sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Guiné 61/74 - P24710: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (3): A minha primeira viagem (de comboio) (Carlos Vinhal)

Estação Ferroviária da Senhora da Hora - Matosinhos - Autor desconhecido


A minha primeira viagem (de comboio)

Teria pouco mais que 8 meses de gestação, estando ainda no quentinho da barriguinha da minha mãe, quando fiz a minha primeira viagem.

Em Dezembro de 1945, o meu pai, ainda solteiro, havia “emigrado” de Azurara, freguesia do concelho de Vila do Conde, para Matosinhos em busca de uma vida melhor.
Um familiar da minha mãe tinha-lhe arranjado um modestíssimo emprego como funcionário público na “Junta”, assim era conhecida na época a Administração dos Portos do Douro e Leixões, mas muito bom para quem não tinha nenhum meio de subsistência. A minha mãe, ainda sua namorada, ficou em Azurara, na casa de seus pais, à espera de melhores dias para se poderem casar.

Mais tarde, em 1947, os meus pais finalmente casaram e ficaram a viver num quarto, em Matosinhos, que o meu já ocupava em solteiro, propriedade de um senhor que eu ainda conheci, o senhor Alexandre, também funcionário da APDL. Vida difícil, a do casal, como a de quase toda a gente naquele tempo, estávamos (estavam eles) no pós guerra. Havia imensa falta de emprego, de dinheiro e de géneros alimentícios, as pessoas, em virtude das privações impostas, eram doentes e não tinham meios económicos suficientes para se tratarem. O meu pai ganhava pouco e a minha mãe não tinha emprego, como a esmagadora maioria das mulheres naquele tempo, destinadas à exclusiva função de donas de casa e mães. Imagine-se as dificuldades por que passavam, ainda por cima longe da família que lhes desse uma mão em caso de necessidade extrema.

Com mais ou menos "fartura", fui-me desenvolvendo uterinamente de acordo com as leis da natureza, até que se aproximou a data prevista para eu tomar conhecimento da crueza do mundo exterior.
Como naquele tempo não havia maternidades, as crianças nasciam quase todas em casa das avós, preferencialmente, que pela prática tinham adquirido conhecimentos quase empíricos que as habilitava a assistir aos partos das mulheres mais novas, filhas, noras ou simplesmente vizinhas. A ideia era eu nascer na casa da minha avó materna, aonde se deslocaria a minha avó paterna, já que eram eram vizinhas, a quem caberia a função de parteira. Experiência não lhe faltava pois era mãe de 11 filhos.

Matosinhos e Azurara distam entre si cerca de 25 quilómetros, distância que hoje se faz com facilidade, mas naquele tempo era preciso apanhar um pachorrento comboio em Matosinhos, ir até à Senhora da Hora e aqui fazer transbordo para outro, um pouco menos lento, que vindo da Estação da Trindade, do Porto, ia até à Póvoa de Varzim. A estação de Azurara ficava duas paragens antes do fim da linha. Da estação de Azurara até casa dos meus avós maternos ainda era um bom bocado a pé, pelo que imagino a dificuldade que a minha mãe terá sentido para percorrer aquela distância, uma vez que estava “no fim do tempo”.

Completadas todas as luas, lá nasci no último sábado de Março de 1948, mas como não aparentava grande saúde, pelo sim, pelo não, fui baptizado logo na semana seguinte, na Igreja Matriz de Azurara, não fosse eu morrer e não me serem franqueadas as Portas do Paraíso.

E nesse dia 4 de Abril, após a cerimónia de baptismo, regressámos a Matosinhos, já os três, qual Sagrada Família, não de burro mas novamente de comboio, naquela que seria a minha primeira viagem à janela, aconchegadinho ao peito da minha mãe.

Durante dezenas de anos repeti essa viagem nessas duas linhas férreas em comboios que entretanto foram evoluindo, mas pouco.
Actualmente pode-se fazer o mesmíssimo percurso no Metro de superfície, bem mais rápido, cómodo e limpo.

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Nota do editor

Último poste da série de 28 de Setembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24707: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (2): O martírio da viagem de comboio de Afife ao Porto (Valdemar Queiroz, Afife, Viana do Castelo)

13 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Ternurenta e bem-humorada evocação desses tempos em que os portugueses vinham ao mundo pelas mãos das "aparadeiras" (termo hoe um pouco ca~ido em desuso para designar a parteira tradicional ou "comadre")...

E cã estás, Carlos, para nos poderes contar a tua aventura neste planeta... Não foram tempos fáceis, ainca havia o racionamento e arranjar um emprego com um ordenadito certo ao fim do mês (ou da semana) era obra!... Tiveste sorte, pelos pais e avós que te sairam na rifa, mas também... pelo comboio oao pé de casa!...

Eu só andei de comboio por volta dos meus 15 anos... mas não tenho grandes detalhes de memória dessa viagem...

A linha do Oeste passava aqui perto, no Bombaral ou Torres Vedras, cerca de 15/20 km..., o que na época era muito. A minha primeira garnde viagem foi a Lisbboa, 75 km, 3 horas, na camioneta do Koão Henrouqes, em 1955, aos 8 anos...Um passeio da escola ou da catequese...

Valdemar Silva disse...

Ah! grande Carlos Vinhal
Isso é que foi andar de comboio antes de nascer e depois a ver as árvores passar pelas janelas da carruagem.
Comigo deveria ter acontecido a mesma coisa, pois eu nasci no Hospital da Misericórdia de Viana, e não poderia ter sido indo a pé ou num carro de bois com quase quatro horas de caminho.
Mas essa primeira vez não vale.
O que vale, e valeu, foi a grande resiliência dos teus pais a enfrentar aqueles tempos difíceis.

Um belo texto escrito por quem tem todas as luas no curriculum.

Abraço e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valterar, 4 horas de carro de bois para fazer 10 km... Entre Viana e Afife.

Foste nascer em 1945 no Hospital (?) da Misericórdia... que na época não devia ter um minimo de condições: médico e enfermeira obstetras, bloco, anestesia,banco de sangue... Para o caso de falhar a "aparadeira"... És um sortudo, dos mil que alinharam na grelha de partida, 125 "ficaram pelo caminho"...

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Anónimo disse...

Sim senhora!!! Nascer num hospital com todas as mordomias não é para todos. Eu como todos os meus irmãos nascemos em casa, aparados para aparadeira da terra, a senhora Gracinda Vinte e Cinco (ainda hoje não sei porquê vinte e cinco!), que nunca foi à escola e nunca da aldeia saiu, a não ser para ir uma vez por mês à feira da vila.

Obrigado Carlos Vinhal por esta ternurenta viagem de comboio. Só faltou mesmo teres nascido durante a viagem.
Um abraço.
Joaquim Costa

Carlos Vinhal disse...

Obrigado pelo teu comentário, amigo Valdemar.
No Minho, como no Douro Litoral, como em qualquer parte do país, os anos 40 não foram fáceis.
A maioria da malta da nossa geração teve uma infância apertada, mas em compensação viveu os gloriosos anos 70/80/90 que, em termos de poder de compra, não se irão repetir tão depressa.
O que vemos hoje é escandaloso, com os poderosos a manobrarem os mercados e a imporem a lei do capital, em detrimento de uma verdadeira preocupação social.
Os jovens, mesmo que queiram, não podem casar porque não têm emprego, e quando têm não são devidamente remunerados, não conseguem arrendar casa e muito menos ter filhos.
As pessoas perderam a vergonha de pedir, (que alternativa têm?) e o Estado tornou-se numa entidade subsidiária quando deveria ser um impulsionador da economia.
Passa bem e não esqueças o teu livro de memórias.
Carlos Vinhal

Valdemar Silva disse...

Valterar, não vou alterar.
Não sei se a minha mãe foi a pé ou de carro de bois (que por acaso eram sempre de vacas) de Afife a Viana para eu nascer.
A estrada é a mesma, a distância seria cerca de 12 km, o que a pé seria de 3 km/hora = 4 horas. (10 km é à entrada/saída de Afife).
Mas, o mais provável é ter ido para o Hospital da Misericórdia* de comboio, uns dias antes de eu aparecer ao mundo.
Não saberemos ao certo, a minha família era pouco conhecida e não devia ter aparecido notícias nos jornais do extraordinário acontecimento.
Ao certo posso dizer: foi aqui que eu nasci, mostrando um selo de 3$00, de 1972, com monumental fachada quinhentista do Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Viana do Castelo.

*Edifício do antigo Hospital da Santa Casa da Misericórdia, construído no ano de 1589, que serviu de assistência hospitalar a Viana do Castelo até ao ano de 1983, altura em que se efectuou a mudança de instalações e entrada em funcionamento do novo Hospital Distrital de Viana do Castelo.



Valdemar Queiroz

Valdemar Silva disse...

Meu caro amigo Carlos Vinhal
Ainda não tinha aparecido o teu comentário antes de eu escrever o comentário anterior.
O que não deveriam ter sido as preocupações dos nossos pais nos anos 40's, reconhecido com a célebre, até ficou célebre, de 'livrei-vos da guerra, não vos livrei da fome'.
Coitada da minha mãe, com o meu pai internado na Gelfa com tuberculose óssea.

Saúde da boa
Valdemar Queiroz

Carlos Vinhal disse...

Caro Joaquim Costa
Não sei com quanto tempo de antecedência a minha mãe foi para casa da mãe, mas suponho ter dado uma margem de segurança. O meu pai deve ter regressado a Matosinhos para trabalhar e voltado nesse fim de semana de 27 de Março que até era de Páscoa. Ao longo da minha vida já festejei algumas vezes o meu aniversário no dia de Páscoa, a última vez em 2016.
Abraço
Carlos Vinhal

Anónimo disse...



Carlos:

Gosto muito das histórias antigas que falam dos nossos tempos de meninos e de garotos em que tínhamos o ar, o vento. as ruas, ,a natureza, o mar, tão perto, no teu caso, o alimento que com muito trabalho e sacrifício dos pais, bastava a alguns e a todos não. Compartilhamos com os nossos pais e avós a memória desses tempos difíceis tempo , que tu guardaste e sabes contar com tanto realismo também em homenagem a eles. A tua vida terá muitos outros capítulos interessantes que tu se quiseres poderás contar para enriquecer o Blogue do Luís Graça, de quem tens sido um trabalhador incansável a compor as estórias de tantos camaradas.
Um grande abraço.

Francisco Baptista

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Francisco Baptista, nesta série não pode faltar uma ou mais histórias tuas... Inédita ou repescada dos teus escritos. Fico à espera. Luís

Anónimo disse...



Carlos Vinhal:

Estou a pensar enviar-te a estória da minha viagem , já com mais idade do que a tu, depois da quarta classe, quando fui desterrado , por um ano, da minha aldeia para o litoral, linha do Sabor, linha do Douro, passagem pelo Porto, linha do Norte, uma ida a Fátima e uma ida ao mar que não conhecia. Nunca pedi à minha mãe para me ajudar a reconstituir essa viagem, pelo que hoje tenho uma memória fragmentada dela.

Fernando Ribeiro disse...

Oh, Valdemar, isso de nascer num monumento nacional é um luxo a que só os privilegiados têm acesso! :-)

Eu também nasci num hospital e a minha mãe deve ter ido para lá de táxi, porque tinha entrado em trabalhos de parto antes do tempo e com dores lancinantes. Se ela demorasse mais um pouco a chegar ao hospital, nem ela nem eu teríamos sobrevivido. Nasci de cesariana, prematuro, e ainda passei uma semana numa incubadora, mas arrebitei e ainda cá estou, franzino mas reguila.

Em miúdo, viajei de comboio várias vezes entre o Porto e Lisboa, sempre em 3.ª classe e sempre no comboio-correio, que parava em todas as estações sem falhar nenhuma. A viagem durava mais de oito horas e eu ia sempre sentado em bancos de madeira; não eram os bancos de sumaúma da 1.ª classe, mas de "sumapau", como dizia o povo com amarga ironia. Aquelas viagens eram uma tortura que parecia nunca mais ter fim.

Quando fiz a minha primeira viagem de comboio sozinho, tinha eu oito anos de idade. «Alguém vai estar à tua espera em Santa Apolónia», disseram-me à partida, na estação de São Bento. E lá fui; e estavam pessoas à minha espera à chegada, felizmente, senão nem quero imaginar a choradeira que eu faria.

Aos dez anos de idade, eu, que era um tripeirinho da silva, já andava sozinho por Lisboa. Qual é a criança de dez anos que agora anda sozinha por Lisboa? Eram outros os tempos. Eu tinha acabado de ser operado aos olhos, e todos os dias úteis ia sozinho aos Restauradores apanhar um autocarro para a Estefânia, onde fazia exercícios com os olhos, no consultório da oftalmologista que me tinha operado. A partir de certa altura, atrevi-me a dar também uns passeios a pé, sempre sozinho, pela Estrela, Santos, Cais do Sodré, etc. E nunca me perdi.

Tive uma infância completamente atípica, diferente da de toda a rapaziada da minha idade, por causa do meu estrabismo, que afetou gravemente o meu relacionamento com os outros miúdos. Cresci num meio operário, na Areosa, mesmo em cima da divisória entre a cidade do Porto e os concelhos vizinhos de Gondomar e da Maia.

Posso ainda acrescentar que, também aos dez anos de idade, cheguei a conduzir uma carroça (com um adulto ao meu lado, evidentemente). Foi facílimo. Coitada da mula! Era tão mansa!

Valdemar Silva disse...

Deve ser por ter nascido num monumento nacional quinhentista, que um motorista da administração da minha empresa perguntava se eu era monárquico, talvez pelo meu aprumo a vestir e forte bigode.
Eu respondia que não, acrescentando 'sou republicano, mas nasci em Viana....do Castelo'.
Olhe que parece mesmo, deve ser por causa do Castelo, respondia-me ele.

(foram uns finórios que apareceram no final da empresa onde trabalhei 35 anos)

Valdemar Queiroz