terça-feira, 7 de dezembro de 2004

Guiné 63/74- P4: Um Natal Tropical (Luís Graça)

1. Excertos da história da Companhia de Caçadores 12 (CCAÇ 2590): Guiné 1969/71


Bamdabinca, Dezembro de 1969:


(...) a 24, 2 Gr Comb [grupos de combate] da CCAÇ 12, em cooperação com a autoridade administrativa de Bambadinca [onde estava aquartelada a companhia], levam a efeito uma rusga (com cerco) à tabanca de Mero [aldeia balanta, junto ao Rio Geba]. Apesar de alguns indícios suspeitos, não foram detectados elementos IN [inimigo]. Para efeitos de controlo populacional, completou-se e actualizou-se o recenseamento dos habitantes de Mero (Op Acção Guilotina)[nome de código da operação]. Nas duas semanas anteriores, o IN tinha desencadeado várias acções de intimidação contra as populações de Canxicame, Nhabijão Bedinca e Bissaque, a última das quais levada a efeito por um grupo enquadrado por brancos que retirou para a região de Bucol, cambando o RGeba [atravesando o Rio Geba de canoa, para norte].

Por outro lado, prevendo-se a possibilidade o IN atacar os aquartelamentos das NT [nossas tropas] durante a quadra festiva do Natal e Ano Novo, foi reforçado o dispositivo de defesa de Bambadinca. Assim, além da emboscada diária até às 1 a 3 horas da noite, a nível de secção reforçada num raio de 3 a 5 km (segurança próxima), passou a ser destacado 1 Gr Comb para Bambadincazinha (em fase de reordenamento), todas as noites até às 6h da manhã, constituindo uma força de intervenção com a missão de fazer malograr o eventual ataque ao aquartelamento e/ou às tabancas da periferia, actuando pela manobra e pelo fogo sobre as prováveis linhas de infiltração e locais de instalação das bases de fogo do IN, ou no mínimo detê-lo e repeli-lo pelo fogo.

A 26 [de Dezembro de 1969], forças da CART 2520 [companhia de artilharia], reforçadas por um 1 Gr Comb da CCAÇ 12 realizam um patrulhamento ofensivo na região do Xime, Madina Colhido, Chacali, Colicumbel e Amedalai, sem detectacterm vestígios do IN (Op Faca Húmida).

A 30, Sua Excia. o Comandante Chefe [General António de Spínola]visita Bambadinca para apresentar cumprimentos de Ano Novo a todos os oficiais, sargentos e praças do CMD e CCS/BCAÇ 2852 [comando e companhia de comando e serviços do Batalhão de Artilharia 2852], e sub-unidades adidas [a CCAÇ 12 incluída].



2. Excertos do diário de um tuga:


Bambadinca, 24/25 de Dezembro de 1969:


Natal nos trópicos! Não consigo imaginá-lo sem aquela ambiência mágica que me vem do fundo da memória. É que do cristianismo terei apenas captado o sentido encantatório do Natal e a sua antítese, que é o universo maniqueísta da Paixão. Mas decididamente não vou fazer flash-back. Cortei o corão umbilical a frio e da infância resta-me apenas a sensação do salto mortal.

Há, porém, certas imagens poéticas, recalcadas no subconsciente ou guardadas no baú da memória, que hoje vêm ao de cima. Por um qualquer automatismo. Ou talvez por ser Natal algures, far from the Vietnam, longe da Guiné, e eu passar esta noite emboscado. O que não tem nada de insólito: é uma actividade de rotina. Mas é terrivelmnete cruel a solidão deste tempo em que os homens se esperam uns aos outros nas encruzilhadas da morte, os dentes cerrados e as armas aperradas, em contraste com o bando alegre de crianças cabo-verdianas que, não longe daqui, da Missão do Sono (uma estrutura sanitária, agora militarizada, transformada em local de emboscada!), entoam alegres cânticos do Natal crioulo ao som do batuque pagão.

No aquartelamanto, de que vejo as luzes ao fundo, ninguém se desejou boas festas porque também ninguém tem sentido de humor. Nem por isso deixou de celebrar-se a Consoada da nossa terra: um pretexto para se comer (o tradicional prato de bacalhau com batatas e grelhos.. desidratados) e sobretudo para se beber (muito).

Hoji, festa di brancu, noite di Natal, manga di sabe!, lembra-me um dos meus soldados africanos, enquanto ao longe a artilharia do Xime e de Massambo faz fogo de reconhecimento. E eu fiquei a pensar neste tempo de silêncio, de cobardia e de cumplicidade. Mas também de raiva. Como o Manuel Alegre, eu gostaria de poder dizer neste dia, todos os dias: "Mesmo na noite mais triste / Em tempo de servidão / Há sempre alguém que resiste / Há sempre alguém que diz não".

quarta-feira, 28 de abril de 2004

Guiné 63/74 - P3: Excertos do diário de um tuga (2) (Luís Graça)




Guiné > Região de Bafatá > Bambadinca > Abril de 1997 > O obus de Bambadinca... Vestígios da guerra colonial: uma peça de artilharia (obus de 140 mm) abandonada pelos tugas. (Foto reproduzida  gentilmente autorizada pelo Frederico Amorim.  vd. O Mundo de Fred).

Foto (e legenda); © Frederico Amorim (1997). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Os termos IN (abreviatura de inimigo) e NT (nossas tropas) são aqui usadas, de acordo com os usos e costumes castrenses da época em referência (Julho de 1969 a Fevereiro de 1971). Muito em particular, o termo IN não tem qualquer conotação negativa. 

É apenas um termo técnico usado, por comodidade minha, para designar as forças (a guerrilha do PAIGC, hoje partido político da Guiné-Bissau) que combatiam pela independência do território (bem como das Ilhas de Cabo verde), contra as tropas portuguesas (as NT).
Em 1969/71, o triângulo Bambadinca-Xime-Xitole correspondia, grosso modo, ao Sector L1 da Zona Leste da Guiné (que estava dividida, por sua vez, em cinco sectores, abrangendo o chão fula, ou seja, a região tradicionalmente habitada pela população de etnia fula e futa-fula).

Coincidindo basicamente com a charneira Rio Geba / Rio Corubal, este sector era de vital importância para as comunicações fluviais e terrestres da Zona Leste. O Rio Geba era navegável até ao Xime (LDG - Lanchas de Desembarque Grandes, da Marinha Portuguesa) e Bafatá (embarcações mais pequenas, em geral civis). Depois do Xime o Rio Geba estreitava e serpenteava ao longo do território, tornando-se a segurança fluvial mais difícil, em particular na temível zona do Mato Cão.

Na época, as ligações (e sobretudo o transporte de homens e material) entre Bissau e a Zona Leste (Xime, Bambadinca, Bafatá, Nova Lamego/Gabu, Pitche) eram feitas ou por via aérea ou por barco (até ao Xime) e depois, por terra, em colunas militares e com um forte dispositivo de segurança.

Entretanto, o único percurso relativamente seguro, no Sector L1, era a estrada (asfaltada) de Bambadinca-Bafatá. O Rio Corubal, por seu turno, estava interdito à navegação, sendo controlado pela guerrilha do PAIGC, em toda área compreendida pelo Sector L1 (desde o seu estuário até ao Saltinho). O Rio Corubal, com cerca de 400 km. de extensão, nasce no maciço do Futa Djalon, na Guiné-Conakry, e vai desaguar no estuário do Rio Geba.

No triângulo Bambadinca-Xime-Xitole, as NT só chegavam à margem esquerda do Rio Corubal quando iam reabastecer o Saltinho, o famoso Saltinho, de grande importância estratégica, já que a sua ponte de quatro arcos, construída em 1955, era o único sítio que permitia a ligação, por terra, da capital, Bissau, com o sul.

Era, além disso, um sítio pitoresco devido aos rápidos do rio que lhe deram o nome. Só por ocasião de grandes operações, como a Operação Lança Afiada, que decorreu em Março de 1969 e que mobilizou mais de 1300 homens, é que as NT podiam chegar à margem esquerda do Rio. O estratégico aquartelamento da Ponta do Inglês, na região do Xime, tinha sido, entretanto, abandonado pelas NT, ainda antes da chegada de Spínola à Guiné.

2. Em rigor, havia ainda mais duas áreas que faziam parte do Sector L1, uma a norte do Rio Geba e outra a leste da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole. A actividade da guerrilha era mais intensa e regular no triângulo Bambadina-Xime-Xitole e na área a norte do Geba, até ao limite sul da mítica zona do Oio-Morés, de matas densas, cercadas de bolanhas, e que eram um dos grandes "santuários do IN" (usando um termo do jargão miliar, omnipressente nos relatórios de operações).

Em Jullho de 1969, o dispositivo das NT no Sector L1 era o seguinte:

(i) Comando e Companhia de Comando e Serviços do BCAÇ. 2852 (Bamdabinca) (a partir de Julho de 1970, BART 2917);

(ii) Forças de intervenção (Bambadinca): CCAÇ. 12; Pelotão de Caçadores Nativos 53 (a partir de Junho de 1970, Pel.Caç. Nat. 52);

(iii) Subunidades em quadrícula: CCAÇ 2520 (Xime), 2339 (Mansambo) e 2413 (Xitole), substituídas em Junho de 1970 pelas CART 2715, 2714 e 2716, respectivamente.

Se considerarmos ainda o Pelotão de Cavalaria Daimler (Bambadinca), os Pel. Caç. Nat. 52 (Missirá) e 53 (Fá Mandinga), além das forças militarizadas (pelotões de milícias aquarteladas em Taibatá, Dembataco e Finete, excluindo a população fula armada nas tabancas em autodefesa), a nossa força poderia ser estimada em cerca de 1250 homens em armas, o que nos dava uma vantagem , em relação à guerrilha do PAIGC, de talvez cinco para um (vd. GRAÇA, L. - Documento: Guiné 69/711: subsídios para a história da africanização da guerrra (conclusão). O Jornal. 18 de Junho de 1981).

Haveria ainda que considerar a existência de tropas especiais, aquarteladas em Fá Mandinga, embora às ordens do Comandante-Chefe. De facto, Fá Mandinga ficou conhecida sobretudo por ter sido o berço e a sede da 1ª Companhia de Comandos Africanos, a partir de inícios do ano de 1970 (vd. GRAÇA, L. - Documento: memória da guerra colonial: a tropa macaca e a elite da tropa. O Jornal.14 de Abril de 1981).

A CCAÇ. 12 era uma unidade de intervenção às ordens do comandante do Sector L1. E no período em causa (meados de 1969 e 1º trimestre de 1971), foi de facto a principal força de intervenção.

3. Nesse período, todas as posições da NT foram atacadas mais do que uma vez (com excepção de Bambadinca, Fá Mandinga, Ponte do Rio Undunduma e algumas tabancas em autodefesa nas proximidades de Bambadinca). As mais atacadas foram Xime, Mansambo, Missirá, Enxalé e todos os destacamentos de mílicias. Com muita frequência e a diferentes horas do dia e da noite. 

Embora menos vezes, também eram atacados os aquartelamentos de Xitole a Ponta dos Fulas. Os ataques podiam durar até duas horas e envolver efectivos do IN entre 30 e 200 elementos, fortemente armados.

As nossas operações em território controlado pelo IN eram geralmente efectuadas a nível de batalhão, mobilizando entre 150 e 300 homens, e contando com cobertura aérea. As colunas de reabastecimento (a Mansambo, Xitole e Saltinho) também mobilizavam importantes recursos, em homens e material. Eram particularmente penosas no tempo das chuvas.

4. No período de Julho de 1969 a Fevereiro de 1971, no Sector L1 as baixas do IN foram as seguintes:

(i) Guerrilheiros capturados: 3; população: 13;
(ii) Mortos confirmados no terreno: 13;
(iii) Mortos e/ou feridos graves estimados ou "confirmados posteriormente": 23.

Do lado das NT (nossas tropas, pertencentes ao Sector L1, sem considerar a população, nem as milícias, nem a 1ª Companhia de Comandos Africanos, nem outras tropas especiais como os paraquedistas), as baixas foram as seguintes:

(i) Mortos: 14 (2 da CCAÇ. 12);
(ii) Feridos graves (evacuados para Bissau ou Lisboa): 40 (dos quais 17 da CCAÇ. 12)
(iii) Feridos não evacuados: 9 da CAÇ. 12 (o número de feridos, ligeiros ou menos graves, das unidades em quadrícula é desconhecido). Fonte: História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971.

5. Ainda sobre a Zona Leste, convirá dizer que Spínola, o "pai dos guinéus", soube conquistar o coração dos fulas por várias vias: por um lado, reprimindo certos abusos do poder colonial (PIDE/DGS, chefes de posto, exército); por outro, mantendo excelentes relações pessoais com os "homens grandes", os chefes tribais, os régulos, os dignatários religiosos (como o famoso Cherno Rachid, de Aldeia Formos); e, por fim, promovendo o turismo religioso (por exemplo, as peregrinações a Meca).

Os fulas, tal como os mandingas, eram islamizados, contrariamente aos balantas e outros povos do litoral, que apoiavam o PAIGC. De qualquer modo, os fulas estavam condenados ao colaboracionismo por razões que tinham a ver com a história colonial, já que as autoridades portuguesas haviam feito deles, contra os restantes povos da Guiné, os auxiliares do aparelho político-administrativo (régulos, sipaios...) e militar (milícias, soldados regulares...) (Graça, L.: Documento: memória da guerra colonial: Guiné 1969/71: subsídios para a história da africanização da guerra (2). O Jornal. 29 de Maio de 1981).


Outros links de interesse (, revistos em 23/4/2020:  o editor LG  verificou que já nenhum dos links estava ativo, razão por que foram eliminadas as URL; é possível que tenham sido atualizados)


Portal da Guiné-Bissau

CPLP - Comunidade dos Países de Língua Portuguesa > Guiné-Bissau

Centro de Documentação 25 de Abril, Universidaded e Coimbra > Treze anos de guerra > Inbtervenientes > Guiné

Associação Nacional de Cruzeiros > Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa > Conakry, 22 de Novemrbo de 1970

Viriato > Campanhas Ultramarinas, 1961-1974 > Armamento

Companhia de Caçadores CCAÇ. 13 - Os Leões Negros

Guiné 66/67 > CCAÇ 1496 > Crónicas Perdidas no Tempo > Página de Pereira Monteiro (Esta página estava alojada no Portal Terravista, que em 2004 deixou de prestar o serviço gratuita aos cibernautas)

Sapo > Sociedade > Grupos e Associações > Antigos Combatentes

domingo, 25 de abril de 2004

Guiné 63/74 - P2: Excertos do diário de um tuga (1) (Luís Graça)

1. Trinta anos e tal anos depois...Para que não digam, os (por)tugas mais novos, que a Guiné nunca existiu. Que a guerra da Guiné nunca existiu. Ou que nunca ouviram falar da guerra colonial (em África). Uma guerra que marcou, se não um povo inteiro, pelo menos toda uma geração. A minha geração. A nossa geração.

Desenterro estes escritos, guardados no sótão da casa e sobretudo no sótão da memória, em homenagem a todos os que derramaram o seu sangue na Guiné, entre meados de 1969 e o 1º trimestre de 1971. Ou que deram o melhor da sua vida, a sua juventude, a sua generosidade, os seus sonhos, as suas ilusões. Pela Pátria, dizia-se então. Ou por nada, o que é pior.

Há trinta e tal anos... Em homenagem aos que combateram, de um lado e de outro, nos três teatros de operações (Angola, Moçambique e Guiné). Em particular aos meus camaradas, portugueses e guineenses, da Companhia de Caçadores nº 12 (CCAÇ 12). Que se bateram com dignidade, bravura, galhardia e honra (mas também com ética!) na Zona Leste, Sector L1, da Guiné.

"Guiné... país de azenegues e de negros, ali morreram alguns dos primeiros navegadores, varados por azagaias envenenadas....": pode ainda ler-se algures, em Coimbra, no "Portugal dos Pequenitos", no Portugal ternurento e salazarento dos anos 40.

Há trinta e tal anos... Em homenagem também aos que fizeram o 25 de Abril de 1974. Foi no meu tempo, na Guiné, entre os milicianos, que o moral das tropas começou a deteriorar-se. Inexoravelmente. E a contaminar os oficiais e os sargentos do quadro, já poucos, velhos e cansados. Por exemplo, em 26 de Novembro de 1970, a escassos três meses da minha rendição individual e do meu regresso a casa, mandei impunemente à merda toda a hierarquia militar do aquartelamento de Bambadinca, do tenente-coronel aos majores e capitães, depois de termos sofrido um dos nossos piores reveses militares, a CCAÇ 12 e a CART 2714 [Companhia de Artilharia aquartelada no Xime] , no decurso da Operação Abencerragem Candente: seis mortos e nove feridos graves...

Tudo aconteceu por grave erro que na altura imputámos ao major, segundo comandante do BART 2917, um militarão de artilharia que não gozava da simpatia dos alferes e furriéis milicianos. Abreviando razões, o comandante da força, que integrava a fatídica Operação Abencerragem Candente [vd, o meu poste de 25 de Abril de 2005], obrigara-nos a repetir o percurso de véspera (25 de Novembro de 1970), a caminho da Ponta do Inglês (Região do Xime, na confluência dos Rios Geba e Corubal)... Contra as mais elementares regras de segurança militar! É que na Guiné bichos e homens sabiam que nunca se pisava duas vezes o mesmo trilho e nunca se bebia duas vezes a água do mesmo rio...

Ainda recordo, com nitidez, as palavras que dirigi, depois do regresso a Bambadinca, na parada, alto e em bom som, frente às instalações do comando do BART [Batalhão de Artilharia] 2917, utilizando a mesma linguagem de caserna com que me fizeram soldado à força "contra a minha própria guerra" (Manuel Alegre): "Assassinos, criminosos de guerra, limpo o cu às folhas do RDM [ Regulamento de Disciplina Militar]"...

Podiam ter-me mandado prender por insubordinação, por grave infracção ao RDM, por crime de lesa-pátria... Não o fizeram, não tiveram coragem de o fazer: pediram apenas ao médico (miliciano) que me desse um Valium 10; o meu capitão, por seu turno, achava que eu andava muito cansado... Diagnóstico: distúrbio emocional, muito frequente na época entre as NT (nossas tropas).

E no final da comissão fiz-lhes a história dos seus gloriosos feitos em combate. Deram-me um louvor, averbado na minha caderneta militar, pela qualidade e seriedade do meu trabalho ... jornalístico. Dei-lhes a volta e fiz a crónica da guerra, baseado em toda a informação classificada a que tive acesso, para além das minhas próprias memórias, já que também fui um operacional com intensa actividade (Devo acrescentar que me orgulho de nunca ter dado um tiro em combate, apesar de ter estado debaixo de fogo nas mais diversas situações).

O acesso aos arquivos da CCAÇ 12/CCAÇ 2590 contou, naturalmente, com a cumplicidade de um dos sargentos do quadro. Um alentejano, de origem proletária, que meteu o chico (leia-se: seguiu a vida da tropa), e que me alcunhou carinhosamente de soviético ou camarada Sov, ao que julgo saber por eu ser do contra (entre os meus camaradas, pelo menos era conhecida a minha contestação do regime político e da guerra colonial).

Dezenas de exemplares da história da CCAÇ 12, tirados a stencil, acabaram por ser distribuídos pelos tugas da companhia ( e em particular pelos meus camaradas milicianos), chegando assim à Metropóle, mau grado as instruções do capitão que, aflito e em vésperas de ser promovido a major, a mandara classificar como documento reservado. Onde quer estejas, meu caro Sargento P., vivo ou morto, eu ainda tenho uma dívida de gratidão para contigo! E do meu capitão, então com 37 anos, uma comissão na Índia e três em África, eu só posso dizer que era um bom homem e um bom portuga.

Esta é, de resto, a prova de que, mesmo em condições difíceis, era possível, nessa época, exercer o mais elementar direito à resistência (activa e passiva). Havia ainda outras, mais ou menos arriscadas, mais fáceis ou mais difíceis: desertar, desobedecer, sabotar os planos de operações, evitar o contacto com o IN (inimigo), falsificar os relatórios...

Os oficiais, sargentos e praças da antiga CCAÇ 2590, que em Contuboel (Sector L2) formaram a CCAÇ 12, e que estiveram juntos na Guiné desde Abril de 1969 a Março de 1971, reunem-se com regularidade para matar saudades e conviver. Juntamente com outros camaradas de outras unidades que na época actuaram no Sector L1 (Bambadinca) e estiveram aquartelados, fizeram operações ou passaram por sítios com nomes ainda hoje tão míticos e tão exóticos e ao mesmo tão familiares para nós como Belel, Madina, Missirá, Finete, Mato Cão, Enxalé, Foz do do Rio Malafo, Xime, Nhabijões, Amedalai, Ponte do Rio Undunduma, Ponta Varela, Poindon, Ponta do Inglês, Ponta Luís Dias, Baio Buruntoni, Rio Corubal, Mangai, Fiofioli, Mina, Galo Corubal, Satecuta, Seco Braima, Xitole, Saltinho, Ponte dos Fulas, Jagarajá, Mansambo, Candamã, Camará, Afiá, Taibatá, Dembataco, Sinchã Mamadjai, Sansancuta, Rio Geba, Fá, Bafatá...

Durante a sua primeira comissão, a CCAÇ 12 (designação por que passou a chamar-se a CCAÇ 2590 a partir de Janeiro de 1970, por ter sido considerada uma unidade de guarnição normal e parte integrante da "nova força africana" e da estratégia do general António Spínola no sentido da "guineização da guerra"), actuou no Sector L1 às ordens do Batalhão de Caçadores 2852 (até Maio de 1970) e, depois, do já citado Batalhão de Artilharia 2917 (até Fevereiro de 1971).

2. Este ano o convívio do pessoal que esteve na Guiné, no Sector L1, entre 1968 e 1971, incluindo as companhias do BCAÇ 2852, é na Quinta da Graça, em Riade, Resende, junto ao Rio Douro, no próximo dia 29 de Maio de 2004.

A Quinta da Graça é propriedade do camarada Pinto dos Santos (Contactos: Telemóvel: 91 472 1651; telefone: 254 875 290). O preço por pessoa é de 30 euros (o convívio inclui almoço com animação regional, além de missa por alma dos camaradas já falecidos). A confirmação deve ser feita até ao dia 15 de Maio próximo. Contactar o José Manuel Amaral Soares (Largo Vieira Caldas, 6-A dtº 1685-585 CANEÇAS. Telemóvel: 96 242 8053).

Tanto o Pinto dos Santos (ex-furriel miliciano de informações) como o Amaral Soares (ex-fur. mil. sapador de minas e armadilhas) pertenciam à Companhia de Comandos e Serviços do BCAÇ 2852. Eu vou tentar estar presente no nosso convívio em Resende, no dia 29 de Maio próximo, embora tenha provas académicas a 15 de Junho... E espero lá encontrar camaradas da CCAÇ 12.

Luís Graça (ou ... ex-Fur. Mil. Henriques)
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Bambadinca,13.2.1971 > Esquecer a Guiné... por uma noite

(Poema republicado em 16 de Junho de 2005)

sexta-feira, 23 de abril de 2004

Guiné 63/74 – P1: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra (Luís Graça)

Trinta e cinco anos depois.
No 25 de Abril de 2004 presto a minha homenagem às mulheres portuguesas.
Que se vestiam de luto enquanto os maridos ou noivos andavam no ultramar.
Às que rastejavam no chão de Fátima, implorando à Virgem o regresso dos seus filhos, sãos e salvos.
Às que continuavam, silenciosas e inquietas, ao lado dos homens nos campos, nas fábricas e nos escritórios.
Às que ficavam em casa, rezando o terço à noite.
Às que aguardavam com angústia a hora matinal do correio.
Às que, poucas, subscreviam abaixo-assinados contra o regime e contra a guerra.
Às que, poucas, liam e divulgavam folhetos clandestinos ou sintonizavam altas horas da madrugada as vozes que vinham de longe e que falavam de resistência em tempo de solidão.
Às que, muitas, carinhosamente tiravam do fumeiro (e da barriga) as chouriças e os salpicões que iriam levar até junto dos seus filhos, no outro lado do mundo, um pouco do amor de mãe, das saudades da terra, dos sabores da comida e da alegria da festa.
E sobretudo às, muitas, e em geral adolescentes e jovens solteiras, que se correspondiam com os soldados mobilizados para a guerra colonial, na qualidade de madrinhas de guerra.

A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão de soldados terá escrito mais de 500 milhões de cartas e aerogramas. E recebido outros tantos. Como este que aqui se reproduz.
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Guiné, 24 de Dezembro de 1969

Exma menina e saudosa madrinha:

Em primeiro de tudo, a sua saúde que eu por cá de momento fico bem, graças a Deus.

Estava um dia em que meditava e lamentava a triste sorte que Deus me deu até que toquei na necessidade de arranjar uma menina que fosse competente e digna de desempenhar tão honroso e delicado cargo de madrinha de guerra. Peço-lhe desculpa pelo atrevimento que tive em lhe dedicar estas simples letras. Mas valeu a pena e é com muita alegria que recebo o seu aero (1).

Vejo que também está triste por mor (2) da mobilização do seu mano mais novo para o Ultramar. Não sei como consolá-la, mas olhe: não desanime, tenha coragem e fé em Deus. Eu sei que custa muito, mas é o destino e, se é que ele existe, a ele ninguém foge. Nós, homens, temos esta difícil e nobre missão a cumprir.

Nós, militares, que suportamos o flagelo desta estadia aqui no Ultramar, não temos outro auxílio, quer material quer espiritual, que não seja o que nos dão os nossos amigos e entes queridos. E sobretudo as nossas saudosas madrinhas de guerra.

Sendo assim para nós o correio é a coisa mais sagrada que há no mundo. Porque nos traz notícias da nossa querida terra e nos faz esquecer, ainda que por pouco tempo, a situação de guerra em que vivemos e os dias que custam tanto a passar.

As notícias aqui são sempre tristes, nestas terras de Cristo, habitadas por povos conhecidos e desconhecidos. Não lhe posso adiantar pormenores, mas como deve imaginar uma pessoa anda triste e desanimanada sempre que há uma baixa de um camarada.

Lá na metrópole há gente que pensa que isto é bonito. Que a África é bonita. Eu digo-lhe que isto é bonito mas é para os bichos. São matas e bolanhas (3) que metem medo, cobertas de capim alto, e onde se escondem esses turras (4) que nos querem acabar com a vida. E mais triste ainda quando se aproxima o dia e a hora em que era pressuposto estarmos todos em família, juntos à mesa na noite da Consoada. Vai ser a primeira noite de Natal que aqui passo. Com a canhota (5) numa mão e uma garrafa de Vat 69 (6) na outra.

São duas horas da noite e vou botar este aero na caixa do correio. Daqui a um pouco saio em missão mais os meus camaradas. Reze por nós todos. Espero voltar são e salvo para poder ler, com alegria, as próximas notícias suas. Queira receber, Exma. Menina e saudosa madrinha, os meus mais respeitosos cumprimentos. Desejo-lhe um Santo e Feliz Natal.

O soldado-atirador da Companhia de Caçadores (...)

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Notas (L.G.):

(1) Aerograma. Também conhecido por corta-capim (o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang). Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal"). Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981).

(2) Por mor de =por causa de (expressão usada no norte).

(3) Terras alagadiças da Guiné onde tradicionalmente se cultivava o arroz (... e se pescava). Durante a guerra colonial, foram praticamente abandonadas como terras de cultivo, devido à deslocação de muitas das populações ribeirinhas e à escalada das operações militares. A Guiné, que chegou a exportar arroz, passou a importá-lo.

(4) Corruptela de terroristas. Termo depreciativo que era usado para referir os combatentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Os soldados portugueses eram, por sua vez, conhecidos como tugas (diminuitivo de Portugal, português ou portuga).

(5) Espingarda automática G-3, de calibre 7.62, de origem alemã, que passou a equipar as forças armadas portuguesas no Ultramar. Em 1961 o exército português ainda estava equipado com a velha Mauser (!).

(6) Marca de uísque escocês, muito popular na época entre os militares (Havia uma generosa distribuição de bebidas alcoólicas nas frentes de guerra, com destaque para o uísque, "from Scotland for the exclusive use of the Portuguese Armed Forces"). Na época o salário de um soldado-atirador (cerca de 1500 a 1800 escudos, parte dos quais depositado na metrópole) dava para comprar mais de uma garrafa de uísque (novo) no serviço de aprivisionamento militar (cerca de 40 pesos ou escudos por unidade). No entanto, a bebida mais popular entre os soldados era cerveja. Uma garrafa de cerveja de 0,6 litros chamava-se bazuca.