domingo, 24 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24694: Manuscrito(s) (Luís Graça) (235): o fim do verão, o princípio de outono, as vindimas da nossa alegria... E o que nós andámos para aqui chegar!...



















Quinta de Candoz, fim de verão, princípio de outono, 21, 22 e 23 de setembro de 2023, as últimas vindimas, a alegria do (re)encontro, da festa, da partilha... E pela primeira vamos fazer um vinho, com apoio de enólogo , e que será de homenagem à nossa querida "Nita", a Ana Carneiro (faz hoje meio ano que nos deixou mais sós e tristes)...


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2023). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné] 
(Imagens HDR - High Dynamic Range, tiradas sem tripé)


O que nós andámos para aqui chegar…

  

Há quase cinquenta anos (vai fazer em  2025) que venho a Candoz, lembrei  eu há dias no poste P24676 (*).  E deixei, por outro lado,  algumas reflexões avulsas sobre "mudanças" no nosso país, de que fomos todos sujeitos e objetos, atores e espetadores, nomeadamenmte no campo (por oposição à cidade). 

Respondendo de resto ao meu desafio, o despretensioso texto mereceu alguns calorosos comentários de alguns amigos e camaradas, a quem fico reconhecido, porque vieram valorizar o tema, complexo, das transformações (económicas, sociais, culturais, mentais, etc.) por que passou a nossa geração, grande parte dela de origem rural... (Na década de 50, metade da população portuguesa ainda vivia dependente do setor primário da economia e, segundo o censo de 1960, um em cada três portugueses ainda era analfabeto!)

E, como eu disse, "foram muitas, essas transformações", para não dizer "profundas, radicais, estruturantes", em todos os domínios, a nível do indivíduo, da família, do habitat, do território, da economia, da sociedade, das organizações e instituições, etc. Da saúde à educação, do trabalho aos transportes, do lazer à cultura, da sexualidade à religiosidade, da política ao futebol,  etc., etc.

Utilizei Candoz, por mera conveniência,  como ponto de observação e de reflexão, por estar situado a 400 km de Lisboa a capital deste país que ainda é macrocéfalo); longe do litoral, a 340 km da minha terra natal, Lourinhã, a 70 km do Porto; enfim,  no “país profundo”, onde o povoamento era (e ainda é) disperso e a predomina(va) o minifúndio,  e onde eu ainda apanhei tantas “coisas do antigamente” (ou que ainda estavam frescas na memória das gentes do vale do Tâmega, que pega com o vale do Sousa, berço do velho Portugal, e por onde passa uma fabulosa rota do românico, que poucos portugueses conhecem)…

E cito ainda Candoz porque a elegi também como minha segunda terra... E por aqui andou o Zé do Telhado... E está rodeada de serras, com o rio Douro a fazer fronteira entre o distrito do Porto e o distrito de Viseu: Montedeiras, Aboboboreira, Montemuro, Meadas, Marão, Alvão...

Listo apenas algumas dessas "coisas do antigamente" que, umas felizmente já desapareceram (ou são  "peças de museu"), outras ainda estão enraizadas nos nossos "usos e costumes"... São umas cinquenta (para arredondar) as que me acorreram, ao sabor do teclado e no decurso desta época de vindimas (em que vim passar 18 dias a Candoz,   já tendo hoje regressado ao Sul). 

Aqui váo, de 1 a 50, sem qualquer ordem de precedência, importância ou relevância;

(1) a luta dos rendeiros contra a parceria agrícola e pecuária, formas pré-capitalistas de exploração da terra, com o pagamento das “rendas” em géneros (em em geral, numa proporção fixa, por exemplo ao terço, a meias, etc.);

(2) a estratificação social nos campos:”fidalgos”, pequenos proprietários, rendeiros…e cabaneiros (gente sem terra nem casa) (e que na igreja também se dispunham pela mesma ordem, com homens e mulheres, socioespacialmente separados);

(3) os salamaleques da “servidão da gleba”: “com a sua licença, meu senhor e meu amo”, dizia o caseiro para o “fidalgo”, desbarretando-se a 10 metros de distância;

(4) as juntas de bois lavrando a terra com arados de ferro;

(5) a criação, em cortes, do gado bovino (o “tourinho”, mais bem tratado que a “canalha”, porque rendia dinheiro ao ser vendido na grande feira do Marco (de Canaveses);

(6) a cultura do milho de regadio, exigente em água e mão de obra (escondia-se o milho nas “minas”, as nascentes de água, para escapar à requisição do governo nos anos da II Guerra Mundial e do pós-guerrra);

(7) a vinha de bordadura e de enforcado (e na sua grande maioria, videiras de tinto… jaquê, um híbrido americano de há muito proibido mas sempre tolerado; de fraca graduação e pior qualidade, o “jaquê” chegava a maio já era intragável; de resto, nas vindimas toda a uva podre ia “para o tinto”; e não havia vinho verde branco, o que se fazia era “para o padre”; e muito do que ia para o "utramar", a tropa, que tinha poder de compra, era vinho branco leve, de 9 / 10 graus, enviado para os armazéns do Porto e de Vila Nova de Gaia, e depois gazeificado e rotulado como "vinho verde branco");

(8) o vinho verde tinto, o tal "berdinho",  bebido da malga de barro vidrado ou da “caneca de porcelana”;

(9) as “serviçadas” como a vindima, a malha do centeio, a desfolhada do milho, a espadelada do linho, a matança do porco, etc., em que os familiares e os vizinhos se ajudavam, uns aos outros;

(10) os grandes cestos de vime de 50 kg de uva que os “homes” transportavam aos ombros (e as mulheres à cabeça), por leiras e solcalcos abaixo (ou acima) até ao “lagar do vinho” (em geral, no piso térreo, da casa, e com chão saibroso por causa da temperatura ambiente);

(11) a matança do porco, o fumeiro e a salgadeira (que eram o “governinho da tia Aninhas”, e também uma das principais causas de morbimortalidade por doenças cérebro-vasculares, como a “trombose”):

(12) o valor comercial da madeira de carvalho, castanho e pinho (madeira nobre hoje destronada pelo eucalipto);

(13) a água de consortes,  as "levadas" (como a água de Covas, que vinha da serra, e  de que o meu sogro tinha direito a utilizar, só no solstício do inverno, uma vez por semana, das 10h da manhã às 6h00 da tarde);

(14) os “montes” (pinhais) que eram “rapados” todos os anos, não só para limpeza e prevenção dos incêndios (não havia incèndios) como sobretudo por causa da importância que tinha o mato para fazer a "cama dos animais” e depois o estrume (fundamental para a cultura do milho ou da batata);

(15) a “esterqueira” (ao pé da porta onde se faziam todos os despejos domésticos e se deitava todo o lixo orgânico que não fosse para a “gamela” de, "com a sua licença", o porco);

(16) as longas caminhadas a pé (para se ir à missa, à romaria, à feira, à repartição de finanças na sede do concelho,  mas também ao médico e o hospital da misericórdia);

(17) a escassez de meios de tração mecânica na lavoura (tratores, motocultivadores, serras mecânicas, etc.) e de transporte automóvel;

(18) a “venda” que era mercearia, tasca, casa de comidas (para os de fora), cabine pública de telefone, caixa de correio, palco de mexericos, boatos e notícias, etc. (a da Candoz, ficava no Alto, a 3 km de distância por caminho de carro de bois, que agora é estrada municipal e nos  leva à albufeira da barragem do Carrapatelo);

(19) a sardinha “para três” (que chegava de Matosinhos na Linha do Douro até ao Juncal, e depois era transportada à canastra e vendida de porta em porta) (... e os ovos que se vendiam para comprar a "sardinha para très");

(20) o caldo moado, as cebolinhas do talho, os salpicões feitos em vinho tinto verde, o anho com arroz de forno, as papas de farinha de pau, o arroz de cabidela, o bacalhau “lascudo” no Natal, a aletria, etc.

(21) só os homens usavam calças (!);

(22) a virgindade (feminina) antes do casamento;

(23) o medo das trovoadas, das bruxas, dos lobisomens, do mau olhado, das pragas que se rogavam uns aos outros por ódio, vingança, desamores, etc.;

(24) a importância das feiras e romarias como factor de lazer, de socialização, de negócios, de informação, conhecimento e propaganda (ah!, os pregões dos feirantes!);

(25) as “tunas rurais do Marão” (indispensáveis nos "bailes mandados");

(26) a luz do candeeiro a petróleo ou querosene;

(27) o caciquismo político e eleitoral (do regedor, do padre, do comerciante, do professor, do “fidalgo"...);

(28) o “varapau”  como símbolo da masculinidade (mas também de violência) (a ponto de ter sido proibido na via pública, nas festas e nos bailes, sendo o seu cumprimento fiscalizado pela GNR):

(29) a fraca monetarização da economia (fazia-se algum dinheiro com a venda das uvas, do milho, do tourinho, da cereja e pouco mais; ou trabalhando à jorna, ocasionalmente para o "ramadeiro", para o "construtor civil, etc., que os mais sortudos iam para a polícia e os caminhos de ferro);

(30) a autossuficiência da economia do pequeno campesinato familiar onde o pai era “pai e patrão” e  a “ranchada de filhos”  era garantia de mão de obra abundante e gratuita;

(31) a emigração, primeiro para o Brasil (até aos anos 50) e depois para França (muitas vezes "a salto") e Alemanha, também depois Luxemburgo e Suiça;

(32) o obscurantismo não só político e cultural mas também religioso (como o daquele pároco que mandou cortar as pilinhas dos anjinhos na igreja);

(33) as “grandes mulheres” que em geral se escondem(iam) atrás dos seus “homes" (e tinham sempre uma palavra de peso, a última, nos negócios, nas compras de propriedade, nos amores, nos casórios dos filhos,  etc.);

Mais mudanças

Era tempo em que ainda…

(34) se andava descalço (ou, tal como em África, se levava os sapatos na mão até à entrada da vila, da escola, da igreja…);

(35) se batia forte e feio nos filhos (em casa e no campo) e nas crianças (na escola) ("quem dá o pão, dá a educação");

(36) se começava a trabalhar muito cedo (“ o trabalho do menino é pouco, mas quem não o aproveita é louco”; "na casa deste home, quem não trabalha não come; e na casa desta mulher, come-se tudo o que ela der"):

(37) havia o “baile mandado” com “mandador” e os homens e as mulheres separados, de pé, encostados às paredes da casa;

(38) ouvia-se o carro de bois a chiar pelos estradões (uma verdadeira sinfonia!);

(39) se cultivava o milho e o centeio;

(40) se cozia a broa de milho e centeio (três “quartos” ou partes de milho e um de centeio), no forno a lenha, e que tinha de durar 8 dias (ou até 15, "duro que nem cornos"!);

(41) em que os mais remediados diziam: “criei-os [aos filhos] fartos e cheios [de pão, que não se escondia na “trave” do telhado de telha vã, fora do alcance dos ratos e… das crianças, isso era sinal de pobreza];

(42) as crianças se habituavam, cedo, às “sopas de cavalo cansado” e eram “sedadas com bagaço” quando se contorciam com dores, tinham fome ou estavam doentes;

(43) as “parteiras” (que não as havia, diplomadas) eram as “aparadeiras” (mulheres curiosas, mais velhas, que já tinham sido mães...);

(44) não se conhecia a contraceção nem o planeamento familiar (mesmo a “pílula” chegaria tarde à cidade…) ("porra e lenha é quanto a venha", um provérbio que pode ter uma conotação sexual, mas não tenho a certeza);

(45) só se bebia leite (de cabra, de vaca era mais raro) quando se estava doente (em geral os adultos);

(46) o fatalismo dos provérbios populares (“boda e mortalha no céu se talha”, "muita saúde e pouca vida que Deus não dá tudo"...);

(47) se jogava ao pião (os rapazes) e se brincava às bonecas de trapos (as raparigas);

(48) não havia saneamento básico, água potável (a não ser  o das minas) nem banheiro com duche;

(49) a electricidade, a televisão, etc., só chegariam depois do 25 de Abril (mesmo com a barragem do Carrapatelo a escassos quilómetros de Candoz);

(50) e quando a gente (a nossa geração) nasceu, por volta de 1945, no fim da II Guerra Mundial, ainda morriam 120 crianças em cada mil nados-vivos.

É bom não esquecer, para a gente dar valor ao esforço (individual e coletivo) dos portugueses na melhoria das suas condições de vida, de saúde, de alimentação, de trabalho... 

Parafraseando, a canção do Zé Mário Branco, acrescentamos: "o que nós andámos para aqui chegar!"...

E dito isto, continuo a gostar de cá vir, em épocas emblemáticas, festivas, do Natal à Páscoa, da festa da Senhora do Socorro às vindimas... Claro, aos batizados, casamentos, festas da família, enterros… (E há perdas recentes, que nos deixam dor profunda e eterna saudade.)

E gosto de continuar a fotografar Candoz, ao longo das quatro estaçõesm e de preferència com a luz matinal... E em particular nesta época do ano em que aparecem as primeiras cores outonais e os primeiros cogumelos (os "sentieiros").

E continuo a eleger Candoz como tema da minha escrita (em prosa ou em verso, e nomeadamente nos meus/nossos blogues) (**). Afinal, sou um pobre "citadino"...

Que o leitor desculpe esta obsessão... É como a Guiné: estivemos lá menos de dois anos, e o blogue do Luís Graça & Camaradas da Guiné já vai a caminho dos vinte.  (**)

_____________


(...) Comentrários;

(i) Luís Graça;

Fico triste quando oiço "açularem os cães" do nortismo contra o sulismo ou vice-versa...

Afinal este país velhinho que herdámos dos nossos avoengos, e de que nos orgulhamos, não tem fronteiras internas a não ser as "metereológicas" como o sistema Montejunto-Estrela ou o anticiclone dos Açores...

20 de setembro de 2023 às 08:22

(ii) Eduardo Estrela:

(...) Felizmente que algumas das coisas que mencionas acabaram. Felizmente que outras ainda se mantêm e hão-de continuar a fazer feliz quem as aprecia.

Cá em baixo no Sul também era assim. Lembro-me bem de ver há muitos anos os serrenhos ( quem vivia a norte do Barrocal algarvio era assim apelidado ) virem ao Algarve como eles diziam, montados nos seus burros e mulas e trocarem favas, ervilhas, cebolas, batatas e outros produtos agrícolas, por peixe e marisco. Faziam-no pelo menos 2 vezes por mês percorrendo caminhos que à época eram pior que maus. (...) 

20 de setembro de 2023 às 13:03

(iii) Valdemar Queiroz:

(...) Luís, quando em 1956 vim a "escorregar por uma tábua abaixo"(*) até Lisboa, em Afife era assim a vida como muito bem descreves.

E sobre: "os salamaleques da “servidão da gleba” (também do tempo da outra senhora): “com a sua licença, eu senhor e meu amo”, dizia o caseiro para o “fidalgo”, desbarretando-se a 10 metros de distância"... Fernando Namora escreve no livro "Retalhos de um Médico" que a grande diferença entre o homem do norte e o do sul (alentejano) é que o do sul não atravessa a rua para cumprimentar o padre por o não conhecer de lado nenhum.

Faltou o ir descalço pra escola, que mesmo assim, quem me dera ter sete anos e o cabelo grande encaracolado e estar à espera do 7 de Outubro. (porquê a escola começava a 7 de Outubro?) (...)


20 de setembro de 2023 às 13:55


(iv) António Carvalho:

(..,) Sendo tu um homem do centro, tiveste, desde que conheceste a Alice, essa sorte de conhecer uma aldeia da região durimínia condimentada de todas as características, desde a economia, religiosidade, estrutura fundiária predisposições sociais. Aliás, sendo tu formado academicamente na área das ciências sociais, tens assim uma vantagem supletiva, quando mergulhas nas tuas reflexões sobre os espaços que habitas.

Um grande abraço, com votos de que possas abandonar, brevemente os empecilhos das muletas. (...)

20 de setembro de 2023 às 14:58

(v) António Graça de Abreu:
 
(...) Também conheço razoavelmente o Douro, o meu rio de menino e de rapaz mais espigado,(nasci e cresci no Porto) e as terras do Marco de Canaveses. Tenho um amigo arquitecto, Paulo Machado, com uma casa fantástica debruçada sobre o Tãmega, quase meu meio irmão, somos da mesma criação portuense, que já me emprestou o seu pedaço de Paraíso para estadias de espantar. São dos lugares mais bonitos de Portugal. Aí nasceu a tua Alice.

Aproveita Luís, e logo que possível atira essas muletas ao rio Tâmega, ou afunda-as nas águas do Douro. (...)

(vi) José Teixeira:

(...) Fizeste-me voltar aos meus tempos de criança. Com cinco /seis anos descobri que a sopa do caseiro que vivia a trezentos metros do monte onde vi a luz que me alumia, apesar de pobre, porque o dono das terras lhe comia o grosso do seu trabalho, tinha sempre um courato de porco na tijela, enquanto o meu, tinha couves, feijão, batata e um "pirilau" muito pequenino de azeite. 

Um dia em que minha mãe foi para lá fazer a sacha do feijão, apercebi-me do manjar e feito "xico esperto" ofereci-me para lhe guardar as ovelhas ao fim da tarde. Assim ganhei o direito ao petisco- um simples bocado de carne de porco gorda, com um coirato duro de roer que me sabia tão bem!
Assim me fiz o homem que sou. (...)


20 de setembro de 2023 às 18:34

(viii) Luís Graça:

E grande homem, Zé Teixeira, mesmo que a Pátria, ingrata, madastra, nunca to tenha dito...

Sei que tiveste uma duríssima infància, tinhas razões de sobra para te insurgires contra Deus e os homens... Porquê eu, meu Deus ?!...

Não foi fácil a nossa infància, adolescência e juventudem em geral... Alguns, creio que poucos, da nossa geração, terão vergonha em dizè.lo em público... que também comeram o pão que o diabo amassou... E a guerra ajudou a nivelar as diferenças,,,

Mas fizémo-nos homens, e isso é que importa sublinhar. E temos orgulho emm dizê-lo aos nossos filhos e netos. Tu bem podes tè-lo, tanto quanto eu sei de ti e da tua história de vida! (...)

10 comentários:

Anónimo disse...

O (meu) regresso às aulas
“ A Feira”

Terminado o verão, de pé livre e descalço, minha mãe me levou à feira para comprar umas chancas, para resguardar o pezinho da chuva e do frio no caminho para a escola bem como o “material escolar”.

O dia de feira era um autêntico dia de festa, pelo que era o êxodo das aldeias para a vila na ânsia de encontrarem alguns produtos e artigos (escolares… e não só!) a bom preço, bem como um pouco de divertimento e “galhofa” fugindo, por algumas horas, às rotinas do trabalho diário. A feira era o sítio onde tudo se vendia e em que tudo podia acontecer:
Venda de gado apalavrado no recinto da feira e selado na taberna da Sara Barracoa à volta de uma malga de vinho tinto e montes de notas saltando de mão em mão. Durante toda a tarde nunca a malga era lavada : "Sara! lave com a mesma água !");
Se ferravam os cavalos enquanto os homens confraternizavam e reviam velhas amizades na Sara;

Onde se apregoavam e vendiam panfletos com histórias mirabolantes : um burro que nasceu com 3 cabeças e um homem que foi “morto matado” por um coice do cavalo e ressuscitou quando o cavalo se ajoelha junto do “morto matado” de lágrimas nos olhos de arrependimento;

Onde se jogava a vermelhinha (jogo com dois copos, manuseados com destreza, e um dado) com o homem em permanente fuga da GNR, montando e desmontando a banca percorrendo toda a feira;

Onde homens se zangavam, puxando do pau para uma boa refrega, com aplausos da assistência, a intervenção da GNR e as pazes na Sara Barracoa;

Onde sempre aparecia um grupo de saltimbancos com as suas habilidades, malabarismos, magias e o mais extraordinário o “cospe” fogo;

Onde não faltava, nos dias de maior calor, a “aguadeira”, com o seu cântaro de barro à cintura vendendo copos de água com limão, quente mas que apregoava como fresca;

Onde se vendia literalmente de tudo, desde todos os produtos agrícolas, roupa, móveis, ouro, animais e tudo o mais que se possa imaginar (...não esquecendo a banha da cobra) e em que as mulheres pagavam com o dinheiro embrulhado num lenço guardado em segurança entre os seios.
Depois de feirar: ver, apalpar, experimentar, regatear e pouco comprar, lá chega o momento do caçula. Depois da compra do material escolar: uma lousa, uma dúzia de “riscotes”, uma tabuada, um metro de serapilheira para fazer a sacola… e é tudo…, lá fomos às chancas.
Não era propriamente uma sapataria mas sim um artesão de calçado com sola de pau (Socas, chancas e outros artigos em madeira. O artesão era já conhecido, pois foi ele que calçou ao longo dos anos toda a família. Conhecedor dos hábitos da família começou logo a colocar vários pares de chancas para eu provar. Lá se chegou ao número que eu considerei o mais confortável. O artesão, que já conhecia o hábito da Gracinda diz: leva dois números acima não é D. Gracinda! Claro senhor António, sempre assim foi, pois eles crescem todos os dias e este é o último e não tem a quem deixar!
Sempre usei as chancas com com papeis ou trapos enfiados na biqueira para que as mesmas não me saíssem dos pés!
Nota: As tabernas da Sara Barracoa em Famalicão e a Bagoeira em Barcelos, poiso dos lavradores nos dias de feira, felizmente, ainda sobrevivem, com algumas adaptações aos novos tempos.

Anónimo disse...

O autor do comentário anterior:
Joaquim Costa

Valdemar Silva disse...

Espectacular Costa, até se está a ouvir a barulheira da feira.

Eu não tinha chancas por serem caras, foram socos para ir à missa de Domingo.
No inverno, mesmo com frio, os socos ficavam em casa, ou escondidos debaixo da estrada, por atrapalhar nas corridas da escola.
Mal sabia eu, e passados sessenta anos vim a constatar, que num país mais rico que o nosso, nos Países Baixos, toda a população rural andava de socos/socas.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Eduardo Estrela disse...

Meu querido amigo e companheiro, camarada de muitos e maus momentos, simultaneamente fábrica de fraternidade para o resto das nossas vidas.
O amor que tens pelas belezas de Candoz e que frequentemente exaltas nos teus textos foto poéticos não são nenhuma obsessão, mas tão somente o teu encantamento e entrega aquilo que a mãe natureza nos oferece de melhor.
Obrigado pela partilha e que o regresso ao Sul seja o recomeço da tua normal mobilidade.
Abraço
Eduardo Estrela

Antº Rosinha disse...

E as escolas do centenário dos anos 40 com duas retretes? Para quê se não havia papel higiénico nem jornais velhos nem novos nas aldeias?

Nas aldeias não havia o mau hábito de ler na casa de banho por falta de casa de banho e de telemóvel.

Nos anos 40 mau era mesmo ser criança na Alemanha ou na França, não nas aldeias do Minho ou das beiras.

Cá ainda podíamos ir para Lisboa ou Porto, que não havia bombas.

Mas a propósito das cores outonais que o Luís retrata, ouvi a um brasileiro neto de portugueses minhotos, destes que optaram em vir para Portugal, dizia ele que todas as vezes que vai à terra dos avós vê sempre tudo com cores diferentes.

E de facto, no campo em Portugal, não há a monotonia que há no Brasil, ou em África, quer na vegetação na mudança da folha e no florir dos campos.

Cumprimentos

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Joaquim, escreveste mais um texto de antologia!... Tens vivências, de menino e moço, que eu não tenho, vivi numa vilória com algumas sortidas periódicas â aldeia da minha mãe, Nadrupe, e à Quinta do Bolardo, da meus tios, a 3 km da Lourinhã.

O que escreveste em comentário merece destaque no blogue... E a propósito dos pregões dos feirantes, ficas aqui com mais este, delicioso, que ouvi a uma das minhas informantes privilegiadas. ... O "home"que vendia o pó, o DDT, que dava para matar o piolho da cabeça da "canalha" bem como o escaravelho da batata apregoava assim, na feira do Marco:
"Olha o ceguinho sem um olho, é pra pulga e pro piolho!"...

Uma delícia!

Valdemar Silva disse...

Antº. Rosinha
Isso das retretes era geral a falta de papel.
Quem é que tinha papel, ou sequer o jornal, para limpar o rabo, em todas aquelas terras de província? Ninguém.
Os jornais foram durante alguns anos o verdadeiro papel higiénico.
Havia aquela do chefe levar o jornal e demorar muito tempo na casa de banho, e até o pessoal dizia: estamos tramados o chefe leva um "Século" pra limpar o rabo.

Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Valdemar, era uma espécie da Idade Média.

Quem teve a sorte de viver nas nossas aldeias, sem luz, sem agua canalizada, com pais e avós e vizinhos analfabetos ou semi, e viu construir as escolas dos centenários, onde ele próprio ia estudar, e viu fazer aquelas retretes como uma coisa absolutamente desnecessária, é que sabia avaliar a diferença da videira ao pé da qual onde habitualmente ia "defecar" e a outra videira que não tinha essa sorte.

E os animais de tração, sem amigos dos animais, que obedeciam à voz do dono?

E a caterva de irmãos que enchiam a rua apesar da mortalidade infantil?

Quem não viu que visse.

Fazia falta,muita falta, era um SNS, porque o resto lá viria.

Só não faziam falta as professoras a descascar na gente, algumas uns estafermos, pessoalmente foi um trauma bastante grande.

Cumprimentos e sorte com os médicos da nossa velhice.







Valdemar Silva disse...

Ah! Antº. Rosinha e quem não viu que visse.
E quem visse e fez que não viu?
Um rancho de filhos era como aquela da passarada miúda, muitos ovos para sobrar os que iam desaparecendo.
(Mas havia gente extraordinária.
Contou na TV, a mulher dum pescador que o seu homem morreu novo com 52 anos ficando com 14 filhos para criar. O homem batia-lhe se estivesse calada ou a falar, foi duas vezes parar ao hospital, coitado morreu com uma coisa do vinho, disse ela e também disse algo de arrepiante 'consegui criar os filhos e todos foram à escola'.)

E em Lisboa era quase a mesma coisa nas zonas antigas, não havia casa de banho, apenas havia uma pia de despejos na cozinha.

Era o país dos pobrezinhos que não foram habituados a mais, e que nunca falte a sardinha e o bacalhau.

Vendo bem as coisas, só aqueles milhares de jovens do país dos pobrezinhos aguentariam as condições que tiveram na guerra da Guiné.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Uma das mais notáveis obras que nos deixam o 25 de Abril e as nossas autarquias (finalmente com eleitos pelo povo, uns melhor do que outros) foi o saneamento básico... Era obra que não dava votos, escondida debaixo do chão.

Dois terços dos portugueses não tinham saneamento básico após 40 anos de Estado Novo, 16 de República e mais 40 de "Regeneração ou Fontismo" (em que construíamos 10 mil km de estradas e 3 mil de via férrea).

Ter uma "pia para c...", nas vilas e cidades, já era um luxo, um progresso. Tal como o fontanário a 100 metros de casa.

Afinal, muitos de nós nascemos ainda no "Século XIX" e vamos morrer no "Século XXI" (e ser "cromados/cremados", coisa impensável para a Maria da Fonte, da Póvoa do Lanhoso)...