão nem sustentabilidade se não tivesse uma área de terreno bravio proporcional ao terreno lavradio, onde os lavradores tinham as suas reservas de mato para as camas do gado. 


E a importância dos matos, constituídos fundamentalmente por queiró, carqueja e tojo,  tornou-se mesmo decisiva, quando a cultura do milho e da batata se impuseram, em detrimento da cultura do linho e dos cereais de grão miúdo, no séc. XIX, exigindo a estabulação do gado bovino para, deste modo, se obter maior quantidade de estrume. 

Ora nessa área de terreno  inculto, dispersa por várias parcelas a que os lavradores chamavam sortes, por terem sido distribuídas  por sorteio, em número proporcional à área agricultada de cada um, não crescia só o mato, mas medravam ainda o pinheiro e o eucalipto, para além das espécies autóctones, como o carvalho, o sobreiro, o castanheiro, o salgueiro e o medronheiro, estes em progressiva redução. 

Os lavradores maiores que tinham excedentes de mato,  vendiam, para os fornos do Porto, alguma carqueja e queiró, mas era na venda de lenha de eucalipto e pinho que eles, anualmente, incorporavam no seu orçamento familiar, uma verba significativa.

 Habitualmente era no fim do verão fim do verão que vendiam os seus pinheiros, reservando para consumo doméstico toda a ramagem que era empilhada ao lado das casas, perto da cozinha, numa meda proporcional ao número de pessoas de cada família. Eram essas rameiras, em vez das lenhas mais nobres, que se utilizavam nas  lareiras de quase todas as casas, antes da chegada dos fogões a gás e a eletricidade

lenha das videiras que resultavam da poda, bem como os carolos do milho eram também combustíveis excelentes usados nas lareiras e nos fornos domésticos. As famílias que não tinham sortes pediam aos lavradores autorização para cortar uma rodada de ramos em cada pinheiro, carregando-os em feixes à cabeça, até suas casa. 

As medas de ramos de pinho feitas todos os anos, no fim do verão, à porta de cada família, faziam também parte dos monumentos rurais da minha freguesia e das vizinhas, e pelo seu tamanho também se ajuizava da pujança da casa.


A CULTURA DA BATATA


Logo a seguir ao milho e ao vinho,  a batata era o produto mais representativo na nossa casa de lavoura, em termos de volume e de rendimento. 


Desde a década de quarenta até à minha adolescência uma parte significativa do trabalho era dedicado ao cultivo deste tubérculo que, semeado entre março e abril, não carecia de rega, adaptando-se assim muito bem aos nossos terrenos onde a água não abundava. 

O meu avô e mais tarde o meu pai deram uma especial atenção ao incremento desta cultura e terão sido, durante duas ou três décadas, os maiores produtores de batata da freguesia. 

Em quase metade dos nossos campos, bem estrumados, semeávamo-las, ficando os restantes, aqueles que podiam ser regados, dedicados ao milho e feijão consociado. Depois de se ter coberto o terreno com uma boa camada de estrume, lavrava-se e gradava-se com os bois. 

O trabalho de que mais gostava, aí pelos meus oito ou nove anos, era de me sentar na grade, agarrado com uma das mãos a uma das travessas enquanto que, com a outra munida de uma vara, tangia os bois à ordem do meu pai ou de um irmão mais velho que os guiava à soga. 

Não me dói a consciência por , com o meu peso, exigir aos bois aquele esforço suplementar, porque, se não fosse eu a desfrutar daquele prazer, um calhau grande seria lá posto na minha vez para fazer os dentes da grade penetrar bastante na leiva.

Encontrando-se a terra bem desfeita logo se começava a semeadura. Numa ponta do campo, aproveitando a sombra de alguma árvore, à minha mãe cabia sempre o trabalho de partir as batatas de semente, o que ela fazia com uma rapidez impressionante, tendo ainda o cuidado de deixar um só galeiro para cada bocado. 

A minha avó materna também ajudava algumas vezes bem como a minha tia Quina, mas ficavam-se por um terço do despacho da minha mãe. O meu avô dirigia as operações dos homens da enxada, enquanto o meu pai já andava a lavrar outro campo. 

Havia normalmente dois ou três homens a abrir regos e meu avô, sabendo da capacidade e vontade de cada um, mandava sempre o mais lento começar no primeiro rego, deixando o último para o trabalhador melhor, forçando deste modo os mais lentos a andar da perna, antes que o mais rápido esbarrasse com ele, o que seria uma vergonha para o atropelado. 

A mim, como a qualquer um dos meus irmãos, a partir dos sete ou oito anos, estribados por uma varinha de vinte e cinco centímetros, cabia-nos a tarefa de dispor as batatas nos sulcos que os adultos iam abrindo.

Naquele tempo não se usavam herbicidas, por isso logo que as primeiras ervas daninhas afloravam à superfície recorria-se ao trabalho de mulheres que vinham fazer a sacha removendo toda a vegetação nociva. 

Entretanto era preciso pulverizar os batatais com calda bordalesa e inseticida de modo a erradicar-se o míldio e o escaravelho. Julho e agosto eram os meses da colheita e do armazenamento numa loja fresca e escura. 

Tínhamos batatas em barda e, como a produção excedia largamente o consumo, vendíamo-las para as mercearias da freguesia e até para o Porto onde as fazíamos chegar por barco rabão.

Os campos de batatas ficavam disponíveis para nova cultura , a partir de agosto, semeando-se então, nabos, em quase todos eles, no mês de setembro, logo que, na mudança do vento, se adivinhava a ocorrência das primeiras chuvadas outonais, aproveitando-se a generosa estrumação de que tinham beneficiado. 

cultura do nabal era também muito rentável, até aos anos sessenta, quando vinham diariamente meia dúzia de mulheres da outra margem do rio, comprar grandes quantidades de nabos que carregavam em gigos bem acogulados, destinados à alimentação humana e à engorda de porcos.

O AZEITE , O ÓLEO  DOURADO


Na agricultura de auto-suficiência tudo o que fosse importante para a alimentação havia de ser produzido numa casa de lavoura. 


Mas a oliveira não gosta dos ares marítimos do litoral nem dos nevoeiros, por isso dificilmente alguma casa de lavoura das Medas, por maior que fosse, produzia meia pipa de azeite [talvez cerca de 200 litros]. em anos bons, sendo que, na rigorosa gestão da nossa casa, era imperativo guardá-lo, dos anos melhores para os minguados. 

Entre novembro e dezembro  era a altura de se colher a azeitona nas oliveiras invariavelmente plantadas no bordo dos campos, para não ensombrarem as outras culturas. O povo dizia que eram aneiras, por isso nunca acreditava que a um ano farto pudesse suceder outro igual e tratava-as como parentes pobres da agricultura, sem grandes cuidados,  deixando que as copas se desenvolvessem na vertical, sempre com o propósito de  evitar que se apoderassem do solo com a sua sombra.

A colheita era quase toda feita através de escadas de pinho com passais de oliveira que os rapazes ou homens feitos escalavam, de canistrel na mão, para chegarem até onde fosse possível. Nalguns casos era mesmo imperioso varejar os ramos mais altos.

 Ultimamente estendíamos, debaixo de algumas oliveiras, um panal feito de serapilheira para a recolha da azeitona que varejávamos do chão e de cima das escadas. 

A azeitona colhida mais cedo e sempre à mão era para curtir em talhas de barro almudeiras, e era também nestas talhas grandes que se guardava o azeite, esse preciosíssimo óleo que era servido à mesa muito moderadamente e quase só em batatas cozidas, quando não fossem acompanhadas de carne gorda.

Na culinária a gordura que se usava mais frequentemente era o pingue de porco, branco como a neve, guardado em pequenas talhas para o ano. (...)

© António Carvalho (2021)

(Seleção, revisão e fixação de texto, negritos, para publicação deste poste: LG) (Com a devida vénia...)




Capa do livro do  António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.

O livro (se não estiver já esgotado) pode ser adquirido, ao preço de 15,00 euros (portes incluídos, no território nacional ou estrangeiro) | Contactos do autor: António Carvalho, Medas, Gondomar | Email: ascarvalho7274@gmail.com | Telemóvel: 919 401 036
_____________

Notas do editor:


17 de fevereiro de 2022 > Guiné 61/74 - P23005: Notas de leitura (1420): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte III (Luís Graça): uma excursão a Lisboa, de 4 dias, em 1959

(**) Último poste da série : 13 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)