Marco de Canaveses > circa 1947 _ A vinha de enforcado, as vindimas
1. Já aqui publiquei, há dois anos atrás, várias notas de leitura sobre o livro "Um caminho de quatro passos", do António Carvalho. (*)
Para além das pequenas histórias relacionadas com a sua experiência como furriel miliciano enfermeiro no sul da Guiné, durante dois anos (CART 6520/72, Mampatá,1972/74), encantou-me, de sobremaneira, na altura em que o li, as suas vivas recordações da infância passada em Medas, Gondomar, num ambiente rural que muitos de nós ainda chegámos a conhecer, tanto no Portugal continental como insular e até ultramarino. (estou-me a lembrar no nosso amigo e irmãozinho Cherno Baldé, "menino e moco em Fajonquito").0
- quem sabe o que é uma "pipa" e a sua equivalência em litros ?
- e menos ainda o significado de "desarroar as pipas" (tirar o sarro);
- "canastro" (ou espigueiro) também é um vocábulo estranho a um lisboeta;
- tal como "canistrel" (pequeno cesto de vime);
- ou como "calda bordalesa", "pingue de porco", "queiró, carqueja e tojo", "pisa", "desfolhada", etc.
- "à medida que crescíamos e íamos cabendo no lagar";
- "tanger os bois";
- "guiar à soga";
- "o moleiro que arrochava os sacos de farinho sobre o dorso das mulas";
- "os dois porcos grandes, que se queriam gordos";
- "um terço de despacho (desembaraço)";
- "com a sua licença, o porco";
- "apercar";
- "freima";
- "aneira";
- "anos minguados"
- "barco rabão";
- "sortes" ...
Por isso, volta aqui a reproduzir-se alguns excertos das primeiras páginas do livro do António Carvalho (pp. 15-19), com a amável condescendência do autor, e como contributo para a nova série que temos em curso, "Coisas & loisas do nosso tempo de menino e moço", onde a sua participação (para mais, agora às voltas com a gestação de um novo livro) é absolutamente obrigatória (*), a par de outros camaradas como o transmontanto Francisco Baptista, por exemplo. (Temos de recuperar alguns dos seus escritos sobre Brunhoso.)
António Carvalho, o "Carvalho de Mampatá", ex-fur mil enf, CART 6250, Mampatá, 1972/74, membro da Tabanca Grande desde 13/9/2008, autarca na antiga freguesia das Medas, Gondomar durante 28 anos (hoje, União das freguesias de Melres e Medas); tem cerca de 80 referências no nosso blogue.
(...) "Nasci aqui, neste pedaço de terra, circunscrito por uma curva muito apertada do rio Douro e pela serra de Açores, rebatizada (não sei por quem nem porquê) a partir da segunda metade do séc. XX, como serra das Flores, como aqui nasceram também, pelo menos, alguns dos meus octavós e muitos dos seus descendentes dos quais eu provenho.(...) Talvez também por isso, nem em sonhos me passou algum dia pela cabeça assistir à assimilação da minha freguesia por outra, numa amálgama sem identidade !
(...) Espero não morrer sem ver a minha freguesia ressuscitada – a única coisa que me interessa, ao nível da política local. (...)" (pp. 212/214) (...)
A PISA E A DESFOLHADA
Setembro era o mês de maior azáfama, porque se juntava a colheita do milho e a vindima, não havendo um minuto de folga naqueles dias ainda grandes, mas já sem as reparadoras sestas.
As desfolhadas eram feitas também à noite, ao ar livre, com a luz do luar, se fosse dia dele, com a ajuda de algumas pessoas vizinhas, das nossas boas relações, sobretudo mulheres e raparigas bem novas que se juntavam na nossa eira, a pouco mais de cem metros de casa. Alguns, ainda crianças, à medida que o folhelho se ia juntando, adormeciam cansados, debaixo dele.
A ÁREA BRAVIA E A LAVRADIA
Nenhuma casa de lavoura podia ter grande expressão nem sustentabilidade se não tivesse uma área de terreno bravio proporcional ao terreno lavradio, onde os lavradores tinham as suas reservas de mato para as camas do gado.
E a importância dos matos, constituídos fundamentalmente por queiró, carqueja e tojo, tornou-se mesmo decisiva, quando a cultura do milho e da batata se impuseram, em detrimento da cultura do linho e dos cereais de grão miúdo, no séc. XIX, exigindo a estabulação do gado bovino para, deste modo, se obter maior quantidade de estrume.
Ora nessa área de terreno inculto, dispersa por várias parcelas a que os lavradores chamavam sortes, por terem sido distribuídas por sorteio, em número proporcional à área agricultada de cada um, não crescia só o mato, mas medravam ainda o pinheiro e o eucalipto, para além das espécies autóctones, como o carvalho, o sobreiro, o castanheiro, o salgueiro e o medronheiro, estes em progressiva redução.
Os lavradores maiores que tinham excedentes de mato, vendiam, para os fornos do Porto, alguma carqueja e queiró, mas era na venda de lenha de eucalipto e pinho que eles, anualmente, incorporavam no seu orçamento familiar, uma verba significativa.
Habitualmente era no fim do verão fim do verão que vendiam os seus pinheiros, reservando para consumo doméstico toda a ramagem que era empilhada ao lado das casas, perto da cozinha, numa meda proporcional ao número de pessoas de cada família. Eram essas rameiras, em vez das lenhas mais nobres, que se utilizavam nas lareiras de quase todas as casas, antes da chegada dos fogões a gás e a eletricidade.
A lenha das videiras que resultavam da poda, bem como os carolos do milho eram também combustíveis excelentes usados nas lareiras e nos fornos domésticos. As famílias que não tinham sortes pediam aos lavradores autorização para cortar uma rodada de ramos em cada pinheiro, carregando-os em feixes à cabeça, até suas casa.
As medas de ramos de pinho feitas todos os anos, no fim do verão, à porta de cada família, faziam também parte dos monumentos rurais da minha freguesia e das vizinhas, e pelo seu tamanho também se ajuizava da pujança da casa.
Encontrando-se a terra bem desfeita logo se começava a semeadura. Numa ponta do campo, aproveitando a sombra de alguma árvore, à minha mãe cabia sempre o trabalho de partir as batatas de semente, o que ela fazia com uma rapidez impressionante, tendo ainda o cuidado de deixar um só galeiro para cada bocado.
Naquele tempo não se usavam herbicidas, por isso logo que as primeiras ervas daninhas afloravam à superfície recorria-se ao trabalho de mulheres que vinham fazer a sacha removendo toda a vegetação nociva.
Os campos de batatas ficavam disponíveis para nova cultura , a partir de agosto, semeando-se então, nabos, em quase todos eles, no mês de setembro, logo que, na mudança do vento, se adivinhava a ocorrência das primeiras chuvadas outonais, aproveitando-se a generosa estrumação de que tinham beneficiado.
O AZEITE , O ÓLEO DOURADO
Na agricultura de auto-suficiência tudo o que fosse importante para a alimentação havia de ser produzido numa casa de lavoura.
Mas a oliveira não gosta dos ares marítimos do litoral nem dos nevoeiros, por isso dificilmente alguma casa de lavoura das Medas, por maior que fosse, produzia meia pipa de azeite [talvez cerca de 200 litros]. em anos bons, sendo que, na rigorosa gestão da nossa casa, era imperativo guardá-lo, dos anos melhores para os minguados.
Entre novembro e dezembro era a altura de se colher a azeitona nas oliveiras invariavelmente plantadas no bordo dos campos, para não ensombrarem as outras culturas. O povo dizia que eram aneiras, por isso nunca acreditava que a um ano farto pudesse suceder outro igual e tratava-as como parentes pobres da agricultura, sem grandes cuidados, deixando que as copas se desenvolvessem na vertical, sempre com o propósito de evitar que se apoderassem do solo com a sua sombra.
A colheita era quase toda feita através de escadas de pinho com passais de oliveira que os rapazes ou homens feitos escalavam, de canistrel na mão, para chegarem até onde fosse possível. Nalguns casos era mesmo imperioso varejar os ramos mais altos.
Ultimamente estendíamos, debaixo de algumas oliveiras, um panal feito de serapilheira para a recolha da azeitona que varejávamos do chão e de cima das escadas.
A azeitona colhida mais cedo e sempre à mão era para curtir em talhas de barro almudeiras, e era também nestas talhas grandes que se guardava o azeite, esse preciosíssimo óleo que era servido à mesa muito moderadamente e quase só em batatas cozidas, quando não fossem acompanhadas de carne gorda.
Na culinária a gordura que se usava mais frequentemente era o pingue de porco, branco como a neve, guardado em pequenas talhas para o ano. (...)
© António Carvalho (2021)
(Seleção, revisão e fixação de texto, negritos, para publicação deste poste: LG) (Com a devida vénia...)
Capa do livro do António Carvalho - Um Caminho de Quatro Passos. Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora, 218 pp., ISBN: 978-989-731-187-1.
3 de outubro de 2021 > Guiné 61/74 - P22593: Notas de leitura (1386): "Um caminho de quatro passos", de António Carvalho (2021, 219 pp.): apontamentos etnográficos para o retrato da nossa geração, de antigos combatentes - Parte II (Luís Graça)
(**) Último poste da série : 13 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24752: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (8): "Se tens galinha pedrês, não a mates nem a dês" (Luís Graça)
6 comentários:
Um livro comovente, que é a imagem do seu autor.
Nos dias de hoje, com as imagens de desumanização e barbárie é reconfortante reler este livro de um humanismo tocante.
Um abraço
Joaquim Costa
São, se assim posso dizer, caminhos parecidos aqueles que percorremos até ao serviço militar. Por isso sentirás algo de semelhante ao que eu sinto quando leio e releio passagens do teu magnífico livro rico de pormenores absolutamente fieis ao tempo e às circunstâncias, como a solidariedade da família, o respeito pelas regras, a honestidade e a vida espartana. Um livro, como os que escrevemos, é um espelho do autor( ou quase) e dele não se pode esperar mais do que aquilo que o marcou e sensibilizou. São quase confissões, por isso, não visam o êxito comercial, mas a própria satisfação. Claro que gosto de saber que a leitura do meu livro agrada(ou) a algumas pessoas, e estou muito grato aos camaradas e amigos que me rodearam de carinho no dia da sua apresentação pública.
Um grande abraço
A respeito da fotografia com a legenda Marco de Canaveses > circa 1947 > O típico carro de bois de Entre Douro e Minho, tenho a dizer o seguinte.
Ao ver a fotografia do carro de bois, tive que consultar a legenda, para me certificar de que não estava enganado. Não, realmente não estava enganado. A imagem mostra um carro de bois do interior do Douro Litoral, com os bois trazendo as cabeças cobertas por umas coisas que parecem almofadas, mas que devem ser umas coberturas de couro. Os bois encontram-se atrelados a uma canga que é tão discreta, que praticamente não se vê.
Eu realcei as palavras "interior do Douro Litoral" porquê? Porque no litoral do Douro Litoral (no Douro Litoral ao quadrado, matematicamente falando), mais concretamente na região à volta do Porto, não só os carros de bois eram geralmente maiores e menos rústicos do que o da imagem, mas também as juntas de bois que os puxavam estavam atreladas a espetaculares cangas ou jugos, em vez de terem as ditas "almofadas" sobre a cabeça. Eu tendo a associar o uso destas coberturas para a cabeça dos animais à região em volta da Serra do Marão, mas posso estar enganado. Agora vejamos: a distância do Marco de Canaveses ao Porto deve ser à volta de 50 km, uma tão escassa distância para uma diferença tão grande. Não há dúvida de que Portugal é um país extremamente diversificado. Até na mais pequena das suas províncias, que é o Douro Litoral, se observam tão grandes diferenças nos usos e costumes de localidades que apenas distam entre si 50 km!
Falemos então do assunto que pessoalmente conheço melhor, que é o das cangas e carros de bois da região do Porto. Ao longo da minha infância e até cerca dos nove anos de idade, eu vi muitos carros de bois, que pertenciam, sobretudo, a lavradores do concelho da Maia, assim como aos poucos lavradores ainda sobreviventes em Rio Tinto, Gondomar. Nesse tempo, a casa dos meus pais ainda não estava ligada a uma rede de saneamento e os nossos dejetos iam parar a uma fossa séptica, que precisava de ser esvaziada periodicamente. Para tal, os lavradores do Alto da Maia e de outros lugares mandavam os seus empregados (chamados "moços de lavoura") recolher a "água choca", que ficava armazenada numa espécie de grandes pipas, que estavam instaladas em cima de carros de bois, para que ela depois pudesse ser usada para estrumar os campos. O cheiro do processo de esvaziamento da fossa era nauseabundo, mas as cangas dos bois eram maravilhosamente esculpidas e coloridas. Eram verdadeiras preciosidades de arte popular, em nada (repito: em nada) parecidas com os "arreios" usados na fotografia do Marco de Canaveses.
Encontrei na internet uma reportagem fotográfica feita por Joshua Benoliel, que foi um grande fotógrafo português de ascendência judaica, e publicada na revista "A Ilustração Portuguesa" no ano de 1907. Pois as cangas que eu vi quando era miúdo eram praticamente iguais, em tudo, às que Joshua Benoliel tinha fotografado quarenta e tal anos antes, no centro histórico do Porto. As fotografias da reportagem estão no website seguinte:
https://folclore.pt/a-ornamentacao-dos-jugos-e-cangas-dos-bois/
A corroborar o que acabo de escrever, chamo a atenção para as fotografias seguintes, de três cangas que neste preciso momento estão à venda no website OLX.
Uma canga de Paranhos, Porto:
https://ireland.apollo.olxcdn.com/v1/files/gozasr3l59wg1-PT/image;s=1000x700
Uma canga de Fânzeres ou São Pedro da Cova, Gondomar:
https://ireland.apollo.olxcdn.com/v1/files/22tn7psvwupt2-PT/image;s=1000x700
Uma canga de Pedroso ou Seixezelo, Vila Nova de Gaia:
https://ireland.apollo.olxcdn.com/v1/files/efvlgp9ee0dl-PT/image;s=1000x700
Desculpa contradizer-te, meu querido camarada Luís Graça, mas o carro de bois do Marco de Canaveses que publicaste não é típico de Entre-Douro-e-Minho. Pelo menos, não é típico da faixa litoral da região.
Caros Camaradas:
Sem pretender fazer doutrina (discurso incontestável) direi o seguinte:
Na região entre Douro e Minho há áreas mais planas e outras de orografia montanhosa. O jugo no formato de tábua rectangular (1,50 x 0,50 m. aprox.)com talha, algumas vezes salientada a cores, está presente na parte mais litorânea e plana. Neste caso assenta, quase sempre, directamente sobre o cachaço do boi. Pelo contrário, o jugo, também chamado canga, nas zonas mais acidentadas, assenta sobre uma espécie de almofada (molhelha) revestida a coiro, sobrelevada por trás dos cornos. Este formato da molhelha tinha uma dupla função : por um lado tornava-se muito mais confortável para os bois que não sofriam com o contacto directo do jugo sobre a pele, por outro, impedia que o jugo, nos trajectos descendentes, passasse para a frente da cabeça dos animais, especialmente quando se tratava de raça de cornos curtos. Aliás, devo dizer ainda que as molhelhas, que havia em nossa casa, eram menos elaboradas, porquanto não permitiam que se lhes sobrepusesse o jugo, apenas se destinavam a impedir o tal avanço do jugo para a frente da cabeça do animal, por isso só me lembro de as aplicar na cabeça do bois quando o meu avô comprou uma junta de cornos muito curtos.
Um grande abraço
Carvalho de Mampatá
Assisti em Lamego, por vários anos, à procissão da festa da Senhora dos Remédios.
Os grandes andores eram puxados por juntas de bois que uns tinham molhelhas e cangas invisíveis e outros com cangas altas sem molhelhas na cabeça dos animais.
Valdemar Queiroz
Disse eu, no comentário acima, que as molhelhas serviam para conforto dos animais e para segurar melhor o jugo ou canga nos percursos descendentes, sobretudo no caso de bois de cornos curtinhos. Mas serviam essas molhelhas, também , para outra função : nas manobras de marcha a trás, tornava-se mais fácil aos bois a tarefa de empurrar o jugo com a cabeça. Dizíamos-lhes, levantando a soga: Afasta!...Afasta!...
Carvalho de Mampatá
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