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sábado, 28 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5367: Controvérsias (57): Os Oficiais do Quadro Permanente Não Fugiram à Guerra (Carlos Silva, CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, Farim, 1969/71)


1. Comentário do nosso amigo e camarada Carlos Silva ao Poste P5303 - O Direito ao bom nome (*) O Carlos Silva foi Fur Mil Inf, e pertenceu ao CCaç 2548/BCaç 2879 (Jumbembem, 1969/71) É autor da melhor pãgina, na Net sobre o sector de Farim >  Guiné 63/74, por Carlos Silva.

Amigos:

1 - Como decorre da intervenção do Sr Coronel Vasco Lourenço (*), [apesar de termos uma relação pessoal desde há 40 anos, nunca o tratei por tu e não é agora no âmbito do blogue que o vou fazer], a mesma prende-se essencialmente com a questão do livro Elites Miitares e a Guerra de África, de Manuel Godinho Rebocho [ Roma Ed., Lisboa, 2009, Colecção Guerra Colonial, nº 8]  .

Bem como, presumo, com alguns comentários ao Post 5275 em relação à sua pessoa.

2 – Tal como diz o LG em comentário a este Poste: Outra das nossas regras básicas de convívio, nesta caserna virtual, é que nenhum de nós faz (ou deve fazer) juízos de valor (e muito menos de intenção) sobre o comportamento (operacional e pessoal) dos seus camaradas da Guiné. Este blogue não foi criado para fazer ajustes com ninguém, nem sequer com a História.

Assim, deveria ser, mas tal não aconteceu e atente-se nos ditos comentários, o que desvirtua os princípios básicos estabelecidos no Blogue, o que é de lamentar. Pois todo cidadão tem o direito de liberdade de expressão, mas tal direito não constitui um direito absoluto, ao ponto de lesar os direitos ao bom nome, à dignidade e honra de uma pessoa. Uma coisa foi os bocados menos bons que passámos naqueles anos idos anos de 60 e outra coisa é ofender os invocados direitos.

3 – E, quer se aceite ao não, sejam ou não abrilistas, porque também têm o direito de o não ser, o Sr Cor Vasco Lourenço, o qual não necessita de apresentações, foi um dos que lutou, como é público e notório, para que hoje se possa ter a garantia do direito de liberdade de expressão, consagrado constitucionalmente.

4 - Dito isto, quanto ao outro aspecto que presumo esteja relacionado, não só, mas essencialmente com a polémica estabelecida com a tese de doutoramento sobre a A Formação das Elites Militares em Portugal de 1900 a 1975, em que "o autor sustenta que os oficiais do quadro permanente fugiram da guerra, a qual se aguentou devido aos oficiais milicianos e aos sargentos do quadro permanente”.]... (Vd. os dois micro-vídeos da apresentação do livro, pelo seu autor, em Lisboa, dia 17 do corrente](**)

Sobre isto já me pronunciei em comentário ao  Poste 5275 (***)

5 – Contudo, apesar de não ter ainda lido o livro [do Manuel Rebocho], e uma vez que sou referenciado na intervenção do Sr Cor Vasco Lourenço (*), sempre direi no que se refere à afirmação acima, com todo o devido respeito pelo Autor, mesmo que a citada afirmação esteja fora do contexto dum estudo global do livro/tese/livro, como o Autor mencionou no dia da sua apresentação, estou em total desarcordo com ele, porquanto,

6 – Tive a honra de ser comandado por um ilustre Capitão do QP, originário da Academia Militar, 1º classificado do seu curso. Cor Luís Fernando da Fonseca Sobral, um jovem, tal como nós, talvez mais 2 anos, que tinha a seu cargo o Comando da Companhia e que em termos operacionais era dos primeiros a encabeçar, quer a Companhia, quer a nível de grupo de combate por ele criado, atacar o IN na sua toca, ir ao encontro do IN. Daí, a nossa CCaç 2548 ser a única Unidade em toda a História da guerra da Guiné, que não sofreu durante a sua comissão qualquer ataque ao Aquartelamento do Subsector de Jumbembem.

7 - Assim aconteceu com a CCaç 2549, Comandada pelo Sr Cor Vasco Lourenço, então ex-Capitão, que sempre acompanhara os seus homens, aliás, as nossas Unidades chegaram a operar em conjunto.

8 – Também não posso deixar de recordar e invocar aqui o excelente Comandante de Batalhão, hoje Maj Gen Agostinho Ferreira, então Ten-Coronel, que connosco alinhava para o “mato”, e como se costuma dizer: era um homem com os T… no sítio.

9 – Donde, este meu testemunho pessoal, porque com eles calcorreei as terras “o mato” do Sector de Farim, é a prova, provada,  que estes Oficiais do QP originários da Escola do Exército e da Academia, não fugiram à guerra tal, como afirma o Autor,  Manuel Rebocho


10 – Aliás, os factos e feitos do nosso glorioso BCaç 2879, podem ser analisados em parte neste Bolgue, quer no meu site: http://www.carlosilva-guine.com/

11 – Quando o nosso Camarada Manuel Rebocho, pisou terras da Guiné, já nós tínhamos deixado lá bem marcada a nossa posição, além de várias baixas provocadas ao IN, fizeram-se capturas relevantes de material, incluindo na participação do maior “Ronco” da História da Guerra Colonial e das Guerras da África Ocidental, que foram só 24 toneladas de material, em que também participaram os nossos camaradas pára-quedistas.

12 – Face ao exposto e ao que tenho escrito no Blogue, no meu Site e ao que tenho lido sobre a guerra na Guiné, que serviu de base para o estudo do nosso Camarada Manuel Rebocho, com todo o devido respeito, estou em total desacordo nesta sua análise.

OS NOSSOS OFICIAIS NÃO FUGIRAM À GUERRA

13 – Também já li o Documento do Sr Cor Morais da Silva que corrobora de forma brilhante o que atrás é afirmado, apesar de ter de confrontar ainda com a Tese relativamente a outros aspectos.

14 – Poderá haver e haverá com certeza outras questões subjacentes de ordem política, militar, social etc, que conduziram à diminuição de frequência de alunos na Academia Militar e consequentemente à diminuição do número de oficiais do QP, mas isso é outra questão que merece com certeza um estudo profundo.

E esta a minha a opinião que aqui deixo com um abraço amigo

Carlos Silva

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 20 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5303: O direito ao bom nome (1): Vasco Lourenço, ex-Cap Inf da CCAÇ 2549/BCAÇ 2879 (Cuntima e Farim, 1969/71)

(**) Vd. vídeos em You TUBE > Nhabijoes >

Elites Militares e a Guerra de África, de Manuel Godinho Rebocho (Parte II) (9' 57'')

Elites Militares e a Guerra de África, de Manuel Godinho Rebocho (Parte III) (3' 46'')

(***) Vd. poste de 15 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5275: Controvérsias (53): Polémica M. Rebocho / V.Lourenço: Por mor da verdade e respeito por TODOS os camaradas (A. Graça de Abreu)

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5343: Bibliografia (31): Lançamento do livro de Manuel Rebocho, na ADFA, Lisboa, 17/11/09: Foto-reportagem

ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas > Lisboa > Av Padre Cruz > 17 de Novembro de 2009 > 18h > Lançamento do livro de Manuel Godinho Rebocho, Elites Militares e a Guerra de África (Lisboa, Editora Roma, Colecção Guerra Colonial, nº 8, 2009, 486 pp, c. 18 €). Além do autor, estiveram presentes também familiares e amigos, com destaque para a sua esposa Maria Jacinta e seus filhos Cláudia Leonor e Nuno Miguel. O livro é dedicado pelo autor "aos que, na Guerra de África, deram de si à Pátria e a Pátria nada lhes deu". Há, para já, dois vídeos com a II e a última partes da apresentação do livro, feita pelo seu autor nesta sessão. Vd. a nossa conta no You Tube> Nhabijoes. O Manuel Rebocho é actualmente empresário na Guiné-Bissau, no sector das pescas.

ADFA > Lisboa > 17 de Novembro de 2009 > Apresentação do livro: na mesa, da esquerda para a direita, o Dr. Manuel Joaquim Branco, o autor, Doutor Manuel Godinho Rebocho, o José Arruda, a Prof Doutora Maria José Stock, da Universidade de Évora (e orientadora da tese de doutoramento em sociologia do nosso camarada Manuel Rebocho, discutida e aprovada em provas públicas, na Universidade de Évora, em 2005) e, na ponta direita, o editor Dr. José Vicente (Editora Roma)

O presidente da Direcção Nacional da ADFA, José Eduardo Gaspar Arruda, antigo combatente no TO de Moçambique, e que tive o prazer de conhecer pessoalmente nesta ocasião, tendo-lhe apresentado as saudações de toda a nossa Tabanca Grande. O Arruda convidou-me, por sua vez, para comparecer na festa dos 35 anos do jornal ELO, na segunda-feira seguinte, dia 20 (Por razões da minha vida profissional, não pude infelizmente lá estar, nesse dia e hora).

A Prof Doutora Maria José Stock, da Universidade de Évora, que fez a apreciação da obra do ponto de vista teórico-metodológico.

Ao Dr. Manuel Joaquim Branco, antigo combatente em Moçambique, e dirigente da ADFA (delegação de Évora), coube a segunda e última apresentação da obra. O ex-Alferes Miliciano e deficiente das Forças Armadas, é licenciado e mestre em História. Assina o prefácio do livro.

O editor, Dr. José Vicente (Roma Editora) à direita, que também falou, no início, do livro e da colecção "Guerra Colonial" (com este, são oito títulos publicados sobre este tópico)

O Cor Armando Ramos (Exército), sócio da ADFA, segundo creio, antigo camarada da Academia Militar do Miguel Pessoa (são do mesmo curso e reencontraram-se nesta ocasião)... O Armando Ramos fez uma defesa, emocionada, da obra, num curto período de perguntas e respostas que acabou por ser concedido à audiência, maioritariamente constituída por sócios da ADFA. O Ministro da Defesa Nacional (se não estou em erro) fez-se representar por um dos seus assessores, oficial da Marinha.

Um antigo combatente que faz trabalho volunário da ADFA, o Orlando Pineda, membro da nossa Tabanca Grande (fez anos a 15 deste mês), aqui fotografado com o Miguel Pessoa (um dos pouco antigos oficiais formados na Academia Militar, e combatentes da guerra colonial, presentes nesta sessão de lançamento de uma obra considerada por muitos deles como "polémica", no mínimo)

Dignos representantes da nossa Tabanca Grande: da esquerda para a direita, Miguel Pessoa, José Casimiro Carvalho, Eduardo Campos, Jorge Cabral, José Martins e Belmiro Sardinha... Outros camaradas presentes, que me recordo de ter visto: Carlos Silva e António Dâmaso (BCP 12, além da Giselda Pessoa.


As antigas enfermeiras pára-quedistas Gidelda Pessoa e Zulmira André, em conversa com o Miguel Pessoa. Convidei a Zulmira a integrar o nosso blogue e escrever histórias da guerra colonial na Guiné, a seis mãos (com a colaboração da nossa Giselda e do nosso Miguel).

Fotos e legendas: © Luís Graça (2009). Direitos reservados

O livro do Manuel Godinho Rebocho (de que farei oportunamente uma recensão crítica, quando tiver tempo e vagar) tem um título algo enganador... A tese original de doutoramento - discutida e apresentada em provas públicas na Universidade de Évora, em 2005, com arguição do Prof Doutor Adriano Moreira (ISCSP/UTL), e aprovada por unanimidade pelo júri -, chama-se A Formação das Elites Militares em Portugal de 1900 a 1975. Possivelmente por sugestão do editor e dos seus serviços de marketing, o livro passou a ter uma título mais comercial, enquadrando-se melhor na coleção "Guerra Colonial", da Roma Editora (Lisboa). Aqui fica, para já a estrutura do livro, através dos seus principais capítulos e páginas. O Capítulo dedicado à guerra colonial, o III, tem cerca de 150 páginas, um terço do total.

Nota autor, prefácio e introdução (pp. 17-43)
I. Enquadramento da investigação (pp. 45-86)
II. A formação base das elites militares (pp. 87-219)
III. A guerra de África e o desempenho das elites militares (pp. 220- 374)
IV. Comportamento das elites militares no pós-marcelismo (pp. 375-439)
V. Conclusões (pp. 440-462).

As páginas finais incluem pósfácio/depoimentos, fontes e bibliografia, índice dos diagramas, mapas, quadros e anexos. Entre os três depoimentos publicados enontra-se o nosso camarada de tertúlia José Pereira Casimiro Carvalho (ex-Fur Mil Op Esp, CCAV 8350 - Piratas de Guileje, 1972/74). De entre as fotografias que ilustram o livro há várias dos nossos camaradas Albano Costa e J. Casimiro Carvalho.
__________

Nota de L.G.:

terça-feira, 10 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4006: (Ex)citações (20): Nino Vieira, carismático, calculista, vingativo, violento, solitário (Eduardo Costa Dias)

1. Excertos de uma peça jornalística que gostei de ler, da autoria de Ana Dias Cordeiro > Nino Vieira: Combatente exemplar, ditador temido, Presidente sozinho. Público 4/3/2009.

Destaco aqui as opiniões (qualificadas), recolhidas pela jornalista, junto do meu amigo e colega Eduardo Costa Dias, grande especialista da cultura e da história da Guiné-Bissau, professor de Estudos Africanos, Departamento sde Sociologia, Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE) (foto à esquerda, Bissau, 2008).

Ele prometeu-me há dias um artigo para o blogue com a sua leitura socioantropológica da morte (física e simbólica) do Nino Vieira. Os camaradas e amigos da Guiné ficar-lhe-ão gratos. Até lá, fica aqui uma pequena amostra (*) do seu pensamento sobre um homem que ele conheceu pessoalmente...

O Prof Doutor Eduardo Costa Dias vai regularmente à Guiné-Bissau. Apresentou uma comunicação ao Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1 a 7 de Março de 2008), subordinada ao título "Papel e influência das dinâmicas sócio-religiosas e políticas nos movimentos de libertação nacional na África Ocidental: o caso da Guiné-Bissau". (**)

O homem que vai hoje a enterrar a Bissau, oito dias depois de ter sido brutalmente assassinado em sua casa, foi combatente, do outro lado da barricada, numa guerra onde estivemos envolvidos... Não foi um combatente qualquer. Foi um grande combatente. Foi objectivamente um inimigo que os tugas, apesar de tudo, aprenderam a respeitar. É também o último dos históricos comandantes do PAIGC... Com ele, há um grande capítulo da guerra colonial que se vira ou que se arruma, mal ou bem... Penso que mal: com ele (e com Tagme Na Waie) morrem também memórias privilegiadas de uma época, que não chegaram a ser recolhidas, tratadas e socializadas... Nenhum homem devia morrer sem primeiro passar o seu testemunho, sem escrever ou ditar as suas memórias... (LG)

(Bold, da responsabilidade do editor. L.G.)


(…) Foi alvo de verdadeiras tentativas de golpe de Estado, mas também fabricou algumas, para ter apoio em momentos de fragilidade. "Como todos os chefes guerrilheiros míticos, Nino escapou várias vezes à morte. Foi um chefe guerrilheiro que teve a morte sempre presente e foi esse espírito que levou para a governação", diz Eduardo Costa Dias, professor de Estudos Africanos do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), em Lisboa.

Entre os guerrilheiros era visto como um chefe corajoso, mas ao mesmo tempo muito temido, porque traiçoeiro. "Continuou a jogar com o carisma que tinha de guerrilheiro junto de outros guerrilheiros", acrescenta Eduardo Costa Dias. Mas esse carisma foi-se desvanecendo. Terminou os seus dias praticamente sozinho. Manteve a confiança de alguns antigos guerrilheiros fora das Forças Armadas, de um pequeno núcleo dentro do PAIGC de que foi líder, e junto de alguns régulos. Mas mesmo nas eleições de Novembro do ano passado associou-se ao PRID, um partido novo que apenas elegeu três deputados numa Assembleia em que o PAIGC de Carlos Gomes Júnior obteve maioria absoluta. À derrota militar de 1999 seguiu-se a derrota política.

Quando em 2005 voltou ao país e foi eleito nas presidenciais, o seu regresso chegou a ser remotamente imaginado como uma tentativa de redenção e as suas palavras como um genuíno gesto de reconciliação com inimigos de um passado conturbado e violento. Mas Nino não escolheu redimir-se.

"Além de calculista, Nino Vieira era extremamente vingativo", continua Costa Dias, para quem o ex-Presidente regressou sobretudo para vingar o seu passado, o seu derrube pela junta militar.

(…) Quem vive na violência morre na violência, sugeriram algumas figuras, como o ex-Presidente português Mário Soares. O professor universitário Eduardo Costa Dias diz que Nino Vieira ilustra na perfeição esse conceito. E acrescenta: "Além de violento, Nino não era amigo de ninguém." Nos últimos dias, provavelmente, tinha como única e eterna companheira a mulher, Isabel Romano Vieira, de uma família ligada à administração colonial e irmã do cônsul-geral da Guiné em Portugal. Foi poupada pelo comando que matou o Presidente.

Para Costa Dias, "a fragilidade de Nino Vieira veio dar um novo papel, de conselheira, a Isabel Vieira, que contudo teve sempre um papel importante". E que esteve com Nino até ao fim.


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Notas de L.G.:

(*) Vd. 7 de Março de 2009 >
Guiné 63/74 - P3993: (Ex)citações (20): Órfãos de guerra: Rogério Soares, aos dois anos, em Nhabijões (Gabriel Gonçalves, CCAÇ 12)

(**) Nota curricular,constante da página do
Simpósio Internacional de Guileje (Bissau, 1 a 7 de Março de 2008):

(i) Professor de Sociologia e de Estudos Africanos coordenador científico dos Programas de Mestrado e de Doutoramento em Estudos Africanos do ISCTE e professor visitante no Institut d’Études Politiques (Sciences Po-Paris) e na Université de Laval (Canada).

(ii) Tem desenvolvido investigações sobre as relações entre o Estado e as Autoridades Tradicionais, o “Islão Politico” e o ensino muçulmano na África Ocidental, em especial na região senegambiana (Gâmbia, Guiné-Bissau, Senegal).

(iii) Autor de vários trabalhos sobre problemáticas sociais e politicas contemporâneas da Guiné-Bissau, prepara actualmente a publicação de um livro sobre a islamização do antigo Kaabú e tem no prelo uma recolha de artigos publicados e inéditos sobre a politica colonial nas regiões islamizadas da antiga Guiné Portuguesa (1880-1930).

(v) Título da comunicação > Papel e influência das dinâmicas sócio-religiosas e políticas nos movimentos de libertação nacional na África Ocidental: o caso da Guiné-Bissau

(vi) Sinopse da comunicação

O assunto desta comunicação tem directamente a ver com as diferenças de peso, de dinâmica e de tempo de intervenção que muçulmanos e seguidores das religiões ditas tradicionais tiveram no movimento de libertação nacional liderado pelo PAIGC na Guiné-Bissau.

Trata-se, do meu ponto de vista, de um tema de grande importância para a compreensão, por exemplo, das razões sócio-politicas e político-religiosas da, globalmente, menor presença dos muçulmanos durante todo o período da luta de libertação, nas fileiras da guerrilha.

Com efeito, embora muitos muçulmanos tivessem, a título individual, integrado a guerrilha e alguns nela desempenhado papéis político-militares de relevo, durante a luta de libertação, a larga maioria dos membros do establishment muçulmano guineense (dirigentes das vários ramos guineenses da confraria qadriyya e da tijâniyya, imãs, letrados, régulos, etc.) teve um papel pouco colaborante com o PAIGC e muitos mesmo de assumido colaboracionismo com o poder colonial.

Nesta comunicação procurarei, descrevendo o quadro sócio-religioso da Guiné-Bissau e enumerando alguns dos acontecimentos mais marcantes das relações tecidas, antes e durante a luta de libertação, pelos dignitários muçulmanos guineenses com o poder colonial, questionar globalmente o papel dos vários grupos religiosos não cristãos durante a luta de libertação nacional e, numa dimensão mais precisa, aduzir elementos para a compreensão das razões da manifesta hostilidade por parte da maioria do establishment muçulmano guineense para com a luta de libertação.

Na minha opinião, as razões desta hostilidade não se radicam, no fundamental, na eventual incompatibilidade entre o Islão e o ideário filosófico-político proclamado pelo PAIGC ou na simples discordância sobre os métodos seguidos por este movimento na luta pela independência da Guiné-Bissau, mas sim em questões fundadas na política de alianças com o Estado seguida pelos dignitários político-religiosos muçulmanos guineenses e de um modo geral pelos dos países vizinhos desde os anos 1880-1890. Entroncam, na política dita do muwalat (“acomodação sob reserva”/”coabitação” com o Estado) encetada pelos dignitários muçulmanos no 3º quartel do século XIX em toda a África Ocidental e que, como o atestam, no caso guineense, a antiga “tradição” de aliança com o Estado colonial, a oposição do establishment muçulmano à luta de libertação e a “reentrada” na área do poder de muitos dignitários passado pouco tempo sobre a independência da Guiné-Bissau, transitou, nos seus contornos fundamentais, da situação colonial para a pós-colonial.

Cabral, fino conhecedor do xadrez social e político-religioso da Guiné-Bissau, tinha, bem antes do início da luta de libertação, consciência da tendência “estrutural” do establishment muçulmano para acomodar-se ao “poder do momento” qualquer que ele seja! Disse-o nos seus escritos, teve-a em atenção no delinear da estratégia de mobilização das populações para a Luta.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)



Guiné > Bissau > Pós-25 de Abrild e 1974 > Manifestações populares de regozijo mas também de contestação: na primeira foto, um manifestante empunha um cartaz onde se lê: "Abaixo a D.G.S." [a polícia política portuguesa]; na segunda foto, um dos manifestantes exibe um improvisado autocolante nas costas, onde se lê: "Viva o General António Spínola! Viva o Povo da Guiné!"... Quatro anos antes, em fevereiro de 1970, desenfiado e perdido em Bissau, eu estava longe de poder imaginar cenas como estas... (LG)

Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Direitos reservados.

Nesta rúbrica Blogueforanada - O melhor de ... retomam-se alguns textos, da 1ª série do nosso blogue, que já estão esquecidos ou que são de mais difícil acesso, merecendo ser, por uma razão ou outra, relembrados... É o caso, por exemplo, deste que se hoje se republica, com algumas alterações (1)...

Reprodução do post de 8 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVIII: Cartas que nunca foram postas no correio (1): Em Bissau, longe do Vietname (Luís Graça)


Guiné > Zona leste > Bambadinca > 1969 > O ex-furriel miliciano Henriques, atirador de armas pesadas, da CCAÇ 12 (1969/71) : "Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!"...

Foto: © Luís Graça (2005). Direitos reservados


1. Tenho algumas cartas que fui escrevendo, no meu Diário de um Tuga, dirigidas a amigos, mas que nunca cheguei a pôr no correio. Por lassidão. Por cansaço. Mas também por receio de correr riscos, desnecessários. Nunca soube até onde podia chegar o longo braço da PIDE/DGS e até onde me vigiava, nos vigiava. Também nunca fui, até hoje, à Torre do Tombo confirmar as minhas suspeitas... Sei, pelo que me disseram (mas nunca confirmei), que algumas pessoas com quem convivi em Bambadinca (um civil e um primeiro sargento) terão sido informadores da PIDE/DGS... Não me choca: este país era uma imensa bufaria...

Se bem me lembro, eu era o único tuga, da CCAÇ 12 (uma uniddae de intervenção constituída por soldados africanos, recrutados do chão fula), que recebia, em Contuboel e depois em Bambadinca, o Notícias da Amadora e o Comércio do Funchal, jornais conotados com a oposição ao regime de Salazar-Caetano. Por sua vez, o Fur Mil Marques (que irá cair, comigo, a 13 de Janeiro de 1970 numa mina A/C), recebia a Seara Nova. Não era nenhum crime de lesa-pátria nem punha o regime em perigo. Afinal, eram jornais sujeitos a censura (o famigerado exame prévio, que eufemismo!). Circulavam legalmente… e até chegavam à Guiné, a Contuboel e depois a Bambadinca, pelo Serviço Postal Militar (SPM).

Na época, poucos de nós se interessavam por política. De resto, quem se interessava por política era do reviralho, alguns grupos e grupúsculos (intelectuais e estudantis, católicos progressistas, organizações clandestinas, ligadas à esquerda e à extrema-esquerda…). Tínhamos todos nascido no Estado Novo e sido formatados, desde o berço, pelo Estado Novo… Quem se poderia interessar por política ? O termo tinha, de resto, uma conotação ameaçadora e perigosa...

Não obstante a efémera primavera marcelista e as mudanças de cosmética no aparelho repressivo do Estado Novo, o país começava, perigosamente, a descomprimir-se… A contra-cultura e a contra-ideologia do Maio de 68, lá fora, e da crise estudantil de 69, cá dentro, instalavam-se no quotidiano, nas empresas, nas redacções dos jornais, na universidade, nas instituições e até nas forças armadas… Um espírito de contestação e de subversão começava a ameaçar os aliceres (podres) do regime... Era o famoso espírito dissolvente, denunciado pelos espíritos mais lúcidos e ultraconservadores do regime.

Chegavam-me, à Guiné, alguns ecos dos movimentos estudantis e das lutas operárias de 1969 que eu apoiava apenas quixotescamente… Era preciso, todavia, ler as notícias nas entrelinhas. De qualquer modo, começava-se a perder as ilusões sobre a natureza do regime, sob o consulado de Marcelo Caetano (que tinha estado na Guiné em Abril de 1969, contrariamente ao seu antecessor que nunca posto os pés em África). E alguns de nós começavam a ter a consciência do beco sem saída a que nos conduzia a guerra colonial.

Na campanha eleitoral de Outubro de 1969, a oposição ao regime defende o direito à autodeterminação das colónias… Em 1966, eu já lutava pelo fim da guerra, mas sabia que lá iria parar, inelutavelmente... Que iria parar a Angola, a Moçambique ou à Guiné… Mas dos três pesadelos, a Guiné era o pior, para a malta da minha geração... Um primo meu tinha morrido na Guiné, em Ganjola, em 1966...

Em 1969 eu deveria ser dos poucos militares, em Bambandica, que estava inscritos nos cadernos eleitorais, tendo inclusive exercido o meu direito de voto… Eu, o meu capitão e poucos mais…

Sempre fui um outsider. Não estava ligado a nenhuma rede ou organização política da chamada oposição democrática. Por me manifestar, a título individual, contra a guerra colonial e expressar as minhas simpatias pelo PAIGC, chamavam-me o Soviético ou o camarada Sov, o que era pouco lisonjeiro para o meu espírito de independência e de recusa de alinhamento político-partidário...

A alcunha foi-me posta, creio eu, pelo Sargento Piça, o sargento mais bacano que eu conheci na tropa. Uma amizade feita de muitas cumplicidades e muitos copos. Era o nosso pai e o nosso irmão mais velho. Alentejano dos sete costados, devia andar pelos seus 37 anos, tantos quantos os do nosso capitão Brito, militar de carreira, três comissões, um bom homem…

Enfim, serve este preâmbulo para contextualizar o texto que se segue. L.G.

2. Publico hoje uma carta que escrevi, de Bissau, a um dos meus amigos... Ao fim de nove meses de comissão, desenfiei-me e fui até Bissau. Tínhamos uma espécie de acordo tácito, nós, os milicianos da CCAÇ 12 e o sargento Piça, que nos arranjava a guia de marcha. Todos os pretextos era bons, médicos ou não médicos, para se fugir do Vietname (ou seja, do mato): o mais vulgar, era “ir Bissau mudar o óleo” (sic), tratar dos dentes, marcar a tão sonhada viagem de férias à Metrópole, enfim, beber uns copos, comer umas ostras, espairecer as ideias, carregar as baterias…

Tínhamos chegado à Guiné em finais de Maio de 1969, no N/M Niassa. Ao fim de menos de nove meses, e de uma intensa actividade operacional, era já precária a nossa saúde física e mental…

Trinta e cinco anos depois, posso revelar a quem era destinada a carta que nunca chegou ao seu destino: era para o meu camarada e grande amigo Levezinho, o Tony Levezinho, furriel miliciano como eu e o Humberto Reis na CCAÇ 12…

O Tony fez há dias 58 anos, no dia 24 de Novembro [de 2005], no seu retiro algarvio, lá para os lados de Sagres… É uma surpresa que eu lhe faço, mesmo que ele estranhe o tom desta carta… É também um pequeno gesto de homenagem e de amizade, para com ele e a Isabel que eu, na época, só conhecia de fotografia. O Tony veio de férias à Metrópole, e casou, a meio da comissão, deixando a pobre da Isabel como potencial candidata a viúva... Felizmente, estão hoje os dois bem vivos e são um casal maravilhoso...

Bom, o Tony nunca suspeitaria da existência desta carta que eu, pela minha parte, imaginei mandar-lhe como se ele estivesse na… Metrópole, longe do Vietname

É uma carta insólita para um camarada, no sentido etimológico do termo: o que dorme no mesmo quarto, na mesma camarata… (O que era literalmente o nosso caso). Devo dizer que já não me recordo de quantos dias andei desenfiado em Bissau, longe do Vietname.. Possivelmente uma semana, não mais… O Levezinho conhecia Bissau, tão bem ou tão mal como eu…Neste acaso, utilizei-o apenas como um simples interlocutor imaginário para uma conversa imaginária… Em condições normais, em Bambadinca, eu nunca faria (in)confidências deste género. Por pudor, simplesmente por pudor. Ou por falta de tempo...

Este texto está datado, vale o que vale e algumas das suas expressões mais duras podem ferir, mesmo ainda hoje, algumas sensibilidades… Em resumo, não poderia subscrevê-hoje, tal como foi escrito há trinta e cinco anos… Não sou mais o mesmo, ou pelo menos não gostaría de ser mais o Henriques... Mesmo assim, apeteceu-me divulgá-lo.

Julgo que pode ter algum valor documental para a sociologia histórica da guerra da Guiné. Revela sobretudo um estado de alma, o de um jovem, de 23 anos (já feitos em Janeiro de 1970!), apanhado na rede como um cão (como ele costumava dizer) e que lutava por sobreviver, física e mentalmente, a uma guerra com a qual ele não podia, de modo algum, estar de acordo.

Espero que os meus amigos e camaradas de tertúlia, a começar pelo Tony Levezinho, sejam condescendentes comigo.


Diário de um Tuga > Bissau, far from the Vietnam. 10 de Fevereiro de 1970:

Meu caro L [evezinho].

Gostaria de falar-te de Bissau, cidade lumpen, e da sua morna dolce vita, em termos não propriamente de desencanto mas de desmistificação, a ti que ficaste no Vietname… E com palavras que fossem como ácido sulfúrico na pele!... Receio, porém, que a minha crueldade não chegue a tanto (que a realidade, essa, é requintadamente sádica, grotesca, como as telas de Brueghel ou do Goya!) e que não passe, afinal, de azeda esta carta que daqui te envio, aproveitando o macaréu da minha neurastenia e uns fugazes dias de liberdade vigiada. Daqui, da esplanada do Pelicano, frente ao estuário do Geba, rio tragicamente belo, insubmisso como os povos que habitam as suas margens!...


Bissau: cidade-caserna, cidade-bordel

Bissau revisitada (1)… Devo, antes de mais, confessar-te que, se acaso fugi da Guiné por uns dias, nem por isso deixo de sentir-me perseguido pelo seu fantasma. Sabes como é (ou, pelo menos, deves imaginar): uma incómoda sensação de estado de sítio (que nada tem a ver com a insularidade – aliás, pouca gente sabe que Bissau fica numa ilha), agravada, para quem aqui vegeta, pelos fantasmas dos foguetões que ainda há tempos flagelaram Bolama, a antiga capital colonial…

Bissau, cidade-caserna, cidade-bordel!... Para quê falar-te do tráfego (e do tráfico!) de carne branca sem qualquer carga erótica para lá do fetiche da cor da pele ?! De qualquer modo, o contrabando do sexo é negócio que vai de vento em popa - aqui funcionam as leis do mercado, a procura é muita e a oferta é variável ! – a par da quinquilharia oriental e sobretudo dos produtos nipónicos que ultimamente invadiram os free-shops cá do sítio, desde os Gouveia aos Taufik Saad, para quem o amendoim, o coconote e os panos de chita já foram chão que deu uvas… Enfim, o comércio da guerra e a guerra do comércio, uma parelha que sempre se deu bem em toda a parte!

Para quê falar-te dessas prostitutas que naufragam em todos os portos onde cheire a merda, a morte e a soldadesca, fugidas da miséria das ilhas de Cabo Verde e dessas outras ilhas de Lisboa e do Porto ?! Ou ainda dessas fêmeas, balzaquianas, que os tropas do ar condicionado mandaram vir da Metrópole e que passam, sequestradas, nos Wolkswagen e nos Mercedes pretos, conduzidos por soldados africanos – insólita imagem de jovens eunucos negros, subsaarianos, guardando as velhas odaliscas nos haréns dos sultões das Arábias!...

Não suporto, aliás, a visão desse branco asséptico, dessa cor neutra das metropolitanas cujo tom de pele tem qualquer coisa de viscoso como as paredes dos hospitais… Receio até que esteja a tornar-me racista ao contrário ou a caminhar para a misogenia, como aquele prisioneiro que, ao sair de Auschwitz, não conseguiu sequer beijar a mulher porque tinha horror a tudo o que era humano

Decididamente não queria falar-te de mulheres (e, muito menos, das brancas que, aqui, no cu do mundo, povoam os nossos delírios palúdicos)… Mas como não, se elas são o único antídoto contra a angústia da morte ?!... As paredes das nossas casernas no mato estão forradas de posters de gajas nuas, loiras, de olhos azuis, formas esculturais e pele acetinada, que é “para um gajo não se esquecer da carne branca” (sic)…

Em contrapartida, a pomada antivenéria (e, claro, a penicilina, em doses de milhões) é o que mais se gasta nos nossos postos de caserna. O bordel é talvez a única instituição castrense verdadeiramente respeitável… Mas se os franceses mandavam para a Argélia putas de campanha juntamente com os seus legionários, nós, tugas, não temos esse problema: fornicamos sem preconceitos raciais, ou não fossemos “um país, muitos povos, uma só Nação”!...

Imagina, pois, Bissau como estância de repouso do guerreiro. Há aqui, de certo, um equívoco, um tremendo equívoco por parte do médico miliciano, que até é um gajo porreiro, capaz de dar umas baixas aos operacionais, não obstante as ameaças veladas do comandante de sector… Mas eu estou farto dos gajos porreiros, como ele, que joga bridge com os cabrões dos oficiais superiores, apostados em ganhar a guerra (leia-se: os próximos galões) à custa de ti, de mim e da nossa tropa-macaca… É que Saigão, meu caro, é o último lugar do mundo onde eu poderia esquecer o Vietname!...

De qualquer modo, para além duns furtivos raides ao Pilão, as únicas operações que aqui se realizam ainda são do tipo gastronómico. Enfim, a nossa velha filosofia epicurista segundo a qual o melhor que se leva desta vida é ainda o que se come e o que bebe. Eis-nos, portanto, tristemente reduzidos ao ciclo vegetativo , ou seja, aos camarões, às ostras e às verdianas (sim, por que essas pretas de 1ª, na nossa linguagem machista e racista, também são coisas que se comem!)…

Do Pilão ao Chez Toi

Quanto ao Pilão, como escrever-to ? É a grande tabanca, o grande muceque de Bissau, um verdadeiro gueto, um enorme abcesso putrefacto produzido pelo colonialismo e pela guerra, e onde frequentemente explodem as tensões raciais e étnicas.

O Pilão é o lumpen… Daí as recomendações que te fazem ao chegares aqui - lembras-te ? -, à mistura com histórias mirambolantes, pouco ou nada verosímeis, de cabeças cortadas à catanada:
- Ao Pilão nunca vás sozinho, sobretudo à noite. Os gajos são todos turras. E com as verdianas, muito cuidado, menino, que as filhas da puta já nasceram todas esquentadas! - avisou-me um furriel fotocine, no Chez Toi, uma espelunca de 3ª classe com pretensões a night club, onde os tropas de galões dourados redescobrem o gosto civilizado do champagne francês (marado…), bebido com uma pin-up ao colo, como em qualquer bar rasca, de alterne, na Reboleira do J. Pimenta…

Descobri, entretanto, que o gajo – o fotocine – não passava de um proxeneta, nas horas vagas:
- É, claro, se quiseres, tens aqui coisa fina… Pró carote, já se vê..

Trata-se de um safado miliciano, como tantos outros que estão aqui na guerra do ar condicionado, afilhados de padrinhos com boas relações no Terreiro do Paço. Cabrões que conhecem a Guiné au vol d’oiseau, de helicóptero ou de Dornier. Felizardos que passam fins de semana nas praias da Ilha de Bubaque. Gajos para quem Buba ou Bambadinca, Guileje ou Piche são tudo cartões de visita exóticos: apenas sabem vagamente que fica lá no mato, no Vietname, de preferência longe de Bissau…


Os do Vietname, a espécie mais curiosa da fauna nocturna

Quanto ao resto, meu caro, é aquele ritmo burocraticamente febril duma cidadela militar, tradicional reduto da presença dos tugas desde finais do Séc. XVIII, simbolizado no forte da Amura. Há tropa por todo o lado, com particular notoriedade para a tropa especial aqui aquartelada – comandos, paras e fuzos – que entre duas viagens de helicóptero, ou de lancha de desembarque, na ociosidade destes dias e noites escaldantes de Bissau, se pavoneiam pelas esplanadas, de tomates inchados, apalpando o cu das bajudas, olhando por cima do crachá a tropa-macaca ou provocando-se mutuamente, por excesso de adrenalina ou por velhos ressentimentos corporativos…

O tráfego de viaturas e aeronaves é intenso mas só dificilmente nos apercebemos de que Bissau é o centro motor dum país em guerra. O melhor é tu postares à entrada do Hospital Militar e contares os helicópteros que aterram na placa…

À noite, entretanto, c’est le vide: os únicos noctívagos ainda são aqueles que vêm do mato e que sofrem da fobia do arame farpado: é vê-los até às tantas da madrugada, à mesa das esplanadas, empanturrando-se de ostras e de cervejas e contando histórias do mato. Mas em vão o guerreiro, em cura de repouso, busca outra atmosfera em que o oxigénio não esteja carregado das toxinas da angústia e da lassidão… A menos que, no dia seguinte, tenha passagem marcada para a Metrópole… Ele vem da guerra e para a guerra há-de voltar, de avião ou de barco, já que não há praticamente ligações terrestres de Bissau para o resto da Guiné. De qualquer modo, os que vêm do Vietname, ainda são as espécies mais curiosas da fauna humana que vagueia por esta capital-fantasma.

De facto, aqui desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, de violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos…


Já nem sequer se pode tocar no cabelo de um preto (Capitão P.)


A propósito, como os tempos mudam, meu caro!.. Em conversa com um sargento de cavalaria que teve o Velho como comandante de batalhão no Norte de Angola – conversa a que ocasionalmente assisti -, o Capitão P. (que eu não sei, nem me interessa saber, se é miliciano, ou se é do quadro, ça c'est m´égale!), mostrava-se vexado (o termo é dele) pelo facto do então tenente coronel ameaçar executar, in loco, sumariamente os guias nativos que mostrassem a mais pequena hesitação na escolha dos trilhos ou os carregadores que deliberadamente deitassem fora a água dos jericãs...
- E agora, como Com-Chefe na Guiné, não permitir sequer que se toque no cabelo de um preto!

Bissau, enfim, porto de fuga e salvação!... Embora não se possa exactamente prever até onde tudo isto irá parar, com a actual escalada da guerra, de parte a parte, aqui tu tens ao menos a reconfortante sensação de teres as malas sempre feitas, pronto a partir em qualquer altura… Mas nada te garante que embarques a tempo: é que estamos todos metidos num atoleiro e em vias de perder o último avião!...

Make love, not war. Um abraço. Até mais logo. Talvez apanhe o barco da Gouveia, amanhã. Já estou farto desta merda.

Henriques (*)
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(*) ... Luís Graça, ex-furriel miliciano da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)

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Notas de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores desta nova série:

11 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1945: Blogue-fora-nada: O melhor de ... (1): Nunca contei uma estória de guerra aos meus filhos (Virgínio Briote)

23 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1987: Blogue-fora-nada: O melhor de... (2): Apanhados pelo macaréu e mortos no Rio Geba (Sousa de Castro, CART 3494, Xime, 1972)

(2) Vd. a série Estórias de Bissau:



11 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1266: Estórias de Bissau (1): Cabrito pé de rocha, manga di sabe (Vitor Junqueira)

11 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1267: Estórias de Bissau (2): A minha primeira máquina fotográfica (Humberto Reis); as minhas tainadas (A. Marques Lopes)

14 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

17 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1286: Estórias de Bissau (4): A economia de guerra (Carlos Vinhal)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1288: Estórias de Bissau (5): saudosismos (Sousa de Castro)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1289: Estórias de Bissau (6): os prazeres... da memória (Torcato Mendonça)

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1290: Estórias de Bissau (7): Pilão, os dez quartos (Jorge Cabral)

24 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1314: Estórias de Bissau (8): Roteiro da noite: Orion, Chez Toi, Pilão (Paulo Santiago)

22 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1391: Estórias de Bissau (9): Uma noite no Grande Hotel (José Casimiro Carvalho / Luís Graça)

2 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1484: Estórias de Bissau (10): do Pilão a Guidaje... ou as (des)venturas de um periquito (Albano Costa)

10 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1512: Estórias de Bissau (11): Paras, Fuzos e...Parafuzos (Tino Neves)

31 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1639: Estórias de Bissau (12): uma cidade militarizada (Rui Alexandrino Ferreira)