sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)

Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz >  2011 > O velho carro de bois, centenário, típico da região de Entre Douro e Minho. Não existe mais, hoje, a não ser as rodas...Símbolo de um mundo que desapareceu... E com ele,  uma certa ruralidade e rusticidade do homem português, características socioantropológicas sem as quais muito possivelmente não teria sido possível manter a nossa longa guerra colonial / guerra do ultramar (1961/74)... E a resistência, ativa e passiva, contra a violência de Estado e dos senhores da nobreza e do clero... E a guerrilha contra os invadores da Pátria, os Junot, os Soult, os Massena... E a cumplicidade com os Zé do Telhado, os Brandão, os Remexido... 

 Foto (e imagem): © Luís Graça (2011). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Se tens galinha pedrês, não a  mates nem a dês

por Luís Graça

Como era simples a vida da camponesa que ia ao monte buscar lenha, a moinha, as pinhas, as giestas. No carro de bois, que chiava pelo estradão, com a ca(n)ga(nça) toda de uma junta de bois nados e criados em Entre Douro e Minho. 

Ou que, de saco à cabeça, ia levar o grão de centeio ou de milho à azenha, lá longe, no Porto Antigo onde abicavam os barcos rabelos, depois de vencidos os temidos cachões do rio Douro, até então indomável.

Seguia, a pé, pela linha férrea do Douro, feita senhora, a Leonora, mas não segura... Com o comboio a apitar ao longe, e a avisar que já tinha chegad0 ao Juncal. E que a barragem do Carrapatelo haveria de trazer um dia a luz, a civilização, o emprego, a paz, a ordem e o progresso.

E que abria as pernas, depois, ao seu homem e senhor, seu amo, no meio do campo de milho.

Que quadro, que pintura, que pitoreco, que beleza, tardo-naturalística,  desta humilde cena portuguesa, desta gente sem rosto, sem nome, sem registo, sem trilho, sem a mística nem a estética do Movimento Nacional Feminino. Sem dom nem dó. Mas com fé, esperança e caridade. 

"Porra e lenha, é quanto a venha", diz o meu home, que anda num virote, enquanto a água de Covas é benção do céu para o milho e a vinha que cresce, apertada, na bordadura, nos solcalcos de granito...

Como era simples e bruta a vida da mulher do campo, no tempo em que ainda havia a distinção socioantropológica entre a cidade e o campo, ou a diferenciação teológica entre o céu, o purgatório e o inferno. E cada coisa estava no seu lugar.  E a freima também matava a gente. A freima da lavoura, mais a salgadeira.  E "na casa deste home, quem na trabalha na come"- 

E havia o carro de bois, e o penso para o tourinho, e a lavagem para os cevados, e a maçã, biológica, do paraíso perdido, e o império colonial,  e as expedições do Serpa Pinto, vizinho ali de Cinfáes, à distância de um tiro de canhão, e as campanhas de pacificação do Teixeira Pinto (a quem os guinéus chamavam o "capitão-diabo")... 

E mais a costeleta de Adão e as criadas de lavoura que eram violadas em cima da meda da palha de centeio. Enquanto os bois gemiam e babavam-se, sob a canga,  e estrumavam a terra,  as rodas do carro chiavam, e o varapau voltejava no adro da romaria, sob o efeito  estonteante do vinho e dos foguetes,  e o senhor abade praguejava: "freiras e frieiras é coçá-las e deixá-las". 

Como eram imutáveis as leis que regiam as relações entre a terra e o sol, o solstício do verão e do inverno, entre presas e predadores, entre machos e fêmeas, entre fidalgos e rendeiros, entre donzelas e donzéis, entre soldados e capitães, entre operários e patrões, entre ricos e pobres. entre cabaneiros e os sem eira nem beira. E a sexta-feira era o dia de praticar a caridade, dar aos pobres,  que o mesmo era emprestar a Deus. E o filho do "manjor"  e da criada brincava com o "morgadinho" que nunca poderia ser seu irmão  à luz das leis de Deus e dos homens. Porque fora feito no pecado, em cima da palha do milho  na eira e  não em lençóis alvos e castos e bentos de linho. 

"Se queres conhecer o vilão mete-lhe o mando na mão". E cada um tomava o seu lugar no desconcerto da nação e no palco do teatro da vida e da morte.

E ela levava, com a sua licença, a vaca, ao boi do povo para a emprenhar, E, com a sua licença, o porco à feira para, com sorte, no regresso trazer uns vestidinhos de chita, por meia dúzia de reis, para o dia da comunhão da filha da puta da canalha.

Como era estupidamente alegre e feliz e livre a infância, breve, dos rapazes e raparigas, no tempo em que a sardinha era para três. E sobrevivia o mais forte e o pai era pai e patrão e a mãe era mãe, pai e patroa,  quando o home partia para os brasis ou outros eldorados que ficavam para além do mar, ou simplesmente para lá ou para cá das serras do Marão,das Meadas,  de Montemuro, da Aboboreira, de Montedeiras. E muitas vezes já não voltava, muito menos rico, muito menos vivo ou inteiro.

E o galo cantava para a galinha pedrês, e a vida fiava-se e tecia-se linha a linha, em branco fio de linho, no tear da dor e da solidão.

Como era curta a vida, a esperança de vida, e certas, tão certas, a velhice e a morte. Mais a morte que a velhice, que "esta vida não chega a netos nem a filhos com barba", garantia o coveiro e certificava o facultativo.

"Muita saúde, pouca vida, porque Deus não dava tudo", lembrava o sino da igreja da aldeia, quando morria algum cristão, velho, que os novos já tinham seguido nas naus da Índia, fugidos da santa inquisição.

E "quem não poupa lenha não poupa nada que tenha", acrescentava, misógino, o rifão. Ou noutra variante, quiçá feminista "avant la letre": "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês".

Quinta de Candoz,
setembro de 2008, 
versão revista em 5/10/2023
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Nota do editor:

Último poste da série > 9 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24737: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (7): O Pão que Deus Amassou (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

1 comentário:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Conheci, ainda nos anos 70/80, várias histórias "infamantes" de homens e mulheres que nasceram "de pai incógnito"... E de mulheres que foram "enganadas", abandonadas e difamadas, pelos machões dos namorados e e até maridos...

Estas "histórias" ainda pertencem ao "Portugal de antigamente" que está longe de estar morto e enterrado... E que continua a ter os seus cultores e cantores...