segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Guiné 61/74 - P24737: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (7): O Pão que Deus Amassou (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > 2012 > O forno a lenha onde se faz(ia) o milagre do pão... Agora só se acende para fazer "o anho assado com arroz de forno" em dias de festa,,, 

Foto (e legenda): © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



A família Costa (Foto nº 1A)


A família Costa (Foto nº 1B)

Vila Nova de Famalicão  > c. meados dos anos de 1950 > A família Costa: foto nº 1A, da esquerda para a direita na fila de trás: José (pai) e Gracinda (Mãe), e a irmã Maria;  na fila da frente o João (o Don Juan da família),  a Noémia e o Joaquim, o mais novo.

 Na foto nº 1B, da esquerda para a direita, os irmãos Avelino, Manuel (que esteve na Guiné) e Eduardo (o columbófilo) 

Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Joaquim Costa:

(i) ex-fur mil at Armas Pesadas Inf, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74);

(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, tem cerca de 7 dezenas de referências no blogue;

(iii) autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicaram 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022), e que depois publicou em livro ("Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp);

(iv) tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto;

(v) foi professor do ensino secundário;

(vi) minhoto, de Vila Nova de Fmalicão, vive em Fânzeres, Gondomar.


Data - segunda, 2/10/2023, 11:38 

Assunto - O Pão que Deus Amassou.

Olám  Luís,

Espero que tudo esteja bem contigo.

As histórias da nossa meninice estão a despertar a curiosidade dos nossos “tabanqueiros”! (*)

Deixo ao teu critério a oportunidade e interesse na publicação de mais este minha vivência no verde Minho.

Um abraço, Joaquim



O PÃO QUE DEUS AMASSOU

por Joaquim Costa

“É o Senhor que faz crescer o pasto para o gado,
e as plantas que o homem cultiva,
para da terra tirar o alimento: o vinho, que alegra o coração do homem;
o azeite, que lhe faz brilhar o rosto,
e o pão, que sustenta o seu vigor.”

Salmos 104:14-15


A Sexta Feira era o dia mais esperado. Dia de cozer uma fornada de pão para oito dias. Para além de ser o único dia da semana em que se comia pão fresco, era o dia em que eu começava a salivar logo pela manhãzinha pois não via chegar o momento de saborear a minha pequena malga de sopas de vinho tinto (sopas de cavalo cansado).

Ao contrária dos nosso netos, que julgam que tudo o que aparece nas superfícies comerciais é feito nas fábricas, no meu tempo, quando comia um “naco” de pão de milho sabia, melhor do que ninguém, como se chegou e este momento tão extraordinário de saborear esta dádiva da natureza.

A casa era rodeada por campos onde se cultivava, alternadamente, milho e centeio. Eu, da janela do meu quarto,  acompanhava todo o ciclo, rendido à força e sabedoria do homem e aos milagres da natureza:

  • era acordado pela alva com o som da charrua puxada por uma junta de bois lavrando a terra;
  • acompanhava extasiado a sementeira manual com gestos precisos e elegantes;
  • abria a janela todos os dias pela manhãzinha para ver o que a natureza tinha feito, durante a noite, à sementeira (às vezes, de madrugada, sorrateiramente abria a janela tentando surpreender a natureza vendo a semente romper a terra; como nunca vi ainda hoje penso que é um milagre);
  • assistia à rega do milho abrindo e tapando carreiros, com a ajuda de uma enxada, onde passava um pequeno regato de água (contam-se histórias de morte, neste Minho de gente calma e serena, por causa desta água quando retida por vizinhos);
  • caminhava por entre o milho, cortando uma espiga, ainda verde, para assar na lareira da cozinha;
  • fumava (às escondidas) os primeiros “cigarros” com as barbas de milho já secas enroladas em papel;
  • participava na apanha do milho, fazendo o trajeto para a eira em cima dos carros de bois com uma alegria espelhada no rosto que hoje até dói só de pensar;
  • participava nas magníficas, e tão esperadas, desfolhadas, com muitas cantorias acompanhadas pelas tradicionais concertinas e gaitas de beiços (a que chamávamos harmónica), com muito vinho e presunto; i clímax destes momentos era quando alguém desfolhava um milho-rei, com os rapazes em êxtase dando beijos às cachopas solteiras;
  • assistia à malha do milho com gestos precisos, coordenados e elegantes dos malhadores;
  • acompanhava o moleiro carregando os sacos de milho do lavrador até ao moinho de água, construído num ribeiro afluente do Ave e acompanhava-o no regresso já com a cara e a roupa toda enfarinhada;
  • ajudava a levar o moleiro em braços até à sua carroça, puxada por um elegante e inteligente cavalo, depois de adormecer, na taberna, bem bebido, e dar uma pancada certa no cavalo que o levava direitinho até casa, escolhendo o melhor caminho para não acordar o patrão.

Ainda hoje me comove ao ver na casa que foi dos meus pais, uma réplica de um jugo, feito por mim na aula de trabalhos manuais, que sempre me transporta para esses dias de grande felicidade. Como eram lindos os jugos, particularmente os utilizados nos dias de festa ou de feira.

Depois de todas estas tarefas do homem e do milagre da natureza, tudo ficava nas mãos da minha mãe:

  • amassar a farinha numa masseira de madeira, fazendo uma reza e benzendo várias vezes a massa já devidamente posta em sossego, depois de uma valente coça;
  • aquecer o forno com caruma (pruma) e carqueja apanhada nas bouças vizinhas (altura em que as matas estavam sempre limpas);
  • meter toda a fornada no forno já quente e limpo, utilizando uma gamela de madeira para dar forma à broa;
  • fechar o forno, tapar todas as frinchas com um material, que me escuso de desvendar evitando ferir a sensibilidade de leitores mais suscetíveis (sim!, é a bosta, com a sua licença, dos bois!), e mais uma reza e umas benzeduras.

Depois, o milagre acontece... com o pão, que “Deus” amassou... na malga embebido em vinho tinto: partia-se com a mão a broa quentinha e estaladiça, acabada de sair do forno, para uma malga onde se embebia em vinho verde tinto, ficava em sossego durante umas
horas e ao fim da tarde era um regalo ver todos os meus irmãos a “lambuzarem-se” com tão extraordinária iguaria.

Eu não ficava de fora e tinha direito a uma pequena tigela, onde deitava um pouco de açúcar. Não estava autorizado a beber vinho mas estava autorizado, uma vez por semana, a comê-lo (gostava mesmo daquilo).

Crentes e não crentes, acreditem: Todas as sextas feiras havia “milagre”.

“Amen"

Joaquim Costa


Lourinhã > Ribamar > Valmitão > 18 de Julho de 2009 > Dia de acender o forno a lenha, amassar a farinha, enfornar e cozer o pão de trigo... o delicioso pão de trigo da nossa infância. Ainda hoje há famílias que cozem o seu próprio pão, na região do oeste estremenho, como esta, a família do Ramiro Caruço e a Rosa, meus primos da grande família Maçarico, da vila de Ribamar... Voz off de Luís Graça, Alice Carneiro, Ramiro Carruço e uma neta do casal. A Rosa e eu temos antepassados comuns, conhecidos desde pelo menos meados do séc. XVIII. 

Vídeo (2' 51''): © Luís Graça (2009). Todos os direitos reservados 

Fonte: Blogue A Nossa Quinta de Candoz > 19 de julho de  2009 > Gente do sul (1): Cozendo o pão de trigo no forno a lenha 

Vd. também do autor o poste de 27 der setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24704: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)

10 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Também comemos, na Guiné, o pão que o diabo amassou. Mas a broa de milho da mãe Gracinda elevava-se à categíria das coisas que, nós, humanos classificamos como divinas.

Magnifico texto, Joaquim. Nota, vinte!

antonio graça de abreu disse...

Também cresci pelas bandas do meu Minho e Vila Nova de Gaia de menino. A quinta do Custódio atrás do quintal da minha casa , em Mafamude, o grande milheiral, Oliveira do Douro, ir tomar banho ao Areínho, no rio Douro, miúdo, as férias em casa da Aurorinha doceira, em Lousada, meu Portugal. E o império a tecer as suas malhas, a enviar depois os meninos crescidos para uma guerra.
Parabéns pelo texto, Joaquim.

Abraço,

António Graça de Abreu

Eduardo Estrela disse...

Um texto que me fez recuar no tempo, ser um menino e recordar a minha avó Juliana, a única que tive a felicidade de conhecer pois todos os outros partiram era eu muito pequeno ou antes disso até.
A minha avó amassou durante muitos e longos anos, semanalmente, o pão que a família Tamissa ( o José e o João Tamissa) comiam. Dois dias por semana em que se levantava às 4 horas da manhã para preparar o forno e tender o pão, cuja massa estava preparada desde o dia anterior à noite.
Uma vida de muitas e grandes lutas onde para além dessa tarefa, havia que ir ao ribeiro lavar a roupa das freguesas.
Obrigado Joaquim Costa!!
Abraço fraterno
Eduardo Estrela

Valdemar Silva disse...

Que belo texto, Costa, até fala que nem bisto.

Julgo que o que ficou gravado no nossa memória foi o que se passou nos nossos oito/dez anos. Os anos mais antigos foram limpos no disco rígido e dos doze acima começávamos a não ligar.
Também me lembro da minha avó aquecer o forno com fogo de pruma, pinhas e latos (galhos)secos e, depois, pão de farinha de milho, broa, e eu sair à estrada com uma folha de videira apanhar o que a pisca deixava, bosta, para ajustar a porta do forno.
Quando a bosta secava, a porta ficava hermeticamente segura e depois era muito fácil raspar para abrir o forno.
Mas, foi por poucas vezes e mais valia ir comprar a broa ao padeiro, que por vezes saia salgada.
Embora por muito pouco tempo e com pouca gente em casa, lembro-me desse "ritual" da broa no forno, que me acompanhou numa saca de pano quando desci tábua abaixo para Lisboa.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

Costa, aqui para os lados, na zona industrial, há ou havia uma panificação de Caruço & Filhos.
Provavelmente terão a haver com o Carruço que fazes referência.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, fizeste confusão...O Carruço é aqui de Ribamar, Lourinhá... É a mulher do Ramiro Carruço, a Rosa, que tu vês a estender a massa antes de enfornar... É um vídeo de 2009, feito em Valmitão, uma praia aqui de Ribamar, Lourinhã. (Aaqui n´~ao se faz broa de milho, só pão de trigo.)

Por acaso, tem piada, nunca tinha lhes,a este casal, mostrado o vídeo. Hoje encontrámo-nos na festa da Nra. Sra de Monserrate, de Ribamar, terra de bravos pescadores e armadores (5-11 de outubro de 2023, 7 dias de arromba). Vim comer uma caldeirada à pescador mais uns cinquenta e tal mecos. Do melhor (30 euros, 2 pessoas): no céu não há disto (a par do espadarte grelhado, que vou lã amanhã comer, para encerras o verão...).

Quem é que eu havia de lá encontrar ? Os meus primos de Valmitáo, o Ramiro Carruço e a Rosa (que é, como eu, do clã Maçarico). Acharam um piadão ao vídeo...mas não deu tempo para lhes ler o texto de antalogia do Joaquim Costa.

Valdemar Silva disse...

Luís fiz confusão.

Mas a fábrica de panificação dos meus lados, Alto de Colaride, é do Caruço & Filhos.
Caruço e não Carruço.
O Caruço pai e esposa costumavam aparecer a meio da tarde no café que eu frequentava e um dos filhos, talvez para ficar próximo da fábrica, viveu durante uns tempos num andar do meu prédio.


Ab
Valdemar Queiroz

gil disse...

Muitos de vocês já visitaram o Museu da Tabanca dos Melros,e lá está o forno e a tampa do mesmo,onde eu ,puto ,também besuntei/lacrei com a dita bosta dos nossos bois.
Era fornada para uma semana,todos da casa e um dia por semana aparecia uma reboada de pobres que também levavam broa.
Joaquim ,obrigado pelas lembranças
abraço
Gil

Tabanca Grande Luís Graça disse...

É verdade, Gil Moutinho, a Tabanca dos Melros merece uma visita. É uma memória viva das casas agrícolas da região e tem também uma núcleo museológico ligado à "nossa Guiné". Sei do carinho que pões em tudo isto. Ab, Luis.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Quando cheguei a Candoz, em 1975, também fiqeui surpreendio por ver "tapar" (calafetar) as frinchas da porta do forno (a lenha) com "bosta, salvo seja, de baca!...Os mais novos não entendem isto. Era a ecologia so serviço da eonomia... LG