1. Mais um poste da série Cartas, (OUT65 a DEZ65), de autoria de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66
2.ª FASE: O MATO
Paúnca, 10 Out. 1965
Todos os dias procuro levantar-me cedo, lavar-me, vestir-me como se tivesse algo muito importante e diferente para fazer.
Depois da cerimónia do hastear da bandeira, do pequeno-almoço e da distribuição dos trabalhos pelos homens que estão de faxina, vou até a caserna, ao posto de socorros, ao refeitório e está mais uma manhã passada!
Ultimamente tenho-me dedicado à limpeza do aquartelamento, principalmente a cortar o capim que cresce que eu sei lá e a reforçar a rede de arame farpado. E como os soldados estão a ficar uns sornas e só trabalham se forem obrigados, tenho de andar sempre atrás deles, muitas vezes até com um pau na mão (na brincadeira, é claro)
À noite, quando não chove, geralmente sento-me cá fora e coloco o gira-discos a tocar. Como sei que eles não apreciam jazz, pedi ao M. Santos uns discos emprestados, entre eles, os do Solnado (os famosos discos com os monólogos da “Ida à Guerra”), que têm tido um sucesso estrondoso, pois ficam ali à minha volta, sentados em cadeiras, caixotes ou mesmo no chão. E assim passamos grandes bocados da noite, entretidos a conversar e a rir.
Anteontem, quando receberam o pré, lembraram-se que eu lhes poderia descontar todos os meses uma pequena quantia para poderem comprar uma bola de futebol. Assim o fiz e descontei 5$00 a cada um. Eu e os furriéis pusemos o resto para os 300$00 que custava a bola. Ontem, fomos a Bafatá, aproveitando a boleia dos carros de Pirada, para comprar a bola, uma bela bola vermelha e à noite já cá a tinham. Hoje de manhã levantaram-se todos mais cedo para a estrear.
Organizei um jogo entre solteiros e casados e, é claro, ganharam os casados 3-2. Eu não joguei, mas já ficou combinado que, a partir desta semana, todos os dias orientarei os treinos. Isto vai servir às mil maravilhas para abater as gorduras que se estão a acumular nesta vida tão sedentária. Passaremos a levantarmo-nos às 05H00 para um pequeno crosse e um bocado de ginástica. Depois tentarei dar-lhes um pequeno treino de futebol mais ou menos no estilo do velho Szabo, tal como ainda me recordo de o ver, quando esteve no Vianense. Com palavrões e tudo!
Temos cá uns soldados pretos muito jeitosos e tenho esperanças de qualquer dia ir a Pirada e fazer uma surpresa aos soldados do Comando da Companhia que têm a fama de ser os melhorzinhos
Paúnca, 17 Out. 1965
Novidades do futebol: o Nacional de Paúnca já começou. A equipa do Comando do Pelotão formada pelos condutores, radiotelegrafistas, o maqueiro e o corneteiro, ganhou à 1ª Secção de Atiradores, por 3-0. No segundo dia, a 2ª Secção de Atiradores ganhou à 3ª Secção, por 6-0, deixando-a completamente desanimada. Na caserna não se fala noutra coisa. E, para cúmulo, uma equipa constituída por uma selecção dos melhores do Pelotão jogou contra uma equipa de civis (quase todos rapazes indígenas, que jogam muito bem) tendo ganho por 3-0.
A glória já começou a subir-lhes à cabeça e ninguém os atura. Os civis ficaram amuados e pedem a desforra que será disputada ainda hoje por volta das 17H00, para evitar o calor. É provável que ganhemos novamente, estou cá com uma fezada.
O futebol faz muito bem ao moral das tropas. Tenho a impressão que até andam com melhor aspecto, melhores cores. Eu também me sinto bem e, embora não jogue, participo nos treinos e de manhãzinha lá vou fazendo os meus crosses.
Paúnca-Pirada, 24 Out. 1965
Hoje fui até Pirada ver um jogo de futebol com a Companhia de Cavalaria que está em Bajocunda.
Em Paúnca já temos professor primário, é o Timóteo, um rapaz negro muito alto e ligeiramente coxo. Grande falador e grande bebedor também, como deu também para verificar. Esperemos que não me venha a dar problemas, pois parece ter prosápia a mais.
(De facto, como que a comprovar a minha estranheza quanto a alguns aspectos da sua conduta, vim a saber depois, pelo M. Santos, quando já estava na Metrópole, que ele afinal, tinha sido sempre um elemento do IN infiltrado e que, desaparecera repentinamente, quando sentiu avolumar as suspeitas sobre ele.)
Quanto a batuques, são todos os dias, mas não têm metade da graça dos que se faziam em Pirada. A população daqui é menos simpática e pouco comunicativa. Se não fosse por causa do capitão e daquela convivência forçada com o porcalhão da companhia (refiro-me ao Cardoso) andaria desejoso de voltar para lá. Mas assim é preferível ficar estagnado nesta absurda calma de Paúnca. À noite, tenho até experimentado ir até casa de um ou outro comerciante, para uma visita, mas francamente, são de tal maneira broncos e soezes que, regresso sempre sem vontade nenhuma de lá voltar.
Ultimamente, eu e os furriéis entretemo-nos a jogar ao Poker de dados ou à Sueca, mas também cansa e aborrece. Recebi no correio os quatros rolos de revistas que a mãe me mandou. Foi vida nova, mas também já devorei tudo!
À noite tento ouvir as emissões da Voz da América, em ondas curtas, pois costuma dar boa música de jazz, mas nem sempre se consegue ter boa audição.
Enfim, o tempo passa e, não passa…
Paúnca, 09 Nov. 1965
Fiz ontem seis meses de casado e só hoje é que me lembrou.
O Martins, o meu quarto furriel, foi para Pirada fazer parte, com a Secção dele, do novo Pelotão que o Capitão resolveu criar para o oferecer ao Alferes Cardoso que, por se o alferes adjunto dele, tinha tido sempre a sorte de nunca comandar nenhum. Apenas comandava o grupo de sargentos e praças que constituíam o núcleo de comando e serviços da Companhia, embora na verdade quem mandasse fosse o 1º sargento. Assim acabou por nunca ter participado em nenhuma das grandes operações que fizemos em Bissau e em todos os patrulhamentos regulares que fazíamos no dia-a-dia. Isso era até, como seria de esperar um dos motivos de celeuma e discórdia entre os alferes e sargentos que viam nesse facto um favorecimento de que ele soube sempre aproveitar-se escandalosamente. Agora que ele tinha pregado aquela partida de ter ido de férias que, seriam de trinta dias, e ter lá ficado três meses fingindo-se doente, o Capitão que finalmente o começou a topar, resolveu alterar a orgânica da Companhia, tirando uma Secção a cada um dos Pelotões (ou melhor, Grupos de Combate, por terem 4 secções) dos outros três alferes para, assim constituir um Pelotão para o Zéquinha (como jocosamente nos referimos ao José Cardoso) começar a alinhar como toda a gente.
Agora que ele regressou, está ainda mais repugnante. Toda a gente diz o pior dele e quase ninguém lhe fala, inclusive eu próprio. No entanto, só agora é que o Capitão fez uma coisa que já deveria ter feito logo de início. Assim talvez ele não se tivesse tornado tão nojento e cobarde.
Parece que até a própria namorada cortou relações com ele e o pobre coitado vai de mal a pior.
Paúnca, 16 Nov. 1965
O Alferes Castro que, está agora em Pirada, fez anos no passado dia 11 e convidou-me a mim e a mais dois dos meus furriéis, para irmos lá festejar com ele. Dois dias antes pedi autorização ao Capitão para me deslocar com os furriéis a Pirada. Respondeu-me que autorizava, mas no dia seguinte mandou uma mensagem via rádio a dizer que afinal só poderia ir acompanhado apenas por um furriel, pois nesse dia, teriam de ficar, obrigatoriamente, dois no quartel. Fiquei tão chateado com aquela manobra deselegante que resolvemos não ir ninguém à tal dita festa de aniversário do Castro.
O que tornou este caso ainda mais desagradável, foi o facto de o Capitão estar até a esquecer-se que, naquele dia em que me mandou fazer aquela patrulha a pé de 40 km, que durou 48 horas, no quartel tinha ficado apenas um furriel! Então para quê dois pesos e duas medidas?
Conforme depois me contaram, parece que a festa esteve um bocado fria. O Cardoso fez-se também convidado e não largou a casaca do Capitão, portando-se como um autêntico verme, sempre a bajulá-lo. Aliás o Capitão também não se portou melhor, pois insistiu com o Castro para convidar igualmente o patife do 1º sargento com quem ele não pode nem à lei da bala. Não sei porquê, o Capitão desdobra-se em mesuras com o 1º sargento, favorecendo-o com todas as benesses. Se calhar porque também pretende ficar de bem com ele ou lhe deva alguns favores, não sei.
Agora que o tempo vai acumulando tantos factos ridículos, a paciência vai-se também esgotando.
Paúnca, 21 Nov. 1965
Já são quase 5 horas da tarde, pois estou a ouvir preparar o Unimog que todos os dias vai buscar água à bolanha.
Agora mudámos de patrão. A nossa Companhia deixou de pertencer ao Batalhão de Cavalaria de Nova Lamego, para passar a pertencer ao de Bafatá. A nova estrutura do Sector modificou-se e tanto Pirada como Paúnca passaram a constituir uma faixa de terreno dependente inteiramente de Bafatá. Estamos a fugir da zona Oeste e simultaneamente da zona Norte, pois agora já não seremos chamados para actuar em Canquelifá (no canto superior direito do mapa da Guiné), como quando dependíamos de Nova Lamego, que continua a comandar essa zona.
No passado dia 19, tive cá a visita do novo Comandante que me pareceu ser um tipo mais simpático que o anterior.
Como tinha mandado caiar todo o quartel na semana antecedente, estava tudo com um aspecto impecável, o que pareceu agradar de sobremaneira ao indivíduo.
Os soldados fizeram a formatura com o melhor fardamento que ainda possuíam e ele dirigiu-lhes algumas palavras de elogio que os encheu de vaidade.
Naquela tarde, depois de se ter ido embora, decretei feriado geral e ninguém trabalhou mais, pois merecem coitados. Fazem sacrifícios que, se fosse eu a fazê-los, me tornariam esta vida mais negra que uma folha de papel químico (do preto, claro!).
Quando, em conversa, aqui na Messe, contei o boato que corria na Metrópole, sobre a possibilidade de regressarmos a casa mais cedo, um dos soldados, o Zé Maria que trabalha aqui e eu dispensei de fazer sentinela de noite por estar muito fraco, até disse:
- Se isso for verdade até engordo com a alegria!
Hoje o Furriel Ricardo adoeceu com paludismo. É a sétima ou oitava vez que lhe acontece. É também o mais fraco dos furriéis. De todos nós, parece que só eu e alguns muito poucos, é que ainda não adoeceram com a febre. Também, tenho muito cuidado de não me esquecer de tomar o comprimido de Resoquina, o que raramente acontece com a maioria dos outros soldados.
Estamos a caminhar para os 14 meses de mato e estamos de tal modo mergulhados neste ambiente que já tratamos e compreendemos os fulas como se fôssemos da mesma raça.
Ontem fomos fazer uma emboscada numa cambança (local onde habitualmente se atravessa um rio de piroga) não muito longe daqui. Suspeitava-se da presença inimiga, o que, felizmente não se confirmou mais uma vez.
Enquanto estávamos escondidos entre os arbustos junto à margem, alguém do outro lado chamou pelo rapaz que tomava conta das pirogas e que estava, muito calado, junto de mim. Depois de lhe ter feito sinal para que respondesse ao chamado, atravessou para a outra margem para satisfazer os fregueses.
O frete da passagem do rio tem uma tabela: 3$00 uma pessoa só; 6$00 uma pessoa e uma bicicleta. Ora estes nossos fregueses, que não suspeitaram que, na outra margem, os estavam a vigiar e a ouvir, quiseram intrujar o rapaz e um deles só queria mesmo pagar 5$00 por ele e pela sua bicicleta.
Por fim, o rapaz lá os trouxe e, qual não foi o espanto do mariola, quando ao desembarcar do lado de cá se viu rodeado por soldados armados.
Sentado calmamente num tronco caído, chamei-o e disse-lhe por intermédio de um soldado da milícia negra que, o que ele tinha feito não estava correcto e que teria de pagar tudo conforme a tabela, senão que o atirava ao rio obrigando-o a voltar para trás a nado. Assustado começou numa grande ladainha jurando que não tinha mais dinheiro, que tinha vindo de um enterro de um parente, etc. etc.
Mesmo assim e para que não julgasse que nos levaria por trouxas obriguei-o a pagar o resto do que devia ao rapaz, em nozes de cola que, trazia num embrulho, amarrado à bicicleta.
Mas ficou-me cá a parecer que, o que o tinha assustado mais, foi ele ter percebido que eu tinha entendido tudo o que ele tinha dito ao rapaz na outra margem do rio. E deixei-o ficar nessa convicção…
O rapaz da piroga é que estava todo divertido. Conquistei mais um amigo que, para aqui ficará a desaparecer nas brumas da memória…
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No próximo dia 1 de Dezembro, Timóteo, o professor da escola de Paúnca, vai organizar uma festarola comemorativa do feriado. Vai haver desfile e grupos folclóricos!?
Só não sei onde é que os miúdos foram buscar as fardas de Mocidade Portuguesa que exibem com tanta vaidade e orgulho, mas aquele Timóteo consegue sempre surpreender-me.
Paúnca, 10 Dez. 1965
O Alferes Castro foi a Bafatá e disse-nos que falou com o Comandante do Batalhão de Nova Lamego, acabado de chegar de férias. Segundo ele o nosso regresso está previsto para 27 de Abril, no navio Niassa.
Cheira-me a mais um boato, mas no entanto…
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O futebol continua, mas a bola é que está toda esfarrapada, de tanto bater na cerca de arame farpado. Ainda apareceu um sapateiro improvisado para a cozer, mas agora mais parece um melão.
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Finalmente acabei por me tornar empreiteiro!
Caiámos novamente o quartel e vamos agora cimentar o chão da Cantina que era em terra batida. Fiz um balcão com bambus entrelaçados e uma grossa prancha de madeira, tudo pintado com tinta de esmalte vermelha. Consegui que o Capitão me emprestasse o carpinteiro da Companhia por uma semana. Arranjei uma estante e organizei uma pequena biblioteca com livros e revistas que vou pedinchando por aqui e por ali, para que os soldados tenham mais qualquer coisa com que se entreter.
Vamos também montar um sistema de chuveiros nos balneários dos soldados que, vai evitar muito lodaçal. Felizmente toda a gente tem aderido e trabalha com entusiasmo. Já nem é preciso perder tempo a convencê-los.
Fui a Bafatá comprar bebidas e outros artigos que cá em cima não havia e agora podemo-nos gabar de ter uma Cantina em condições. Há cerveja, sumos de frutas, limonadas, leite achocolatado, vinho da Madeira, whisky, brande e licor Tríplice e até licor Drambuie. Tabaco de todas as marcas, pilhas para as lanternas e para os rádios, sabonetes, pastas de dentes, papel de carta, canetas, creme para a barba, lâminas, latinhas de Foie-Gras, espelhos e roupa interior.
Temos também latas de pó de talco Gardénia, da Diana Marsh. Até vou guardar uma para levar no regresso. Enfim, um sortido como nunca se viu igual.
Em Bafatá comprei também quatro baralhos de cartas e um jogo de Dominó. À noite, a Cantina está sempre super lotada. Espero fazer a inauguração oficial antes do Natal e até vou convidar o Capitão.
Na ceia de Natal, contamos dar a toda a gente bacalhau cozido com as tradicionais batatas e couves, bolos, fruta em calda e vinho do Porto. Para o almoço do dia de Natal, será um quarto de galinha para cada um, vinho a dobrar e pudim Flan, que conseguimos comprar num comerciante daqui.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4933: Cartas (Carlos Geraldes) (7): 2.ª Fase - Julho a Setembro de 1965
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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terça-feira, 15 de setembro de 2009
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