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sexta-feira, 24 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4734: Destas não reza a História (Manuel Maia) (5): Chamava-se José, Silva José, à moda francesa...

1. Mensagem de Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74, com data de 23 de Julho de 2009:

Caro Vinhal,

Enquanto não é corrigida a História de Portugal em Sextilhas (ficaram para trás umas quantas...) envio-te esta história de um ex-emigrante que aproveitou para fugir à tropa e que, despudoradamente, virou antifascista perseguido pela Pide, obrigado a exilar-se em França...
Os nomes foram propositadamente trocados.


Chamava-se José, Silva José (à moda francesa...) e via a vida a andar para trás...


A tropa e o espectro da guerra de África que já levava uns quatro anos e parecia eternizar-se, começavam a preocupá-lo seriamente e a apavorar o pai, António Silva, que abandonara a jorna nos campos agrícolas desse Trás-os-Montes de Torga, para se aventurar na estranja, lá por França, faz tempo, desde o já distante ano de 1959...

Chegara a Paris (Banlieue) ainda antes do grande boom de emigração portuguesa que haveria de ajudar a França a recuperar da destruição sofrida durante a Segunda Grande Guerra Mundial, de que fôra um dos palcos privilegiados.

O seu patrão alugara-lhe uma casa que ele com o tempo haveria de recuperar, transformando-a num tecto acolhedor para viver, por um preço quase simbólico nos arredores da cidade luz...

Paris estava ainda na fase lenta de recuperação.A maioria dos portugueses a demandar terras gaulesas, fá-lo-ia só na década de sessenta, notando-se um crescendo no seu número, de ano para ano, uns por via legal (a minoria) enquanto outros, em maior número, fazendo-o a salto, correndo inclusive risco de vida ante o disparo de qualquer Guarda Fiscal...

Os bidonvilles eram, regra geral, a casa dos trabalhadores dos batiments... casotas de madeira forradas a chapa de bidon...

A lama, onde dejectos de toda a espécie se misturavam com a água da chuva, era escorregadia e dificultava o acesso aos tugúrios que habitavam em grupos de cinco ou seis, ou mais ainda, cozinhando normalmente de forma colectiva, o caldo de couves arrancadas juntamente com umas batatas e cebolas nas longas madrugadas de domingo, a que juntavam um cibo de toucinho rançoso de porco, trazido ainda de Portugal e guardado numa caixita de madeira com sal, ou comprado numa boucherie da zona por meia dúzia de patacos...

Era feito duas vezes por semana. Ao domingo no panelão maior e que durava até quarta-feira inclusivé, e à quinta, a caldaça nova era confeccionada na panela um pouco mais pequena.

Aos domingos, às vezes, bebiam uma cervejita pois ao vinho ninguém chegava face ao exorbitante preço pedido por garrafa...

Diariamente, levas e levas de portugueses cirandavam, mala ou saco na mão e garrafão na outra à procura de emprego nos inúmeros batiments em construção...

Todos se arrogavam de trolhas ou pedreiros, embora a maioria fosse mão de obra não especializada saída do campo, da lavoura, mas interessadíssima em aprender.

Numa primeira fase esses ex-jornaleiros trabalhavam como indiferenciados, mas muito rapidamente absorviam conhecimentos necessários para darem o salto para as várias profissões ligadas à construção como os pintores e carpinteiros de cofragem ou de zimbre...

Traziam umas magras provisões, uns míseros francos, uma vontade enorme de vencer, e geralmente o catraio de cinco litros como gostavam de chamar ao garrafão, com vinho das mais variadas origens, quando não mesmo, o portuguesíssimo bagaço...
O garrafão e a mala de cartão haveriam de ser um símbolo dos portugueses em França.

As mulheres, que nos anos subsequentes acabariam por demandar a França quando as condições de vida já haviam melhorado, ostentavam o moustache mais ou menos penugento que seria o alvo das piadas sobre portuguesas por terras gaulesas.
Era uma característica distintiva, tal qual o puxo ou a banana no cabelo...

Depois, afrancesar-se-iam, cortando-o e pintando-o, tal qual as madames do batiment onde eram concierges, isto poucos dias antes do regresso à terra para férias, que mais não eram senão dar no duro, na finalização da casa do tipo la maison que andavam construindo faz tempo...

Em Julho e Agosto regressavam, carros cheios de tralha, alguma achada nos passeios, mas para a qual encontravam sempre alguma utilidade iniciando um período em que procuravam mostrar algum status, sujeitando-se para isso à exploração desenfreada da aldeia que apostara em tirar-lhes a massa...

Da comissão fabriqueira da festa do Santo Orago da freguesia, passando pelo padre, que conseguia sempre o óbolo para as obras da igreja, ao merceeiro e ao dono da tasca que chamava restaurant ao seu espaço onde servia um bacalhau assado na brasa ou umas febras, uns bifes ou cabrito, que em geral era anho, todos apostavam enm aliviar-lhes os bolsos de forma escandalosa...

Nesses dois meses os carros de matrícula francesa sobrepunham-se aos nacionais.
Nas zonas costeiras, o pescador chegava à praia com meia dúzia de ranhosas(depois de descarregar o pescado para os restaurantes em locais foras da zona de veraneantes) reclamando que o mar estava um cão... uma noite inteira de trabalho para esta mão cheia de peixes. Assim ninguém tinha coragem de regatear o preço pedido e os emigrantes até davam gorjeta...

Foram, infelizmente, sempre espoliados pelos conterrâneos chico espertos...
Nos ultimos anos, as vacances do António Silva foram passadas (aliás como na maioria dos casos...) a erguer a sua casa na aldeia, ajudado pela sua Conceição, que lhe carregava os baldes da massa quando estavam a carregar a placa...
Era até doer as costas, até não poder mais. Tinha de ser!

No último ano, contrariamente aos anteriores, António ao invés de fazer férias em Julho ou Agosto, viera em Maio para ir a Fátima agradecer à Virgem Maria e acabar de vez a casa. Conceição disse-lhe:
- Olha lá, Tone. Tens de levar o rapaz contigo pois o governo qualquer dia já não o deixa sair...
- Deixa-o acabar o ano que não o quero à tábua da cal...
- Queres ver o nosso filho morto na guerra? Ai Jesus, Maria Santíssima que até me arrepio toda só de falar nisto...
- Está descansada, mulher dum raio, que o rapaz acabando o ano em Julho os exames segue em Agosto. Já tratei de tudo lá e mando-o chamar através da agência para ficar tudo mais oficial. O passaporte que não usou ano passado(porque chumbou e acabou por ficar mais um ano...) vai usá-lo este ano, está descansada. Quando lá chegar já tem emprego à sua espera na Citroen. Pedi ao senhor engenheiro quando andei a fazer-lhe uma obra em casa e ele disse que sim. Pediu o nome do rapaz e ele até já tem ficha pronta...

Mal regresado a Paris, António deu andamento ao processo de chamamento do filho José.
Agosto, estação de Campanhã no Porto.

O Zé passeava-se em companhia da mãe, da avó Beatriz, da irmã Margarida e do senhor Joaquim, taxista que os trouxera até à Invicta... Bilhete comprado, papelada toda no bolso (incluindo o passaporte) José despede-se e avança para o combóio.

Os lugares à sua beira estavam ocupados por dois jovens da sua idade que também demandavam a terra dos gauleses. Não se conheciam entre si, mas rapidamente o Zé se apresentou e passados uns curtos momentos do arranque do Sud-Express já todos se conheciam como se fossem amigos de peito... Fôra o destino que os juntara. Haveriam de ser amigos vida fora...

Cada um transportava um saco ou uma mala velha para além do inseparável garrafão.
O Zé, para além da pinga, levava também outro garrafão com bagaço para o pai oferecer ao senhor engenheiro que lhe arranjara emprego.
No cesto de vime, comprado na feira d'ano anterior, levava uma galinha assada, que em viva fôra preta e que a mãe escolhera por causa do mau olhado...
Tinha um cheirinho divinal... levava ainda uma dúzia de chouriças de carne feitas em casa pela sua avó Beatriz, duas mouras, um chouriço e uns bolinhos de bacalhau que deviam estar mesmo bons,dado tratar-se da especialidade da avó, a quem todos recorriam nos casamentos, tal a qualidade evidenciada...
Levava ainda uma boa dúzia de moletes para fazer sandes, e um cibo de broa e azeitonas para mastigar com o presunto da pata da frente do porquito que morrera atropelado pela motorizada do vizinho. Um melão e uma dúzia de maçãs completavam a ementa...

Cada um dos outros também no seu farnel apresentava bolinhos de bacalhau, sandes de presunto alguma fruta...
O Quim levava até umas iscas de bacalhau que parece que do dito apenas terão apanhado o cheiro...
O Álvaro, tinha também umas sardinhinhas fritas com molho de cebolada dentro dum tachito pequeno que também levava arroz seco.

Decidiram que a comida seria de todos para todos e foi assente que a galinha do Zé só seria comida já no domingo a chegar a Paris.
Por essa noite de sexta adentro lá se entretiveram a comer umas sardinhinhas e um bocado de arroz que colocaram no único prato que o Álvaro levava e comeram à vez... os bolinhos de bacalhau, alguma fruta.

Quando acordaram seis, sete da manhã de sábado, beberam dos termos que todos tinham levado um café que acompanharam com umas sandes de presunto e até de bolinhos de bacalhau...
Por volta das dez e meia começaram a sentir um cheiro algo incomodativo vindo de debaixo dos seus bancos...
Era a galinha que devido ao calor se estragara...
Havia que deitá-la fora urgentemente

Temos de deitar isso fora pá antes que se estrague o meu salpicão - disse o Zé.

-Salpicão, chamas salpicão a um chouricito manhoso? Salpicão é o meu, ripostou o Álvaro...

-Isso não interessa agora para o caso. Façam costas que eu deito o bicho p´ra fora.

Entretanto, todas as janelas estavam bem abertas até baixo, por via do calor e do cheiro...

-Custa-me deitar a bichinha fora...

-O gajo é tolo! Dá cá isso que eu resolvo. Não vês aqueles gajos lá do fundo a olhar p´ra nós? Façam costas.

O comboio circulava a duzentos e muitos quilómetros por hora...
Tão depressa Álvaro jogou borda fora a galinha envolta no guardanapo e em jornais, logo ela reentrou (não fosse ela uma ave...) por uma das janelas do fundo indo bater com fragor no encosto de cabeça de uma cadeira vazia para saltar já toda esparramada para o colo do passageiro que aí seguia em frente...

Segundos depois, o homem de meia-idade abeirou-se deles para dizer:

- Merde, merde, qui va payer?
E mostrava o fato beje claro cheio de manchas de galinha, a gravata toda suja e a camisa com restos de ave impregnados.

-Merde, merde, qui va payer?

-Merda não pá, que até era uma galinha que eu vi crescer, disse o Zé...

-Está calado pá que ainda vem aí o revisor e estamos feitos ao bife. Neguem, neguem tudo...

Entretanto, sorte a deles, o combóio chega a Paris. Aglomeram-se as pessoas à espera dos passageiros. No meio de tanta confusão, os três aproveitam para se esgueirar...
Todos tinham os pais à espera que não se conheciam, mas depressa em uníssono surgiria uma gargalhada logo que lhes foi contada a aventura...

Promessas de reencontros. Despedidas, cada um para o seu lado.O tempo foi passando, os seus conhecimentos evoluíram, e entretanto, dá-se o golpe militar em Portugal.

Quase de imediato, Zé desembarca em Lisboa, discurso de antifascista engatilhado, autoproclamando-se exilado político perseguido pela PIDE, e filia-se num partido da extrema esquerda.Pouco depois dá o salto para um dos grandes, e agora é vê-lo, fatos de cashemire, gravatas de seda natural e sapatos italianos.
Arranjou a vidinha...

Só não esteve na guerra da Guiné porque era antifascista, objector de consciência, e um perseguido pela PIDE...

O pior é se o Quim e o Álvaro lhe descobrem a careca...

Manuel Maia
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 2 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4630: Destas não reza a História (Manuel Maia) (4): História da esgraçadinha

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4630: Destas não reza a História (Manuel Maia) (4): História da esgraçadinha

1. Mensagem de Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74, com data de 30 de Junho de 2009:

Caro Vinhal,
Espero possa estar dentro dos parâmetros requeridos.


HISTÓRIA DA ESGRAÇADINHA

Chamava-se Sousa, Zé Sousa, casado, pouco mais de vinte anos, estaria a entrar nos vinte e dois...

As saudades roíam, traço comum a todos quantos por essas terras de África suportavam a canícula e o afastamento dos seus...
Para o Sousa, as saudades da família, pais e muito recentemente mulher, essa Maria Rosa que lhe aquecera a cama e afogueara o corpo uns vinte dias antes do embarque eram algo que não conseguia superar...

Dera o nó lá na igreja da terra pouco antes de o meterem naquele pássaro de metal que o levaria à Guiné.

O Zé e a Rosa, a Maria Rosa, haviam sido imprudentes, tentações do diabo...

Coitada da Maria Rosa, orfã de pais desde tenra idade, vivia com a avó, a Ti Clarinda, uma mulher de armas que criara os filhos (quatro que não vingaram além da idade escolar, e a Felismina, mãe da Rosa, que morrera ao dar à luz o seu rebento...

O genro, pai da Maria Rosa acabaria cadáver à mercê do pó das minas, profissão que abraçara faz tempo para dar melhor vida à família...

A Ti Clarinda lá foi levando a água ao seu moinho, que é como quem diz, criando a neta.
Foi avó e mãe de Rosa...

Agora, coitada, estava quase cega, cansada de uma vida de trabalho, de atribulações...

O Zé que lhe namorava a neta, era um bom rapaz, trabalhador.
Andava à jorna de lavrador em lavrador para ganhar o seu pão honestamente, ele também, filho de gente muito humilde e de trabalho.

Até que um dia, o Zé e a Rosa, a Rosa e o Zé, passaram além da Taprobana, descontrolaram-se e... a solução foi casar...

Nunca passara na cabeça do Zé fugir à responsabilidade...

Até porque a Rosa, coitada, era orfã de pai e mãe...

Mas agora que o sr. padre Olegário os casara, impusera à Rosa que fossem viver para casa dos seus pais.

- E a minha avó, Zé?

-Vais visitá-la quando quiseres, mas o lugar de uma mulher casada é na casa do marido... Quando entenderes passas pela sua casa. Não te preocupes que os vizinhos são gente boa e todos lhe põem uma mão, está descansada. Depois de eu regressar da tropa, da guerra, logo que a gente possa, fazemos uma casinha naquele cibo de terra que o meu pai comprou ao sr. António Regedor, e depois a tua avó vai viver com a gente... podes dizer-lhe.

-Coitada da minha avó!

Partira uns escassos vinte dias, três semanas, do enlace (tinham-lhe dado 15 dias de licença e o capitão deu o resto...)

As saudades roíam-no, e a falta daquele corpo quente colado ao seu com um cheirinho tão apetitoso, empurravam-no para o copo, que no seu caso específico de homem do campo passava obrigatóriamente pela água pé dos lavradores ou pela mistela de uvas que se fazia na casa do seu pai com predominância para o vinhão ou jacqué, para dar cor, e muito americano que não precisa de tratamento...

À falta disso e como não conhecia as bebidas de sociedade, nunca tinha provado scotch, gin ou algo similar, refugiava-se na popularíssima cerveja - que à altura ainda não sustentava jogadores da bola nem as sads do mesmo - emborcando garrafa atrás de garrafa, numa procissão de 33cl que acabaria por derivar para a chamada bazzoka de litro...

Foi este o começo de vida atribulada do Zé Sousa, um militar como tantos, que até à submissão face à cerveja, se pautara sempre por um comportamento perfeitamente normal, senão mesmo exemplar...

As saudades moíam-no, era assaltado pela dúvida.
O que estará ela agora a fazer, a sua Rosa?
E se algum bandalho lhe dirigia palavra quando ia visitar a avó?

Os ciúmes roíam-no deixando-o à beira de um ataque de nervos.
Tornava-se irrascível.
O álcool fazia o resto.
A sua vida encontrava-se agora num patamar de perigo dada aquela dependência evidente.
O capitão proibe que lhe vendam álcool.
O Zé inicia uma fase complicada de ressaca...
Não tem dinheiro para poder sequer pensar em férias na Metrópole.
Logo, a ideia era beber até cair na esperança de ver o tempo voar...

Mas era custoso.
Os dias arrastavam-se caracoleando ao invés de voarem como era a sua vontade e a de todos, afinal...

Um dia, o Zé fazia anos e estava em regime de abstinência total (claro que não era total pois a solidariedade não era palavra vã entre militares e havia sempre forma de controlar o obstáculo...
Especialmente depois de uma operação sabia bem uma geladinha e depois um cigarro.

o capitão comutou-lhe a pena por um dia e permitiu-lhe contornar o castigo ao deixar que comprasse uma grade de cerveja para si e os amigos mais próximos...

Estranhamente o número de amigos do Zé, diminuiu drásticamente e vai daí, ele para não desperdiçar o líquido, fez-se às outras 33, de g3 em punho, não para iniciar qualquer guerra mas porque com o gatilho abria rapidamente uma garrafa...
Foi o bom e o bonito...
Uma vez mais cirandou entre as duas fiadas de arame farpado (o tal onde os bandos se acoitavam...)

Trazia vestida a sua farda mais usual naquelas paragens... calção (fora do regulamento...) e faca de mato à cinta, numa reedição tarzaniana, a pedir meças a qualquer Weissmuller de pacotilha...

Deixáramo-lo à espera que os etílicos vapores fizessem efeito e vencido pelo cansaço entregando-se então nos braços de Morfeu, num amplexo do tamanho do mundo...

Depois de domado por Baco ou por Dionísio (consoante a apetência grega ou romana no desafio sistemático que este lhe fazia, e no qual era sempre apanhado, havia que deixá-lo dormir...

Não era nenhuma novidade este comportamento pelo que ninguém suspeitou do que pudesse via a seguir...

Subitamente o Zé Sousa saiu a correr em direcção ao mato.

Saíram uma meia dúzia em seu encalço, mas este mal os avistou, embrenhou-se naquela perigosa mata fugindo. Era um local perigoso para os escassos seis homens que haviam saído em seu encalce.
Haveriam de regressar uns quarenta ou cinquenta mas debalde...

Soube-se depois através da prisão de um inimigo que ele fora capturado por população hostil às nossas tropas e entregue ao PAIGC.

Nem a Maria Turra falaria nele...

Maria Rosa receberia o fatídico telegrama e caiu para o lado, fulminada...

A Ti Clarinda haveria de assistir ao funeral da neta...

Esta história correu mundo em romance de cordel, e foi cantada ao vivo nas feiras apoiada pela voz plangente de um violino.

Preparem as esponjas que a hora é de chorar!

Com um abraço a toda a tabanca me despeço hoje
Manuel Maia
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4610: Blogpoesia (51): História de Portugal em sextilhas (Manuel Maia) (VII Parte): De Pombal (1755) até ao regente D. Miguel (1828)

Vd. último poste da série de 14 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4519: Destas não reza a História (Manuel Maia) (3): Desertei depois de ter vindo da Guiné

domingo, 14 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4519: Destas não reza a História (Manuel Maia) (3): Desertei depois de ter vindo da Guiné

1. Mensagem de Manuel Maia (*), ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, 1972/74, com data de 11 de Junho de 2009:

Caro Vinhal,
Junto envio este texto para enquadrares onde entenderes.


MAU GRADO OS 39 MESES DE TROPA, FUI CONSIDERADO DESERTOR...

Encarei o serviço militar como uma inevitabilidade a que não me devia eximir já que não tendo própriamente apetência para herói, também não me via na miseranda pele de refractário, ou, pior ainda, na asquerosa figura de desertor como alguns figurões deste Portugal, a quem alguém chamou amordaçado, mas que eu rotulo de enxovalhado, a carecer duma expurgação de todos esses vampiros, chacais e abutres que lhe sugaram o sangue e esventraram entranhas...

Seria na perspectiva de quem não gosta de fardas, que interiorizei a passagem pelo serviço militar como um acidente de percurso.

Quando assentei praça no RI5 da bela cidade de Bordalo, sabia por amigos que por lá tinham passado, que ou virava chico devorando toda aquela prosápia do conhecimento livresco da arte bélica com as mais estapafúrdicas tácticas, para debitar depois a informação balística e mostrar conhecimento armamentista - de cor e salteado - tendo por objectivo conseguir uma nota de curso muito alta que me pusesse a salvo de uma mobilização individual, ou então, a mais óbvia, e que se enquadrava mais comigo, aceitando, sem violentar em demasia a minha sólida aversão a fardas, que continuaria a ser um civil com aquela obrigatoriedade, por isso, quanto mais cedo, melhor...

O expectável, na altura era ainda de 18 meses (para passar depois a 21, tendo este vosso camarada permanecido exactamente um quarteirão deles...)

Vingou portanto a segunda tese. Assim, como primeira medida para nunca ter a tentação de consultar uma que fosse das obras de cariz bélico que me forneceram logo à chegada, amarrei-as bem com corda e coloquei (aquele, para mim, indesejável conhecimento armamentistista, táctico, balístico...) bem fechadinho dentro do armário, não fosse perder-se alguma...

Devo dizer-vos, sem pejo nenhum, que já passava muito mais de mês da minha presença em terras de Malhoa, quando pressionado por camaradas temerosos por qualquer porrada que pudesse apanhar, acabei por fim defazer a primeira continência.
Até aí conseguira sempre esquivar-me a esse acto de que não gostava.

Veio Tavira - C.I.S.M.I. - num quartel (antigo convento) em obras, implicando que uma boa parte dos instruendos pudesse ter autorização de pernoitar fora.

Alugámos um quarto (mais propriamente a sala de jantar de uma casa modesta onde os proprietários plantaram quatro camas, encavalitadas duas a duas,(oriundas, da tropa, mas com uma operação de maquillage numa repintura branco hospitalar...) tendo ainda direito a tratamento da roupa (estávamos impossibilitados de ir a casa de fim de semana, que ali acontecia só ao sábado de manhã.

Paralelamente, e como éramos quatro, as hipóteses de casamento para a neta perdida iam ganhando algum alento, sendo que a moça quando pressentia algum de nós no quarto, arranjava sempre uma justificação qualquer para ter alguma coisa que fazer ali, trazendo roupa engomada... desculpe que vinha fazer a cama... fazendo alarde de uns decotes generosos...

Nenhum de nós casou na parada, mas era comum acontecer e o Comandante da Unidade no discurso de boas-vindas alertava para o facto...

O Algarve dessa altura já tinha muito turismo, com os reduzidos biquinis das inglesas e holandesas, a fazerem arregalar a vista ao militar...

De lá rumei a terras de Viriato largando a diagonal vermelha dos ombros por troca com as também vermelhas de Cabo Miliciano (mais uma invenção portuguesa como o nónio do Pedro Nunes ou a quilha das caravelas p´ra vencer o Atlântico em substituição da chata do mais calmo Mediterrâneo até aí conhecida) NENHUM EXÉRCITO DO MUNDO tinha ou teve Cabos Milicianos...

No RI 14 tive um episódio digno de figurar no anedotário nacional ou como sketch de um filme cómico...

Era usual o Sargento da Guarda (profissional) desenfiar-se para ir dormir a casa com a família (nada de mais justo, afinal a guerra daqui era de brincar...). No seu lugar ficava depois da formatura de recolher um dos Cabos Milicianos de serviço com Sargento de Dia à Unidade.

Um dia estava este vosso camarada a dormir ferrado, já de madrugada num catre igual aos da cadeia, ali ao lado, quando disparou o alarme numa barulheira infernal...

Foi um espectáculo verdadeiramente circense com tudo quanto era gente a correr para os locais de defesa, como se porventura o inimigo estivesse ali, para tomar as terras de Viriato...

Sem saber exactamente o que fazer, deambulei por ali a ver no que davam as modas, até que após um bom pedaço de tempo, de telefonemas para a Casa da Guarda a que eu ou um dos Cabos RD que ali estavam, íamos pondo água na fervura sobre a invasão...

Não se via inimigo nenhum, há muito que os espanhóis haviam perdido a ideia expansionista, os ciganos de então não se atreviam (já não diria o mesmo agora, quer sejam ciganos ou outros quaisquer... não, não é xenofobia...) portanto a guerra não era concerteza nem mesmo que a do Solnado se tratasse...)

Entretanto clareou, e os ânimos serenaram...

Ensaio não fôra, portanto o Comandante, um homem carregado de dragonas nos braços do casacão preto cheio de bordados que víamos às vezes quando requeria um grupo de recrutas para lhe varejarem e colherem a azeitona da sua propriedade na zona, usando naturalmente a mão de obra gratuita os carros e combustível da tropa (isto não é para aqui chamado...) o Comandante chamou aqui esta vosso camarada ao seu gabinete e disparou:

- Que estás aqui a fazer? Chamei o Sargento da Guarda!

Enchendo-me de brios do alto das minhas vermelhas divisas, numa posição de sentido que faria invejar qualquer profissional, especialmente os que faziam gala na cagança (era este nome que davam àquela sequência toda de bater com os calcanhares um no outro para gerar uma sonora pancada, fechar os punhos lateralmente, atirar com o peito para fora, qual galo de Barcelos no acto da cantoria...) e numa voz tronituante respondi:

- Saiba Vossa Excelência, meu Comandante que quem se encontra de serviço como Sargento da Guarda desde o toque de recolher até à alvorada sou eu próprio, Cabo Miliciano 08865271, hoje também Sargento de Dia à Unidade da 2.ª Companhia de Instrução.

- Mas... para quem não gostava de fardas, desenrascaste-te bem - dirão os mais afoitos...

O homem gostou.
Pôs-me à vontade, expliquei-lhe que não havia sido o autor do aviso de guerra e o electricista do quartel haveria de explicar-lhe que se tratara de um curto circuito...

Vai daí, o comandante acabou com todo aquele mise-en-scène, e acabaria por dar uma porrada ao Sargento...

De Viseu haveria de rumar para a cálida planície alentejana (como vêm fiz uma autêntica volta a Portugal nesse meu mourejar interno antes do embarque para a Guiné).

Ao invés de ir de combóio, como acontecera aquando da viagem para Viseu que demorara desde Pedras-Rubras, 14horas (sim leram bem catorze horas, tive de fazer dois transbordos e esperar umas horas em cada um deles, para cobrir cento e poucos quilómetros na linha da Beira Baixa), aproveitei e fui no carro do Barbosa de Ermesinde que acabaria por ir para o Biambe, e com o Maia de Coimbra, que iria para Encheia, onde permaneceria pouco mais de sete meses até à evacuação para Lisboa motivada pelo tiro que apanhou de ricochete na cabeça).
(Envio-vos daqui um abraço pois estou certo que seguis esta nossa tabanca)

Pois essa Yeborah mourisca, de que tanto gosto, recebeu-nos no RI16, outro antigo convento (para quem não professa nenhuma religião parece uma espécie de perseguição...) e dali haveríamos, Batalhão formado, de rumar à nossa Guiné.

Aqui, passadas as passas (não do Algarve pois as de Tavira, como vos disse, até nem foram nada más, antes pelo contrário, mas... as africanas, como todos vós mais ou menos passastes, com períodos em Bissum/Naga, Cafal Balanta (naquele belo edificio que tive oportunidade de vos mostrar no poste 4481), Cafine, ali ao perto, escassos 2 km, mas vivendo em tendas (como se na praia nos encontrássemos, dando assim à comissão uma vivência de férias...), para finalmente me quedar por Fatim, destacamento do Dugal, perto de N´Hacra.

Regressado, ao fim de uns dias (aqui vem finalmente a razão do título do escrito...) dei entrada no Hospital Militar do Porto com problemas estomacais sérios.
Fui visto pelo Dr. Barbosa Leão (já vos explico porque fixei este nome...) que me haveria de internar.

-Tenha paciência doutor, mas internar, nem pensar. Farto de tropa estou eu. Moro aqui perto, Pedras-Rubras, posso deslocar-me facilmente.

-Sendo assim, terá de preencher um formulário de pedido de pernoita fora. Por mim não ponho obstáculos.

Entretanto após diagnóstico haveria de me receitar dois medicamentos que não poderiam ser tomados isoladamente (presumo que um deles, porventura deveria ser uma espécie de protector para o estômago...).
Desloquei-me à farmácia, mas só havia um que trouxe, ficando depois de ir ligando para saber quando chegaria.

Óbviamente, desandei, e de quando em vez lá ligava, mas a resposta era sempre a mesma, terá de aguardar...

A consulta desse médico era às quartas. Ainda fui a uma outra para tentar tomar uma beberragem que permitisse a detecção da extensão do problema via Raio-X (ou outro qualquer...), mas não consegui porque vomitava de imediato.
A solução passava por ir aguentando até à chegada do medicamento.

O tempo rolou, e uma bela quinta-feira, estando a 100 kms de distância em casa de familiares, recebo um telefonema muito preocupado da minha mãe a dizer-me que haviam ligado do hospital considerando-me desertor.

-Apresenta-te hoje ou amanhã, dissera, aflita...

-Não se preocupe! Eles não me prendem!

Segunda-feira, este vosso camarada, por volta das dez da madrugada, deu entrada no HMR 1 do Porto.

Dirigi-me à enfermaria, perguntei ao Sargento de serviço o que se passava comigo para me ameaçarem daquela forma...
Quando se apercebeu que era eu, o sargento disse-me:

- Estás f..... pá!

- F.... porquê meu primeiro?

- Por onde tens andado? Já por várias vezes todo o mundo pergunta por ti e ninguém te conhece. Se calhar vais de cana...

-Isso é que era bom! Não se preocupe Primeiro, porque eles p´ra guerra não me mandam mais, pois faço-lhes um manguito...

-Vê lá se atrranjas um pijama.

-Um quê?

-Um pijama, pá. Estás internado tens de andar de pijama e apresentar-te assim...

-Não me lixe, meu Primeiro, não me lixe... Nem que a vaca tussa, eu não vou falar com o Comandante de pijama.

Arranjei umas calças, por sinal curtas e apertadas, uma camisa, uma boina, e... já ia.
Diz-me o sargento:

- E as divisas? - Eu dava tanta importância àquilo que até me esquecia do seu uso...

Arranjei umas de um Furriel internado, coloquei-as, e de novo o Sargento me chamou a atenção:

- Olha lá, olha lá pá, o Furriel agora tem as divisas ao contrário. São com o bico para cima.

- Ou me aceitam de bico p´ra baixo, ou nada feito.

E assim foi. Bati à porta do gabinete do Comandante e acto contínuo acompanhando um simples dá licença, entrei... boina na mão para não ter de fazer saudação militar, pudera eu sentia-me civil...

- Quem és tu?

Lá me apresentei e disse:

- Andam para aí a chamar-me desertor...

- E és. Já estás desenfiado há mais de quinze dias.

- Isso é que era bom! Eu falei com o Dr. Barbosa Leão e ele disse que podia dormir em casa.

- Não assinei nenhum pedido.

- Na altura quando quis fazer o pedido, não havia ninguém na secretaria e como tinha mais que fazer...

- Onde estiveste?

- Vim da Guiné.

- Pronto, pronto, vai à tua vida e trata lá disso.

Eu que não suporto desertores fui-o considerado um dia!

Um abraço a toda a tabanca
Manuel Maia
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 8 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4481: Os bu...rakos em que vivemos (12): Cafal Balanta contribui para o desenvolvimento nacional (Manuel Maia)

Vd. último poste da série de 25 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4414: Destas não reza a História (Manuel Maia) (2): Quem matou Inesa?

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4414: Destas não reza a História (Manuel Maia) (2): Quem matou Inesa?

1. Mensagem de Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine, (1972/74), com data de 23 de Maio de 2009:

Caro Vinhal,
Caro Vinhal, hoje remeto-te uma história (não gosto de estória...) diferente em prosa...


Passou-se nos idos anos cinquenta da centúria anterior, período obscurantista em que o nível de iliteracia era absolutamente confrangedor...

Hoje, graças à dona Lurdes e à socrática figura, sustentado nas novas oportunidades, o país está em vias de dar o salto qualitativo largando definitivamente a carruagem fundeira para se tornar ele próprio, a máquina propulsora, o motor cultural europeu, quiçá mesmo mundial...

A revolução cultural socratiana ultrapassará, de longe, a visão do camarada Mao Tsé Tung, primeira figura das que o mundo conheceu a esse nível...

A engenhosa engenharia socratiana para a obtenção domingueira do canudo reluzentemente enquadrado em moldura de talha dourada, qual pergaminho medieval, bem como o não menos custoso e valorizado diploma Varense, igualmente alvo de tratamento especial que as paredes do, por certo, pomposamente decorado (a letra dirá com a careta...) espaço bancário reservado às altas esferas saídas de um balcão de província, são a prova provada da revolução cultural, que se espalhará, qual maná, por esse mundo fora...

Perdoe-se-me esta pequena divagação e retomemos o fio à meada, que é como quem diz, voltemos à cousa que motivou estas linhas...

Pois nesse negro período, havia uma certa apetência, nos meios rurais, pela nobre Arte de Talma...

O caso que ora narro passou-se não em Alguidares de Baixo, como depreciativamente se recorre à expressão sempre que se pretende omitir o local da ocorrência, mas sim em Terras da Maia, dessa Maia de Gonçalo Mendes e, perdoe-se-me a imodéstia, deste vosso escriba de horas mortas...

Os actores, todos eles amadores (porque amavam a representação, na verdadeira acepção da palavra...) quer porque a indumentária era apelativa - as peças reportavam-se sempre a períodos epocais já muito distantes, e óbviamente as roupas tinham um visual manifestamente diferente - quer ainda para alimentar o ego que a subida a um palco sempre aporta, (a luz da ribalta entontece...)

Os próprios estrados das salas de aula tinham esse objectivo de projectar o professor para umpatamar mais elevado, fazendo-o alvo das atenções...

Os actores, dizia, juntavam-se nas noites de sábado, no estabelecimento de barbearia local do Francisco Silva, alcunhado de Rôla...) onde o homem da navalha,também ele actor (normalmente protagonista dada a sua faceta de ter sido o unico a decifrar a "Pedra de Roseta" da "Cartilha Maternal" do grande João de Deus, por forma a aceder à leitura de carreirinha sem quaisquer sobressaltos...) tinha função redobrada...

Assim, o barbeiro Xico era quem tinha o esfalfante trabalho de ler, até à exaustão, todas as falas, todas as deixas, de forma a conseguir que os colegas actores (iletrados) decorassem os seus papéis...

Quando a coisa ficava afinada, aí vinha então o dia da estreia, com pompa e circunstância, até mesmo publicidade em cartazes onde os nomes dos actores eram apostos em letra miuda, à excepção do de Francisco Silva, que surgia num corpo enorme... A sala era a dos Bombeiros Voluntários, que apenas devia a sua existência à necessidade imperiosa de obtenção de fundos para a construção do novo quartel uma vez que o existente era simplesmente exíguo...

A sala não reunia portanto um mínimo de requisitos mas era por uma boa causa...

O guarda-fatos e os cenários eram eles também resultante de trabalho gracioso das gentis meninas da Maia e do pintor maiato, homem dos sete ofícios...

A peça de estreia foi "Inês de Castro" que ilustrava os amores proibidos do Infante D. Pedro (futuro rei D. Pedro I "O Crú" ) e Inês de Castro, aia de D. Constança, esposa do infante...

D. Afonso IV, pressionado pelos validos que o instigavam a matar a amásia de Pedro, pois segundo eles, Inês oriunda de família malquista galega, poderia constituir perigo para a coroa portuguesa acabou por incumbir dessa tarefa, Pêro da Covilhã, Álvaro Gionçalves e Diogo Lopes Pacheco...

Jazia Inês prostrada, em mar de sangue, após os golpes desferidos por Pêro da Covilhã e seus cumplices, rodeada de pajens e cortesãs num carpir contínuo, arrepiante, quando D.Pedro, regressado da caça, irrompendo na sala do crime e perante a evidência do quadro, pergunta:

- Quem matou a INESA ?

Face ao silêncio sepulcral, voltando-se para um dos personagens menores atirou:

- Fala minha besta!

O figurante, de papel secundário, (pajem provavelmente...) esquecido do nome do assassino, ao invés de dizer que fôra Pêro da Covilhã quem desferira a primeira facada no estômago da vítima, balbuciando na sua gaguez, demora uma eternidade (o que leva Pedro a sair de cena...) para desabafar contra a fanfarronice do barbeiro/actor/ensaiador (que aqui fazia de Pedro e de Pêro...) acabaria por dizer:

- Foi, foi, foi o Xico da Róla (alcunha do actor/barbeiro que representava os papéis de Pedro de Pêro) com uma facadela no fole das migas...

Acto contínuo, o dito Pêro/Xico da Róla que deveria estar já a caminho de Castela para aí se refugiar a mando de D. Afonso IV, irrompe na sala dizendo:

- Um momento, um momentinho senhores espectadores que vou só f.... as ventas a um destes analfabetos sacanas f.... da p... que me chamou Xico da Róla... Estes piolhosos são uma autêntica ralé que não conhece a nobre Arte de Talma... Não passam de actores secundários que nem ler sabem... Ando aqui a dar pérolas a porcos dentro e fora do palco...

E foi o bom e o bonito...

O referido Xico começou a contenda mas acabou por ser o bombo da festa...

Ninguém o suportava pelo pedantismo que exibia enquanto barbeiro erudito e protagonista de vários papéis nas varíadíssimas peças de teatro já produzidas.

Apesar do papel importante junto dos homens da terra pois lia o jornal em voz alta, especialmente às segundas-feiras por causa dos relatos do futebol, acabou mesmo assim por ser o alvo da ira de todos, actores e público em geral que aproveitou para molhar a sôpa em tão pedante figura...

Subindo ao palco das suas frustrações, os pagantes não aceitaram ter de ir embora sem terem visto missa amén... mas fundamentalmente não aceitaram o enxovalho.

Alguém fez cair o pano e os gritos e algazarra continuaram até que a Guarda acabaria por fazer o gosto ao cacetete, malhando a torto e a direito...

Os bandos saídos do arame farpado da plateia atamancada não conseguiram digerir os insultos nem calar a ofensa... Pararam a representação e disseram basta ao Xico da Rôla...

Hoje tenho pena que não tenhamos parado nós também, actores forçados no palco do teatro da guerra da Guiné, (nome bonito que os senhores da guerra gostam de utilizar...) para acusarmos os Xicos da Rôla que ali nos colocavam aproveitando eles para serem os protagonistas...

Para os Xicos da Rôla éramos actores secundários, representávamos bandos, mas quem fez o espectáculo da guerra, fomos nós, os andrajosos, com barbas hirsutas e cabelos mal cuidados, cheirando a catinga, porque nos calhou o lado pior da cena, vivendo em tugúrios nojentos,em buracos escavados no chão, como ratos, sem água, sem condições de higiene (as miseráveis que existiam tivemos de ser nós a criá-las ...), sem comida digna desse nome despejada quantas vezes em marmitas sem limpeza eficaz, ENQUANTO os Xicos da Rôla cirandavam perfumados, de óculos Ray-Ban (não fosse o sol forte danificar-lhes as vistas...), de lenço dobrado e colocado com parcimónia, quais pavões ARMANIamente trajados, de penduricalho reluzente ao peito, arquitectando traições à Pátria e a nós próprios que lhes alimentávamos as promoções, longe do perigo e do arame farpado, enxovalando-nos outra vez, agora mais de trinta anos passados...

Pena não termos agido como os amadores da Arte de Talma...


Com a promessa de envio das sextilhas semanais despeço-me com um grande abraço extensivo a toda a tabanca.
Manuel Maia
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4408: Bandos... A frase, no mínimo infeliz, de um general (22): O desvendar do segredo (Manuel Maia)

Vd. primeiro poste da série de 7 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4154: Destas não reza a História (Manuel Maia) (1): Estou na Guiné há treze meses e a minha mulher está grávida

terça-feira, 7 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4154: Destas não reza a História (Manuel Maia) (1): Estou na Guiné há treze meses e a minha mulher está grávida

1. Mensagem de Manuel Maia, ex-Fur Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4610, Bissum Naga, Cafal Balanta e Cafine (1972/74), com data de 4 de Abril de 2009:

Agora é uma história verídica que teve como protagonista um indivíduo algo ingénio de Trás-os-Montes (profundo) que evidenciava claramente um coeficiente de inteligência baixíssimo e que por isso mesmo nunca deveria ter sido sujeito a situações com as da vivência de uma guerra.

Teríamos uns treze meses e picos de presença sofrida mas também pejada de situações engraçadas, por vezes roçando mesmo o estatuto de hilariantes, quando me foi contada esta que ora vos transmito.

Determinado soldado, casado, recebeu carta da família informando-o de que iria ser pai.

Irradiando uma satisfação do tamanho do mundo, o soldado em questão, sorriso rasgado de orelha a orelha, mostrou a missiva a um dos seus camaradas, amigo mais chegado:

- Vês pá, vou ser pai. Só peço a Deus que me deixe chegar são e salvo à terra para conhecer o meu filho que está p´ra chegar.
- Olha lá pá, retorquiu-lhe o amigo, com quantos meses de gravidez está a tua mulher?
- Sei lá!!!

Falando para os seus botões, o amigo murmurava:

- Como hei-de dizer a este gajo, a este caramelo, que o filho não é dele?

- Tu sabes há quantos meses estamos na Guiné?
- Isso sei! Nós viemos no dia de S. António e estamos em Julho... são, deixa cá ver...
- São treze meses, pá, treze longos meses feitos semana passada, na Terça-feira...
Então como é que é possível a tua mulher estar grávida de ti? Com quantos meses está de barriga? Tu não vês que a gravidez demora nove meses?
- Sei lá? Disso não percebo nada.
- Olha que essa mulher não serve p'ra ti, pá.
- Não serve proquê?
- Se ela gostasse de ti não te tinha feito o que fez.
- Que é que ele fez?
- Ela fez, ela fez, quem fez foi a irmã dela.
- A irmã dela, tua cunhada? Já não estou a perceber nada.
- Foi assim, eu andava enrabiscado com a irmã dela, mas a gaja um dia meteu-se cum tipo lá da terra dela. Quando fui no Domingo de Páscoa p'ra mor de namorar, ela tinha fugido com um gajo lá da terra.
- E quem foi que te contou?
- Foi a que agora é minha mulher. Disse-me, olha Tone, a minha irmã pôs-tos.
- Ela quê?
- Deixa lá rapaz, deixa lá, ela foi-se embora.
- Se tu quiseres posso ficar nas vezes da minha irmã.
- Se ela quis ir embora pois atão boa viaje.

- Começamos a namoriscar os dois e eu de vingança contra a primeira, casei-me co'a mais velha.
- Que idade tem ela?
- É mais velha do que eu p'rá aí uns sete ou oito anos. Deve ter trinta ou trinta e um, mas não fiquei a perder porque ela tem carta de tractor.
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4147: Blogpoesia (38): A Criatura e Rambo Guinéu (Manuel Maia)