quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24704: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (1): A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)


Quinta de Candoz > A matança do porco (c. 1980): uma cena que Bruxelas conseguiu banir definitivamente dos nossos campos e aldeias (mas não da nossa memória) em nome de uma conceção fundamentalista da saúde pública e de uma Europa securitária, globalizada, normalizada e tecnocrática, matando a etnodiversidade... (Declaração de interesses: Não sou "vegan", adoro carne de porco... Claro que eu hoje não queria ver a minha neta a assistir a uma cena destas... Na nossa infância tivemos que "ver e ouvir" os gritos lancinantes do pobre animal, mas a seguir comíamos-lhe o sarrabulho, os rojões, as "febras", as bochebas, o presunto,   os salpicões ... E jogávamos a bola com a bexiga!)


Marco de Canaveses > c. 1980 >   O "toirinho", vendido na feira do Marco, uma das poucas fontes de receita dos caseiros, para além do vinho e do milho - (Este é um boi de trabalho, não de engorda; a junta de bois puxava a charrua de ferro, e trazia do "monte" uma carrada de lenha.) Por sua vez, o porco era o governinho da patroa (que o guardava, com engenho e arte,  na "salgadeira" ou no "fumeiro"). (*)

Quinta de Candoz > 2023 > O que resta do velho carro de bois: duas rodas desconjuntadas...


Quinta de Candoz > 2023 > As enxadas, as pás, as picaretas... (Ainda se usam, a par do trator e demais utensílios e alfaias agrícolas modernas)


Candoz > 2023 > A "mina" (nascente de água): matou a sede a gerações e gerações... e regou o milho


Quinta de Candoz > 2023 > A água da bica que corre, livre, para o Douro, a albufeira da barragem do Carrapatelo, a poucos quilómetros...


Quinta de Candoz > Socalco e escadas em pedra...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

1. Luís Graça, que  não é antropólogo (mas ficou com o "bichinho" da antropologia / etnologia, aquando das aulas e trabalhos de campo com o seu grande mestre e amigo Joaquim Pais de Brito, no ICSTE,  no âmbito da sua licenciatura em sociologia, 1975/80), tem pelo menos a sensibilidade cultural (ou socioantropológica, passe o palavrão) para olhar para o passado sem saudosismos nem miserabilismos, mas sabendo que a roda de um carro de bois, a enxada, a matança do porco, a salgadeira, a panela de ferro,  a "mina" (nascente de água") ou os muros de suporte da Quinta de Candoz de antigamente (quando ainda se fazia o milho, o centeio e havia rendeiros...), todos esses "signos", todas essas "coisas & loisas" falam do "antigamente" da gente. Falam da nossa infância, falam do campo da nossa infância, falam das nossas pequenas vilas e cidades de provincia, falam dos nossos "usos e costumes", das formas de vida e de trabalho, dos nossos pais e avós... nomeadamente na regiáo de Entre Douro e Minho, a que se referem as fotos que reproduzimos acima.

Há dias lançámos o mote e o desafio (**)...Vamos lá "relembrar" algumas das "coisas & loisas do antigamente", ainda do tempo em que nascemos, crescemos, andámos na escola, começámos a trabalhar e a namorar (e alguns casaram)  e, entretanto,  fomos para a tropa e depois para a "nossa querida Guiné" (**)... com "licença para matar e morrer"...

Vamos abrir uma série para deixar espaço para essas "recordações avulsas",  de modo a que não se percam na voragem do tempo... Interessam-nos sobretudo as nossas vivências  (no campo, mas também nas vilas e cidades onde nos fizemos homens).  Afinal, tudo isto faz parte do nosso ADN sociocultural, da  nossa identidade, da nossa humanidade, da nossa portugalidade... São as nossas raízes "telúricas", não as podemos enjeitar, temos orgulho nelas: afinal nascemos num pequeno grande país, já milenar,,,

O pontapé de saída cabe ao nosso querido amigo e camarada, minhoto dos quatro costados, Joaquim Costa (***).

Vila Nova de Famalicão  > c. meados dos anos de 1950 > A família Costa: da esquerda para a direita na fila de trás: José (pai) e Gracinda (Mãe), seguindo-se os irmãos: Maria, Avelino, Manuel (que esteve na Guiné), Eduardo (o columbófilo) e na fila da frente o João (o Don Juan da família) a Noémia e o Joaquim, o mais novo.


Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Coisas & Loisas do Tempo de Meninos e Moços  (1):  A Feira (Joaquim Costa, Vila Nova de Famalicão)


(i)  ex-fur mil at Armas Pesadas Inf, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74); 

(ii) membro da Tabanca Grande desde 30/1/2021, tem cerca de 7 dezenas de referências no blogue;

(iii) autor da série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74)" (de que se publicaram 28 postes, desde 3/2/2021 a 28/7/2022), e que publicou em livro ("Memórias de um Tigre Azul - O Furriel Pequenina", por Joaquim Costa; Lugar da Palavra Editora, 2021, 180 pp); 

(iv) tirou o curso de engenheiro técnico, no ISEP - Instituto Superior de Engenharia do Porto; 

(v) foi professor do ensino secundário; 

(vi) minhoto, de Vila Nova de Fmalicão, vive em Fânzeres, Gondomar.


Terminado o verão, de pé livre e descalço, minha mãe me levou à feira para comprar umas chancas, para resguardar o pezinho da chuva e do frio no caminho para a escola bem como o “material escolar”.

O dia de feira era um autêntico dia de festa, pelo que era o êxodo das aldeias para a vila na ânsia de encontrarem alguns produtos e artigos (escolares… e não só!) a bom preço, bem como um pouco de divertimento e “galhofa” fugindo, por algumas horas, às rotinas do trabalho diário. A feira era o sítio onde tudo se vendia e em que tudo podia acontecer:

  • venda de gado apalavrado no recinto da feira e selado na taberna da Sara Barracoa à volta de uma malga de vinho tinto e montes de notas saltando de mão em mão. Durante toda a tarde nunca a malga era lavada : "Sara! lave com a mesma água !");
  • onde se ferravam os cavalos enquanto os homens confraternizavam e reviam velhas amizades na Sara;
  • onde se apregoavam e vendiam panfletos com histórias mirabolantes : um burro que nasceu com 3 cabeças e um homem que foi “morto matado” por um coice do cavalo e ressuscitou quando o cavalo se ajoelha junto do “morto matado” de lágrimas nos olhos de arrependimento;
  • onde se jogava a vermelhinha (jogo com dois copos, manuseados com destreza, e um dado) com o homem em permanente fuga da GNR, montando e desmontando a banca percorrendo toda a feira;
  • onde homens se zangavam, puxando do pau para uma boa refrega, com aplausos da assistência, a intervenção da GNR e as pazes na Sara Barracoa;
  • onde sempre aparecia um grupo de saltimbancos com as suas habilidades, malabarismos, magias e o mais extraordinário o “cospe” fogo;
  • onde não faltava, nos dias de maior calor, a “aguadeira”, com o seu cântaro de barro à cintura vendendo copos de água com limão, quente mas que apregoava como fresca;
  • onde se vendia literalmente de tudo, desde todos os produtos agrícolas, roupa, móveis, ouro, animais e tudo o mais que se possa imaginar (...não esquecendo a banha da cobra) e em que as mulheres pagavam com o dinheiro embrulhado num lenço guardado em segurança entre os seios.

Depois de feirar: ver, apalpar, experimentar, regatear e pouco comprar, lá chega o momento do caçula. Depois da compra do material escolar: uma lousa, uma dúzia de “riscotes”, uma tabuada, um metro de serapilheira para fazer a sacola… e é tudo…, lá fomos às chancas.

Não era propriamente uma sapataria mas sim um artesão de calçado com sola de pau (Socas, chancas e outros artigos em madeira. O artesão era já conhecido, pois foi ele que calçou ao longo dos anos toda a família. Conhecedor dos hábitos da família começou logo a colocar vários pares de chancas para eu provar. Lá se chegou ao número que eu considerei o mais confortável. O artesão, que já conhecia o hábito da Gracinda diz: leva dois números acima não é D. Gracinda! Claro senhor António, sempre assim foi, pois eles crescem todos os dias e este é o último e não tem a quem deixar!

Sempre usei as chancas com com papeis ou trapos enfiados na biqueira para que as mesmas não me saíssem dos pés!

Nota: As tabernas da Sara Barracoa em Famalicão e a Bagoeira em Barcelos, poiso dos lavradores nos dias de feira, felizmente, ainda sobrevivem, com algumas adaptações aos novos tempos.

24 de setembro de 2023 às 12:27 (**)
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10 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Que o mundo mudou, mudou. E muito. O fim da tradição da "matança do porco", na esfera familiar e comunitária, no solstício do inverno, nos campos de Norte a Sul do país, é apenas um muitos pequenos sinais.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

A "doença das vacas loucas", importada do Reino Unido, nos anos de 1990, acabou por "matar" as nossas animadas e seculares feiras de gado...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tal como as romarias (ainda hoje ?), as feiras de antigamente eram locais de socialização por excelência no Norte.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Há quem ainda se lembre, em Candoz, de levar o gado à feira, 15 km a pé até ao Marco, estrada fora. .. O "toirinho" ainda vá lá, mas o porco quando parava, virava de direcção ou estancava mesmo... Parece que speitava do novo cruel destino e suspirava pela corte onde apesar de tudo fora feliz...

Ora isto era trabalho da "canalha", sobretudo dos rapazes mais espigadotes... Tempos danados mas de que se guardam, ainda hoje, saudosas e divertidas recordações. ..

Valdemar Silva disse...

O martírio de viagem ao Porto.
Com dez anos fiz a primeira* viagem de comboio, foi no correio de Afife ao Porto.
Foi à casa de uma tia nas férias grandes de Verão.
O martírio começou em casa da minha avó, continuou estrada abaixo até à Estação e só melhorou quando o comboio partiu e eu descalcei umas botas novas que me apertavam os pés.
Eu ia sozinho e com medo de me roubarem as botas ateias à cintura que parecia um "cowboy" com duas pistolas e fiz toda a viagem descalço, que nada me custou por estar habituado.
O martírio das botas passou, mas outro tão complicado apareceu passada a Ponte de Viana, 'nunca saias do teu lugar' disse-me a minha avó à frente do chefe da Estação que parecia um polícia.
O tempo ia passando e eu com uma grande vontade de correr dentro do comboio para ver o que se passava nas outras carruagens. E assim foi até chegar à carruagem de 1ª. classe com os bancos de couro avermelhado.
Não passou muito tempo de admiração para levar com um 'estás a levar um puxão d'orelhas, vai já pro teu lugar' disse-me o "polícia'" da carruagem.
Lá me sentei no meu lugar do banco de pau da 3ª. classe(?) e adormeci até chegar ao Porto.
No Porto foi um martírio calçar as botas, andar com elas a olhar para todos os lados que nunca tinha visto.
Passado pouco tempo de andar de boca aberta na grande cidade, comecei a chorar e a pedir para voltar à minha terra pra casa da minha avó.
Foram quinze dias de martírio, aflito dos pés e ser obrigado a comer bife com esparguete.
Ah! que saudades quando regressei a Afife, poder andar descalço e a comer couves com batatas toucinho e chouriço.

Manias de criança mimada.

Valdemar Queiroz

*no ano seguinte voltei a viajar de comboio pra Viana ir fazer o exame da 4ª. classe (Instrução Primária)

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Adorei, Valdemar. Com mais uma "bocado de palha", fazdes um conto curto, duas páginas A4, 50 linhas para o livro que hás de escrever, com estas tuas deliciosas notas no blogue, e depois publicar como ebook para ofereceres aos teus netos luso-neerlandeses... Eles têm direito a saber de que planetas é que vieste...

Porque talento (e sentido de humor) não te faltam... Balaios e balaios de talento paar contar histórias, diriam as bajudas de Contuboel, de Nova Lamego, de Piche ou de Paunca... E enquanto escreves, a DPOC vai dar um volta ao quarteirão...

Manda mais histórias do campo, da praia e da cidade... Quem como tu, que sõ tarde teve botas novas e só as dez andou de comboio e começou a trabucar aos 12 anos, tem manga de histórias para contar... Um alfabravo. Luis

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, não tens Facebook (não perdes nada)... mas pus a tua historieta, com a devida vénia, no Facebook da Tabanca Grande...

https://www.facebook.com/p/Tabanca-Grande-Lu%C3%ADs-Gra%C3%A7a-100001808348667/?locale=pt_PT

Anónimo disse...

Meu caro Valdemar,
Quem sou eu para dar conselhos a alguém. Aceito e respeito as decisões de cada um.
Nunca falei contigo pessoalmente, nunca privei contigo e nunca bebi um copo de “bioxene” contigo, mas tenho a presunção de dizer que te conheço como se fosses amigo de infância. Tudo porque te “despes integralmente” quando escreves. Tu és aquilo que escreves. Dos teus escritos sobressai uma pessoa com uma extraordinária história de vida, com um refinado sentido de humor e de uma cultura vasta e consistente porque construída nas picadas minadas da vida.
Tudo isto para te dizer que tens o dever de deixar aos teus e ao mundo a tua extraordinária história de vida. Pensa nisso!!!
Um grande abraço à moda do Minho
Joaquim Costa

Hélder Valério disse...

Caros amigos

E não é que estas lembranças, estas pinceladas da vida dos lugares donde muitos de nós têm as suas raízes, acabam por fazer todo o sentido?
Claro que não será preciso muito para explicar a capacidade de resistência e adaptação do militar português a condições de vida difícil. É só perceber o seu "adn" ....
Por isto devo dizer que gosto de ler estas coisas.

Já agora, apercebi-me que o Luís Graça e o Joaquim Costa estão a "apertar" com o Valdemar para passar ao pepel as suas vivências, as suas memórias.
E acho bem.
Por um lado acho que todos ganharemos com isso e o Valdemar, em particular, certamente que criará um objetivo concreto para as suas ocupações, com tudo o que de benéfico e terapêutico isso terá.

Abraços
Hélder Sousa

Valdemar Silva disse...

Ai Costa, Costa, ainda me arranjam um imposto extraordinário daqueles de 'sendo assim tem de pagar imposto'.
Todos temos histórias de vida, umas mais porreiras outras mais lixadas, basta ter 78 anos de idade.
Agora é mais fácil escrever que falar, falar cansa-me, mas é muito complicado que eu é mais números e tenho muitas dificuldades em escrever como deve ser.

Pois Costa, isso de subires ao Monte de Santo António e pisares a pruma e as pedras que eu pisei é suficiente sermos da mesma infância.
E que pena não poder deitar abaixo um bioxene verde ou maduro, branco ou tinto e do melhor.

Obrigado a todos pelos elogios, não havia necessidade.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz