Queridos amigos,
O avô sentiu-se feliz em passear-se por tal museu, tão cheio de olhares sobre a História de Portugal no plano artístico. Um trabalho que se impunha que a neta elaborasse, impressões de uma viagem e o significado deste ou daquele museu, deu livre curso a um dia bem passado olhando obras-primas de barristas, diferentes telas com motivos religiosos, até se falou um pouco sobre as doações de Calouste Gulbenkian e a conversa com duas restauradoras que ali prestam serviço em torno dos chamados Painéis do Infante deixaram a menina um tanto dececionada, como explicar em relatório que não se sabe ao certo quem pintou aquela obra-prima ímpar, quem a encomendou, quem são aquelas figuras, o significado das relíquias, sente-se que há ali por detrás uma influência flamenga, mas o mistério perpetua-se, é bem provável que não haja cabal chave explicativa, mas por ali ficamos estarrecidos, e muito feliz me senti com aquela curiosidade da jovem andando à volta da Custódia de Belém, mirando-a de todos os ângulos, não escondendo a plena admiração. Foi um dia em cheio, só espero que o trabalho da neta, porventura ajustadamente ilustrado, mereça o aplauso da turma.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90):
Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2)
Mário Beja Santos
Feita a pausa, e com o estômago reconfortado, lançamo-nos nesse prato de substância da grande pintura internacional, o quadro de Bosch anda em exposição, mas advirto a neta que preparei uma seleção de telas que vale a pena ela pôr em relatório. Vamos começar.
É um Dürer muito especial, ficas a saber que este alemão é o autor daquela gravura do rinoceronte que tu tanto aprecias. Quanto ao tema, versa uma questão central da Doutrina cristã, advertência sobre a vaidade, tudo vai acabar em ossadas, o melhor é fazer bem aos outros e amá-los como nós gostaríamos que os outros assim nos tratassem.
Este flamengo, habilíssimo retratista, enxameia vários museus europeus, gente poderosa, pela certa, de religião severa, também pela certa, o leitor que compare este van Dyck com outro retrato mais abaixo de Jacome Ratton, de Thomas Lawrence, veja-se a perícia no domínio total do espaço, o contraste entre o fundo e a figura, aquela barba fulva e aquele bigode retorcido, o rosto dominante e o chispar do olhar, de quem nada teme. Que grande retrato!
Gosto muito de comparar Pereda com a nossa Josefa de Óbidos, ponho sempre esta a ganhar, mas tenho que admitir que Pereda tinha uma capacidade na reprodução dos elementos da natureza-morta como poucos outros dos seus contemporâneos, veja-se a linha da mesa, a faca e o fruto cortado, os utensílios cuja forma em nada obstruem a visão dos produtos da Natureza. Dá gosto estar aqui diante de Pereda e gabar-lhe o seu talento.
Há uns bons anos, tive o privilégio de ver em Bruxelas uma exposição sobre a Firma Brueghel, foi uma autêntica fábrica que durou gerações, clientela abastada cria cópias de telas passadas, trocavam-se ou afeitavam-se alguns pormenores e o cliente ficava regalado. Brueghel pinta exemplarmente o mundo do seu tempo, velhos e novos, gente com saúde e aleijados, cenas brejeiras, bêbedos delirantes, folias em festas de casamento, aqui o cliente encomendou algo de bastante comedido e vemos em primeiro plano agasalhar quem vinha nu e dar pão a quem precisa. Não escondo que prefiro Brueghel, o Velho, mas rendo-me a esta capacidade da fábrica e ao génio de pôr tanto movimento e colorido em tão curto espaço.
O Sr. 5 por cento do petróleo quis manifestar o seu reconhecimento a Portugal doando algumas das suas obras de arte, abrangendo pintura, escultura, artes decorativas e algo mais. Ele adquirira, nomeadamente no período londrino, um conjunto de obras de arte de que se ufanava, caso do Turner exposto no museu com o seu nome, quadro a óleo de irreprimível beleza. E ofereceu ao Museu Nacional de Arte Antiga um pequeno conjunto de telas britânicas de incontestável valor, é o caso deste quadro de Joshua Reynolds de que nos atrevemos abaixo a dar um pormenor que revela a altíssima perícia do mestre.
Jacome Ratton viveu na Rua do Século, numa casa apalaçada que é hoje o Tribunal Constitucional. Grande empreendedor, vamos vê-lo envolvido em negócios de aviação em Tomar. A minha conversa com a neta tinha a ver com o contraste de cores e luminosidade, um fundo um tanto neutro que assegura a revelação da indumentária austera, Ratton olha-nos um tanto enviesadamente, todo ele é imponência, um semblante de triunfador.
Este quadro de Andrea Mantegna, um dos nomes mais sonantes do primeiro Renascimento italiano, está aqui exposto por empréstimo, vem de Verona, é uma tela pintada a têmpera de ovo, a Virgem e o Menino rodeados por figuras magnas da Igreja, parece levitar, a Virgem e as figuras insígnias trajam roupa recamada que acabam por dar a ilusão de que vão ascendendo acompanhando na ascensão a Virgem e o Deus Menino. É de ficar estupefacto com o controlo do comprimento, altura e profundidade e a subtileza que nos permite questionar que o conjunto se encaminha para os céus.
É um momento crucial da visita, estamos diante dos chamados Painéis do Infante, a neta quer saber os porquês de tanto mistério. Conto-lhe como dois homens de letras encontraram casualmente esta ímpar obra-prima da pintura europeia do século XV abandonadas em S. Vicente de Fora, a série infindável de teses e teorias desenvolvidas à volta dos painéis, houve até gente profundamente desavinda, alguém se suicidou, e estava nesta lengalenga que ia aguçando a curiosidade da neta, quando saíram duas senhoras lá dos fundos do restauro, não tive pudor em interpelá-las, vejam as senhoras que estou aqui a procurar dizer à minha neta que não se sabe ao certo se os painéis são de Nuno Gonçalves, onde foram pintados, em que templo foram expostos, se estão completos e até o significado das figuras, as próprias relíquias são altamente contestadas, não se sabe se a figura central é S. Vicente, andou-se a dizer que a figura do Infante D. Henrique é indiscutivelmente aquela com o seu chapéu peculiar, as senhoras sorriram e simpaticamente disseram à menina que está tudo em discussão mesmo com a espectrografia não se consegue apurar nada em concreto. O que para o caso importa é que não há na pintura europeia do século XV esta mole humana representada com tanta determinação, parece mesmo que Portugal entrara numa viragem, e o seu vigor aqui ficou plasmado para todo o sempre. É claro que a neta não ficou satisfeita, que resposta para tudo, e a História muitas vezes troca-nos as voltas.
A visita caminha para o fim e vejo a neta interessada numa escultura, toca de ver a legenda, é do evangelista São Marcos, o seu autor é Cornelis de Holanda, nem falta o leão a seus pés, é a defesa da Doutrina, o respeito pela Palavra.
Nunca resisto a contemplar este Cristo, muito mais do que a dor e a transfiguração é a proporção e o equilíbrio das formas, e quem aqui o fixou, em lugar de honra, sabia as regras de ouro da museografia, na ausência da cruz escolhe-se um ângulo que admite que o Cristo Homem já partiu para o Pai.
Antes de partir, no andar inferior, levo a neta a contemplar a Custódia de Belém, ela que é cética ou no mínimo circunspecta quando lhe mostro os meus objetos classificados como artes decorativas, aproximamo-nos deste resguardo em acrílico e peço-lhe a atenção para os pormenores, onde é que tu alguma vez viste esta renda, esta adoração de figuras ascendentes, a elegância das proporções, até ao pináculo e o somatório de todas as razões e crenças, que é a Cruz de Cristo.
Perto da saída, no alto da escadaria, está esta fonte barroca como não conheço outra igual, fizeram bem pô-la sobre uma peanha, olha, neta, para o tornear dos pés, a delicadeza de todo o corpo da fonte e a solução encontrada para fazer subir o corpo alteado que termina sob forma de voluta. Posso confessar que a neta estava verdadeiramente impressionada.
Esta sim, é a última imagem da nossa itinerância, três restauradoras limpavam este imponente quadro escultórico, a deposição de Cristo. Meti conversa, explicaram que estava tudo numa sujidade inimaginável, veja estas cores, há quantos anos ninguém as vira como quando foram pintadas, este conjunto não é uma grande beleza? E com a saudação e admiração por tão belo trabalho aqui nos despedimos até à próxima viagem.
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Nota do editor
Último poste da série de 11 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24059: Os nossos seres, saberes e lazeres (555): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (89): Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (1) (Mário Beja Santos)