sábado, 18 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24077: Os nossos seres, saberes e lazeres (556): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90): Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 8 de Fevereiro de 2023:

Queridos amigos,
O avô sentiu-se feliz em passear-se por tal museu, tão cheio de olhares sobre a História de Portugal no plano artístico. Um trabalho que se impunha que a neta elaborasse, impressões de uma viagem e o significado deste ou daquele museu, deu livre curso a um dia bem passado olhando obras-primas de barristas, diferentes telas com motivos religiosos, até se falou um pouco sobre as doações de Calouste Gulbenkian e a conversa com duas restauradoras que ali prestam serviço em torno dos chamados Painéis do Infante deixaram a menina um tanto dececionada, como explicar em relatório que não se sabe ao certo quem pintou aquela obra-prima ímpar, quem a encomendou, quem são aquelas figuras, o significado das relíquias, sente-se que há ali por detrás uma influência flamenga, mas o mistério perpetua-se, é bem provável que não haja cabal chave explicativa, mas por ali ficamos estarrecidos, e muito feliz me senti com aquela curiosidade da jovem andando à volta da Custódia de Belém, mirando-a de todos os ângulos, não escondendo a plena admiração. Foi um dia em cheio, só espero que o trabalho da neta, porventura ajustadamente ilustrado, mereça o aplauso da turma.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (90):
Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (2)


Mário Beja Santos

Feita a pausa, e com o estômago reconfortado, lançamo-nos nesse prato de substância da grande pintura internacional, o quadro de Bosch anda em exposição, mas advirto a neta que preparei uma seleção de telas que vale a pena ela pôr em relatório. Vamos começar.
S. Jerónimo, por Albrecht Dürer, século XVI

É um Dürer muito especial, ficas a saber que este alemão é o autor daquela gravura do rinoceronte que tu tanto aprecias. Quanto ao tema, versa uma questão central da Doutrina cristã, advertência sobre a vaidade, tudo vai acabar em ossadas, o melhor é fazer bem aos outros e amá-los como nós gostaríamos que os outros assim nos tratassem.
Retrato de Lucas Vosterman, o Velho, por Anton van Dyck, c. 1630

Este flamengo, habilíssimo retratista, enxameia vários museus europeus, gente poderosa, pela certa, de religião severa, também pela certa, o leitor que compare este van Dyck com outro retrato mais abaixo de Jacome Ratton, de Thomas Lawrence, veja-se a perícia no domínio total do espaço, o contraste entre o fundo e a figura, aquela barba fulva e aquele bigode retorcido, o rosto dominante e o chispar do olhar, de quem nada teme. Que grande retrato!
Natureza-morta com frutos, Antonio Pereda y Salgado, século XVII

Gosto muito de comparar Pereda com a nossa Josefa de Óbidos, ponho sempre esta a ganhar, mas tenho que admitir que Pereda tinha uma capacidade na reprodução dos elementos da natureza-morta como poucos outros dos seus contemporâneos, veja-se a linha da mesa, a faca e o fruto cortado, os utensílios cuja forma em nada obstruem a visão dos produtos da Natureza. Dá gosto estar aqui diante de Pereda e gabar-lhe o seu talento.
Depósito de Armas, David Teniers, século XVIII

Tenho sorte de conhecer uma boa parte da obra de David Teniers, em museus belgas. O que mais me cativa neste “Depósito de Armas” é a solução que o mestre encontrou no jato de luz à esquerda que nos permite ver com absoluta nitidez quem figura em primeiro plano e numa extraordinária escala, é preciso ter mão de soberbo artista para pôr tanta figura em curto espaço e com o domínio absoluto do claro-escuro.
Obras de Misericórdia, pintura de Peter Brueghel, o Jovem, século XVII

Há uns bons anos, tive o privilégio de ver em Bruxelas uma exposição sobre a Firma Brueghel, foi uma autêntica fábrica que durou gerações, clientela abastada cria cópias de telas passadas, trocavam-se ou afeitavam-se alguns pormenores e o cliente ficava regalado. Brueghel pinta exemplarmente o mundo do seu tempo, velhos e novos, gente com saúde e aleijados, cenas brejeiras, bêbedos delirantes, folias em festas de casamento, aqui o cliente encomendou algo de bastante comedido e vemos em primeiro plano agasalhar quem vinha nu e dar pão a quem precisa. Não escondo que prefiro Brueghel, o Velho, mas rendo-me a esta capacidade da fábrica e ao génio de pôr tanto movimento e colorido em tão curto espaço.
Homem Cozinhando, Jan Steen, século XVII

Há uma razão especial para ter completado demoradamente este homem em preparos de cozinha. Fui amigo de um notável artista, de nome Rolando Sá Nogueira, alguém que foi um porta-estandarte da contemporaneidade pelos temas a que aludiu, desde o consumo à questão racial. Ouviu frequentemente clamar que Jan Steen era um dos santos do seu culto, e neste preciso momento aqui o recordei, sabendo amargamente que não há amigos que possam substituir os amigos que perdemos.
Doação de Leão do período ptolemaico (Egito) feita por Calouste Gulbenkian ao Museu de Arte Antiga
“General William Keppel, Storming the Morro Castle”, Pintura de Joshua Reynolds, século XVIII, doação de Calouste Gulbenkian.

O Sr. 5 por cento do petróleo quis manifestar o seu reconhecimento a Portugal doando algumas das suas obras de arte, abrangendo pintura, escultura, artes decorativas e algo mais. Ele adquirira, nomeadamente no período londrino, um conjunto de obras de arte de que se ufanava, caso do Turner exposto no museu com o seu nome, quadro a óleo de irreprimível beleza. E ofereceu ao Museu Nacional de Arte Antiga um pequeno conjunto de telas britânicas de incontestável valor, é o caso deste quadro de Joshua Reynolds de que nos atrevemos abaixo a dar um pormenor que revela a altíssima perícia do mestre.
Quadro de Jacome Ratton, pintado por Sir Thomas Lawrence, faz parte da doação Gulbenkian.

Jacome Ratton viveu na Rua do Século, numa casa apalaçada que é hoje o Tribunal Constitucional. Grande empreendedor, vamos vê-lo envolvido em negócios de aviação em Tomar. A minha conversa com a neta tinha a ver com o contraste de cores e luminosidade, um fundo um tanto neutro que assegura a revelação da indumentária austera, Ratton olha-nos um tanto enviesadamente, todo ele é imponência, um semblante de triunfador.
Este quadro de Andrea Mantegna, um dos nomes mais sonantes do primeiro Renascimento italiano, está aqui exposto por empréstimo, vem de Verona, é uma tela pintada a têmpera de ovo, a Virgem e o Menino rodeados por figuras magnas da Igreja, parece levitar, a Virgem e as figuras insígnias trajam roupa recamada que acabam por dar a ilusão de que vão ascendendo acompanhando na ascensão a Virgem e o Deus Menino. É de ficar estupefacto com o controlo do comprimento, altura e profundidade e a subtileza que nos permite questionar que o conjunto se encaminha para os céus.
É um momento crucial da visita, estamos diante dos chamados Painéis do Infante, a neta quer saber os porquês de tanto mistério. Conto-lhe como dois homens de letras encontraram casualmente esta ímpar obra-prima da pintura europeia do século XV abandonadas em S. Vicente de Fora, a série infindável de teses e teorias desenvolvidas à volta dos painéis, houve até gente profundamente desavinda, alguém se suicidou, e estava nesta lengalenga que ia aguçando a curiosidade da neta, quando saíram duas senhoras lá dos fundos do restauro, não tive pudor em interpelá-las, vejam as senhoras que estou aqui a procurar dizer à minha neta que não se sabe ao certo se os painéis são de Nuno Gonçalves, onde foram pintados, em que templo foram expostos, se estão completos e até o significado das figuras, as próprias relíquias são altamente contestadas, não se sabe se a figura central é S. Vicente, andou-se a dizer que a figura do Infante D. Henrique é indiscutivelmente aquela com o seu chapéu peculiar, as senhoras sorriram e simpaticamente disseram à menina que está tudo em discussão mesmo com a espectrografia não se consegue apurar nada em concreto. O que para o caso importa é que não há na pintura europeia do século XV esta mole humana representada com tanta determinação, parece mesmo que Portugal entrara numa viragem, e o seu vigor aqui ficou plasmado para todo o sempre. É claro que a neta não ficou satisfeita, que resposta para tudo, e a História muitas vezes troca-nos as voltas.
A visita caminha para o fim e vejo a neta interessada numa escultura, toca de ver a legenda, é do evangelista São Marcos, o seu autor é Cornelis de Holanda, nem falta o leão a seus pés, é a defesa da Doutrina, o respeito pela Palavra.
Nunca resisto a contemplar este Cristo, muito mais do que a dor e a transfiguração é a proporção e o equilíbrio das formas, e quem aqui o fixou, em lugar de honra, sabia as regras de ouro da museografia, na ausência da cruz escolhe-se um ângulo que admite que o Cristo Homem já partiu para o Pai.
Antes de partir, no andar inferior, levo a neta a contemplar a Custódia de Belém, ela que é cética ou no mínimo circunspecta quando lhe mostro os meus objetos classificados como artes decorativas, aproximamo-nos deste resguardo em acrílico e peço-lhe a atenção para os pormenores, onde é que tu alguma vez viste esta renda, esta adoração de figuras ascendentes, a elegância das proporções, até ao pináculo e o somatório de todas as razões e crenças, que é a Cruz de Cristo.
Perto da saída, no alto da escadaria, está esta fonte barroca como não conheço outra igual, fizeram bem pô-la sobre uma peanha, olha, neta, para o tornear dos pés, a delicadeza de todo o corpo da fonte e a solução encontrada para fazer subir o corpo alteado que termina sob forma de voluta. Posso confessar que a neta estava verdadeiramente impressionada.
Esta sim, é a última imagem da nossa itinerância, três restauradoras limpavam este imponente quadro escultórico, a deposição de Cristo. Meti conversa, explicaram que estava tudo numa sujidade inimaginável, veja estas cores, há quantos anos ninguém as vira como quando foram pintadas, este conjunto não é uma grande beleza? E com a saudação e admiração por tão belo trabalho aqui nos despedimos até à próxima viagem.
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Nota do editor

Último poste da série de 11 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24059: Os nossos seres, saberes e lazeres (555): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (89): Uma visita ao Museu Nacional de Arte Antiga, a neta questiona tudo (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24076: In Memoriam (469): Manuela Gonçalves (Nela) (Castelo Branco, 1946 - Caldas da Rainha, 2019), professora aposentada, cooperante, esposa do ex-alf mil, Nelson Gonçalves, cmdt Pel Caç Nat 60, 1969/70, vítima de mina A/C , em 13/11/1969, na estrada São Domingos-Susana


Guiné-Bissau > Região do Cacheu > Rio Cacheu > 1981 > A caminho de Ingoré... A Nela, turista, de perfil...Aqui com os filhos 
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Guiné-Bissau > Bissau > 1982 >  A Nela, cooperante,  e os filhos...


Cortesia do seu blogue Viagens, Fotos e Palavras 
(https://viagensdanela.blogspot.com/)


1. Há muito que não tínhamos notícia da nossa amiga Manuela Gonçalves (Nela), que residia as Caldas da Rainha, professora do ensino secundário, esposa do infortunado alf mil Nelson Gonçalves, um dos comandantes (o segundo, por ordem cronológica) do Pel Caç Nat 60 (criado em São Domingos em 1968).

Foi a primeira, ou uma das primeiras mulheres, companheiras de camaradas nossos, a integrar a nossa Tabanca Grande. Não eram (nem são)  muitas, contam-e pelos dedos... O marido (o "maridão", como ela o chamava) foi alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1969/70): o Nelson Gonçalves foi vítima de uma mina anticarro, nas imediações de Nhambalá, na estrada São Domingos-Susana, em 13/11/1969, que lhe levou uma perna (*).

Infelizmente, confirmámos há dias que a nossa amiga, que estava reformada e era avó , já nos deixou, conforme página do Facebook "Em memória de Manuela Gonçalves". Confirmámos a notícia noutra fonte: segundo a AgênciaNeves - Serviços Funerários, das Caldas da Rainha, a nossa amiga Nela, de seu nome completo, Maria Manuela Fernandes Gonçalves , nasceu a 12 de dezembro de 1946, em Castelo Branco,  e morreu, nas Caldas da Rainha, em 2 de setembro de 2019. Era casada com Nelson Gonçalves, mãe de Tânia Manuela Gonçalves e do  Nelson Alexandre Gonçalves.

Daí a razão de ser deste In Memoriam (**). 

Apaixonada por viagens à volta do mundo, escrevia no blogue Viagens, Fotos e Palavras, em 26 de janeiro de 2019: 

"Faltam-me Tantos Países Para Visitar....Visitei 37 países das Nações Unidas (19.1%) num total de 193"... (Do México ao Japão, da Guiné-Bissau à Suécia, do Brasil à Índia, de Marrocos à África do Sul, de São Tomé e Príncipe a Moçambique, do Reino Unido à Itália...).   Seria já uma despedida ?... Aliás, é em meados desse ano, 2019,  que os seus blogues ficam inativos.


2. A Nela manteve ao longo do tempo da sua vida ativa (e depois na reforma) diversos blogues (nada menos que seis) e seguia muitos mais (cerca de duas dezenas e meia), incluindo o nosso, blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné e o blogue do Pel Caç Nat 60, criado pelo Manuel Seleiro.

Na altura, em 1970,  a Nela, jovem estudante universitára, a frequentar a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,  e então namorada do Nelson, viveu a guerra à distância, com a morte na alma (***)... 

Já casada, anos depois, desloca-se à Guiné-Bissau, com o marido e os seus dois filhos pequenos, em 1981, para exorcizar os seus fantasmas... Da paixão à cooperação foi um passo... Viveu lá, na Guiné-Bissau, em 1981/82 (***)... 

Mais tarde, no início de 2006, descobriu o nosso blogue, que passou a visitar regularmente, e mais do que isso mantinha nessa altura o seu próprio blogue: Caminhos por onde andei...(infelizmente já descontinuado, não foi sequer capturado pelo Arquivo.pt) (****).
 
No seu perfil, no Bogger, definia-se nestes termos: "Mulher, sempre pronta a fazer malas e partir... com uma máquina fotográfica, uns livrinhos e, claro, de tenis... Também gosto de dar a minha opinião... e não prescindo dos meus direitos".

Era natural de Castelo Branco. Viveu e trabalhou nas Caldas da Rainha. Um abraço na dor ao marido (e nosso camarada Nelson Gonçalves, de quem não temos nenhum contacto), filhos  e restante família.

Requiescat in Pace, Nela!


(...) Que se passava? Um aerograma de um amigo, Alferes Baptista, no Q.G. em Bissau, deu – me a notícia: uma mina tinha rebentado com o Unimog, quando ele [o NEpson Gonçalves] e o seu pelotão, o Pel Caç Nat 60,  seguiam numa patrulha. Ele estava no HMP em Bissau, em coma. Era dia 13 de Novembro de 1969, 10:30 da manhã.

Restava-me esperar que o trouxessem para Lisboa e falar diariamente com um médico, amigo de uma tia, que prestava serviço no Hospital em Bissau. E de longe fui acompanhando o seu estado! Mais tarde um lacónico aerograma dele, muito parco em palavras, cheio de silêncios, confirmava-a.

Apesar de toda a dor e angústia sentidas, uma grande alegria: ele estava vivo. Os sonhos continuavam adiados, mas não jogados fora. Uma nova etapa nas nossas vidas havia começado! (...)

26 de março de 2006 > Guiné 63/74 - P634: Uma mina na estrada de São Domingos para Susana (Manuela Gonçalves)

 (...) O flagelo das minas continua e não sei mesmo se muitas delas não serão ainda daquelas que foram colocadas na guerra colonial.  A coincidência transportou-me até  [13 de] Novembro de 69.

Foi naquela mesmo estrada - de São Domingos para Susana - numa operação de reconhecimento da via, que o Unimog em que o maridão seguia, pisou uma mina anti-carro. No Unimog, uma outra mina anti-carro, levantada cerca de 300 metros antes, era transportada atrás e, por mero acaso, não rebentou, o que teria sido catastrófico para todo o pelotão!

A mina tinha sido accionada pelo pneu do lado direito, pelo que o maridão foi atirado para fora, em estado crítico, não tendo o condutor sofrido senão pequenos ferimentos, apesar da força do embate!

Um helicópetro transportou-o para Bissau, tendo acordado uns dias mais tarde numa cama no Hospital Militar, sem uma perna e tendo por companheiro de quarto o capitão Peralta, cubano, cuja captura tão noticiada era nos media de então. (...)



Sábado, Janeiro 7, 2006

Guiné- Bissau (1)

Esta noite, ao navegar pelos blogs que visito habitualmente, fui parar , através de hiperligações de posts, ao Blogue Fora-Nada, que reúne documentos e memórias de ex-combatentes da Guiné-Bissau!

Não fui combatente na Guiné, mas esses caminhos foram percorridos por mim de modo e tempo diferentes... Tornaram-se mesmo decisivos na minha vida de jovem estudante universitária rebelde , namorada de um alferes miliciano que para ali fora enviado para a guerra , mais tarde meu companheiro de vida (já lá vão 35 anos) e de mulher e mãe, que considerou importante ir para Bissau, como cooperante!

A Guiné dos aerogramas despertara um desejo imenso de conhecer a Guiné das bolanhas, das tabancas, dos mosquitos, dos rios e pântanos e das gentes que ali viviam, dos felupes, dos mandingas, dos papéis, de Amílcar Cabral, dos guerrilheiros do PAIGC...

Nunca tinha aceite a Guerra Colonial, mas uma vez que ela tinha entrado nas nossas vidas abruptamente e deixado incapacidades físicas ao maridão, senti uma vontade imensa de viajar para aquele pequeno país e conhecê-lo bem!

Era como que uma necessidade intrínseca de compreender bem uma etapa importante da vida vivida pelo companheiro de route!

Bissau, Bafatá, Mansoa, São Domingos, Ingoré eram locais que precisávamos (re)visitar.

E fomos lá! Também os nossos filhos nos acompanharam , crianças ainda, viram e pisaram as picadas que, anos antes, o pai cruzara, sempre alerta! Agora podíamos circular livremente, apesar do mau estado das estradas, mas em paz e liberdade!

Gostei da Guiné-Bissau! Voltar lá foi um modo de "exorcizar" fantasmas de guerra que habitavam a nossa casa! (...)

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24075: Notas de leitura (1556): O Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau: Imagens Para Uma História (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Junho de 2020:

Queridos amigos,
Por mão amiga tive acesso a este livro que surgiu no seguimento da exposição "O Museu Etnográfico Nacional: Trinta anos de História", inaugurada no Museu de Bissau em setembro de 2017. Tem imagens esclarecedoras do património que resistiu a várias depredações, espoliações e destruições. Recordo sempre o orgulho que senti no Museu Metropolitano de Nova Iorque quando numa vasta sala dedicada à Arte Africana li uma ficha de um colecionador famoso, da família Rockfeller, dizendo, com sincero entusiasmo, que tinha comprado peças artísticas das etnias Bijagó e Nalu e que as considerava do mais genial que lhe fora dado ver. Portugal possui igualmente um rico património da Arte Guineense, bom seria que se fizesse uma recolha de peças de valor indiscutível, elas estarão sempre associadas à presença portuguesa e à veneração que tal arte nos merece e merecerá.

Um abraço do
Mário



Conhecer o Museu Etnográfico Nacional da Guiné-Bissau

Mário Beja Santos

Não há ninguém que tenha feito comissão na Guiné que não conheça este edifício, no nosso tempo era Museu da Guiné e o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, reunia uma preciosa coleção de património etnográfico, o impulso inicial coube a Avelino Teixeira da Mota, então colaborador direto de Sarmento Rodrigues, e nas mesmas instalações funcionava o importantíssimo Centro de Estudos da Guiné Portuguesa responsável pela publicação colonial mais relevante: o Boletim Cultural, ainda hoje incontornável. E havia uma biblioteca, nesse espaço ocorreram conferências que tiveram projeção. Com a independência, extraviou-se muita coisa, nos anos 1980 o museu foi transferido ali para os lados do INEP e em 2017 voltou ao edifício primitivo que já cumprira outras funções, como Ministério dos Negócios Estrangeiros e Direção-Geral da Cultura. Para comemorar o regresso, em 15 de setembro de 2017 foi inaugurada uma exposição intitulada “O Museu Etnográfico Nacional: 30 anos de História”, associaram-se diferentes parceiros, desde o Instituto Camões, a Fundação Calouste Gulbenkian, a Embaixada de Espanha em Bissau, organismos da Universidade de Oxford e outros. O catálogo foi publicado em 2018 e permite ao leitor ficar com uma ideia do que é hoje o acervo museológico, depois das diferentes provações que terá sofrido, não esquecer que durante a guerra de 1998/1999 perderam-se objetos e muitos documentos, perdas tão irreparáveis que quando o visitei em 2010 e fiz entrega de um presente de todas as cartas da então Província da Guiné, na escala de 1 para 50 mil, o então Presidente do INEP, Dr. Mamadu Jao, agradeceu-me comovidamente, nada existia de tão substancial. Depois da guerra, houve tentativas de reparação, lembro a reconstituição de imensas imagens graças à Fundação Mário Soares, que deu origem à exposição “Raízes”, que então visitei no Bairro da Ajuda e que ainda hoje se pode adquirir na Fundação Mário Soares a preço simbólico. A exposição de 2017 revela o que se tem feito na digitalização de imagens e como se têm procurado superar os danos terríveis da guerra e dos esbulhos.

Este volume, com texto em português e castelhano mostra imagens do passado, havia um catálogo-inventário da secção de etnografia do Museu da Guiné Portuguesa, Teixeira da Mota estimulara muitas doações, fizeram-se estudos, a etnografia da Guiné apareceu em populações de grande difusão, lembro, a título de exemplo, A Arte Popular em Portugal, da Verbo, que teve a responsabilidade de orientação de Fernando Castro Pires de Lima, há muitos elementos etnográficos guineenses em Portugal, basta visitar a Sociedade de Geografia de Lisboa ou acompanhar as atividades do Museu Nacional de Etnologia. Há ainda documentos à venda, alguns deles preciosos, produzidos pela Junta de Investigações do Ultramar. Lembro que António Carreira produziu um belo trabalho sobre panaria cabo-verdiana e guineense e que Rogado Quintino é autor de uma obra etnográfica de valor indiscutível sobre a prática e utensilagem agrícola na Guiné, bem como Fernando Galhano publicou outra obra relevante intitulada Escultura e Objectos Decorados da Guiné Portuguesa no Museu Etnológico.

Este livro que acompanha a exposição de 2017 descreve trabalhos de pesquisa ao longo das últimas décadas e mostra imagens de grande importância sobre a escultura Nalu e Bijagó, como o pássaro Koni Nalu, a máscara Nimba, os espíritos Bijagós, a cabeça de vaca, obras representativas do que há de melhor na escultura guineense. Temos imagens da tecelagem, os famosos panos de pente, onde a etnia Manjaco ocupa um lugar à parte, imagens sobre aldeias, para podermos confrontar o habitat das diferentes etnias, como organizam as cozinhas, as dependências, como se processa a construção das casas, se possuem pinturas murais.

Lê-se nesta obra que os melhores tecelões são Papel e Manjaco, embora as peças comumente consideradas mais genuínas – por respeitarem toda a tecnologia tradicional, sejam da tecelagem Fula. “Os tingidos e sobretudo os panos Manjacos, com fios de várias cores que desenham padrões específicos, são adquiridos e acumulados pelas mulheres, para oferecer em funerais ou em intercâmbios matrimoniais. A produção de algodão, a cardagem e a fiação perderam importância na Guiné-Bissau após a destruição das variedades tradicionais provocada pela tentativa colonial de introduzir a cultura de algodão para exportação, que também falhou depois da independência. Hoje a maioria dos fios usados em tecelagem são importados e de fabrico industrial. O tingimento dos panos continua a ser praticado artesanalmente pelos Saracolé”.

O livro contempla o trabalho em ferro, as artes agrícolas, os instrumentos musicais onde primam os instrumentos de corda como a korá, os de percussão, caso do tambor falante e o xilofone designado por balafon, a cestaria e olaria, onde se distinguem magníficos trabalhos de balaios de palmeira de leque, os jogos de criança, a multiplicidade de manifestações religiosas que vão desde a “forquilha de alma” Manjaco, a edificação de mesquitas, as indumentárias cerimoniais. Em capítulo à parte releva-se a arte Nalu onde os objetos escultóricos aparecem em rituais e danças. Temos igualmente os lugares com paisagem e património, com destaque para a Fortaleza de Cacheu e há numerosos vestígios da presença militar portuguesa, ponho ênfase na lápide onde se escreveu: “A Ti, Deus único e Senhor da Terra, oferecemos estas gotas de suor que nos sobraram da luta pela Tua palavra eterna, soldados da CART 1613”.

Há igualmente uma secção que privilegia a cultura nacional, pois um Museu Nacional de Etnografia tem não só a missão de documentar a diversidade étnica de um país mas também de colaborar na consolidação da identidade nacional, as imagens de dança balética ou carnavalescas são elucidativas de um mundo pós-colonial. O livro encerra com a notícia do seminário de Museologia que se realizou em 1989 e mostra mais de 130 imagens de objetos do atual Museu Etnográfico.

Seria muito bom que um dia se pudesse expor na Guiné o acervo das coleções particulares e de diferentes museus portugueses. Não vi referidos os objetos de couro produzidos pela etnia Mandinga, lembro-me de ter comprado almofadas e vi à venda bainhas para espadas e outros artefactos. E recordo ter ido ao mercado de Bafatá adquirir ourivesaria, não vejo referência destes trabalhos no pós-independência. Deseja-se longa vida a este Museu Etnográfico e a mais intensa cooperação com Portugal, país que detém um património privilegiado.

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Nota do editor

Último poste da série de 14 DE FEVEREIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24064: Notas de leitura (1555): Quem mandou matar Amílcar Cabral? (José Pedro Castanheira, jornalista, "Expresso", 22 de janeiro de 2023) - II ( e última) Parte - Uma acusação de peso, a de Aristides Pereira: "Para todos os efeitos, goste-se ou não, o Amílcar foi morto como cabo-verdiano" (que não era: nasceu em Bafatá, viveu 10 anos em Cabo Verde, numa vida curta de 49 anos...)

Guiné 61/74 - P24074: (De) Caras (195): Em 1975, cinco anos depois, saí do Hospital Militar Principal com as marcas da mina A/P, armadilhada, que me mudou completamente a vida: estava destroçado, cego, sem a mão direita e com dois dedos na mão esquerda (Manuel Seleiro, 1º cabo, Pel Caç Nat 60, DFA, São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70)


Foto nº 1A > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > Março de 1970 > 1º cabo Seleiro à porta da sua morança. Faltavam-lhe dois meses para acabar a sua comissão de serviço... Mas só sairá da tropa em 1975... Uma mina vai-lhe mudar alterar completamente a sua vida e os seus sonhos...


Foto nº 1 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > 1970 1º cabo Seleiro à porta da sua morança, "cinco dias antes do acidente" (sic), com a mina que lhe roubou a vista e as mãos. (Claro que não foi em "acidente", foi "em combate"...)


Foto nº 2 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > s/d >  Esta foto foi tirada junto à porta da arrecadação do velho quartel de S. Domingos. A foto mostra três minas A/P em situações diferentes. A primeira está fechada e pronta a ser acionada. A segunda está aberta, vê-se a dinamite e o mecanismo. A terceira está aberta,  vê-se todo o mecanismo desmontado."


Foto nº 3 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > s/d >  A DO-27 na pista de São Domingos. Foi numa avioneta destas que veio a  enfermeira paraquedista (Maria) Ivone Reis (1929-2022):  foi ela quem assistiu os dois feridos da mina, em 11 de março de 1970, o Seleiro e o Guerra, na evacuação Ypsilon.

Escreveu o Hugo Guerra, hoje cor ref DFA: 

(...) "Comecei a levantar-me e senti o estrondo infernal, o sopro que me projectou de costas, o sangue quente a escorrer na cara e os gritos dele a dizer que estava morto… Mas não estava. Os nossos homens trataram-nos o melhor possível, pediram as evacuações e fizeram uma macas com bambus e camisas. Tinha medo de perder a consciência e passar para o outro lado.

Aguentei, em choque, até chegarmos ao HM 241 em Bissau e o que mais me agradava naquele desespero todo era continuar a ouvir o Seleiro a dizer que estava morto. Se ele se calasse, sabia que podia ter perdido um amigo. (...) (*)


Fotos (e legendas): © Manuel Seleiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


1. O Manuel Seleiro passou a ser nosso grã-tabanqueiro desde ontem. Já o devia ter sido há muitos mais anos... Mas só agora calhou falar com ele, ao telemóvel.  Senta-se  à sombra do nosso poilão, sob o nº 870 (**). E, como é da praxe, vamos publicar a seguir um texto dele, justamente aquele em que  relata as circunstâncias dramáticas da explosão da mina A/P que lhe roubou aos de vida e  os seus melhores sonhos. É um texto que um dia tem de figurar na antologia dos nossos melhores postes. Aqui reproduzido, com a devida vénia...

Quarta-feira, 10 de março de  2010 > Pel Caç Nat 60 Guiné 68/74 -P61: Aquele dia (Dez de Março de 70!)...

Quartel de S. Domingos. Sector Militar, de São Domingos: Algures nas matas da Guiné, junto a fronteira do Senegal. Decorria então o ano de 1970 na Guiné.

Destacamento de São Domingos, sete e trinta da manhã, o Pel Caç Nat 60 sai com destino à fronteira do Senegal, com o objectivo de pintar os marcos que faziam a divisão da fronteira Guiné/Senegal...

Às dez e meia da manhã, volvidos os primeiros vinte quilómetros, já em plena mata, há uma chamada de atenção, alguma coisa se passa. Os homens passam a palavra até chegarem à minha secção. Sou informado que, na frente, foi detectada uma mina anti-pessoal. Os homens ficam nervosos.

Quando cheguei ao local da mina, o alf mil Hugo Guerra 
[foto à esquerda ] nforma que vai tentar levantar a mina, Decorridos alguns minutos pergunto ao alf mil Hugo Guerra como iam as coisas, ao que ele me responde que estava nervoso.

O alf mil Hugo Guerra dá a ordem para que a mina seja desactivada. Tomei o lugar dele junto da mina.
Procede-se à segurança do local para que as coisas decorram sem incidentes. Mando afastar os homens a uma distância razoável, processo que requer muita atenção.

Procede-se à desminagem do local, o momento de muita tensão... O passo seguinte é desmontar o sistema da mina, que é constituido por dinamite e o detonador, este o mais perigoso, que requer particular cuidado...

O inevitável aconteceu, a mina estava armadilhada e explode. Gritos, confusão, leva algum tempo até os homens se recomporem.

No momento tudo ficou em silêncio depois as vozes de algums soldados Que se aproximavam. Senti umas mãos que me seguravam, era o enfermeiro José Augusto, que me prestava os primeiros socorros, colocava os garrotes para parar as hemorragias, o soro e uma injecção para as dores.

Alguns homens preparavam uma maca, com as camisas e uns paus para me transportar, fizeram cinco quilómetros comigo através da mata serrada. O alf mil Hugo Guerra sai ferido com alguma gravidade…
Como estava relativamente perto de mim foi atingido por estilhaços.

Pelo Rádio foi pedido ao quartel de São Domingos para mandarem viaturas ao nosso encontro para chegar mais rápido à pista onde deveria estar uma avioneta à espera. 

Assim foi, quando chegámos à pista já lá estava avioneta, fui entregue à enfermeira paraquedista (quero aqui prestar a minha homenagem a estas Mulheres, em particular à enfermeira Ivone Reis; estas Mulheres muitas vezes corriam riscos quando tinham de socorrer os feridos em pleno combate)...

Meia hora depois chegam à Base Aérea e fui levado para o Hospital Militar de Bissau. Já no hospital, foram feitas as primeiras intervenções cirúrgicas, provavelmente devido às anestesias perdi a noção do tempo, e do local onde me encontrava.

Num momento de lucidez ouvi passos, que se aproximavam perguntei onde me encontrava. Foi me dito que estava no hospital de Bissau, perguntei quando ia para Lisboa. A resposta foi... "amanhã".

No dia seguinte 
 [quinta-feira, 12 de março de 1970 ]pela manhã, tive a visita do Governador da Guiné, o general António de Spínola. Que deixou palávras de consolo e rápidas melhoras, e um elogio pelo dever de servir a Pátria...

Nesse mesmo dia à noite saí da Guiné no avião militar. Cheguei a Lisboa no dia treze de Março por volta das cinco da manhã, caía uma chuva miudinha.

As macas eram muitas pois este avião militar fazia o transporte de Angola, Moçambique, e Guiné, Em Lisboa as ambulâncias faziam o percurso de noite para não chamar a atenção dos lisboetas.

Nesta altura já estava internado no hospital Militar, na Estrela. Serviço de cirurgia plástica. Quero aqui informar que logo que dei entrada neste serviço, entrei em coma... Só decorridos quinze dias recuperei a consciência.

A partir daqui foi um desencadear de acontecimentos, uns bons e outros maus. Descobri que não tinha uma das mãos, o braço esquerdo estava com gesso, e tinha os olhos com pensos, este foi o primeiro choque que sofri.

Os dias iam passando lentamente, até descobrir que estava cego... Mas o mais grave desta situação, a minha família não sabia que eu estava gravemente ferido no Hospital Militar, os serviços do Exército não comunicaram o facto à minha família. Os meus pais tiveram a informação por um amigo meu que por essa altura prestava serviço no Hospital Militar.

O tempo decorrido da minha chegada a Lisboa, até os meus pais terem conhecimento foi de 23 dias
... Nesse  ano de setenta completei vinte e quatro anos, estava na flor da idade, andei de serviço em serviço durante mais quatro anos [no total, 5 anos, mais 20 meses no TO da Guiné, de julho de 1968 a março de 1970 ]. 

Em 1975 sai do hospital Militar com a bonita recordação: cego, sem a mão direita e com dois dedos na mão esquerda. Moral baixa, estado psicológico baixo. O Hospital Militar não dispunha de Psicólogos... (***)

PS - A data que consta no texto acima é a minha versão do acidente. A versão do alf mil Hugo Guerra aponta para o dia 13 de março de 1970. (*) 
[foto à esquerda: O Seleiro e o Guerra ].

Entrada para o Serviço Militar: 18 de abril de 67. Partida de Lisboa: 12 julho 1968 para a Guiné. Acidente na Guiné 10 de março de 1970. (****)

Manuel Seleiro, 1º cabo, DFA,

[Revisão / Fixação de texto / Negritos / Notas entre parênteses retos: LG ]
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 25 de novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3518: História de vida (18): Evacuado duas vezes e meia...(Hugo Guerra, ex-alf mil, cmdt Pel Caç Nat 50, 55 e 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70); hoje cor ref, DFA

(**)  Vd. poste de 
16 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24072: Tabanca Grande (543): Manuel Seleiro, ex-1º cabo, Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70), natural de Serpa, DFA, sofreu cegueira total e amputação das mãos, ao levantar e desativar um engenho explosivo, durante uma operação, em 13/3/1970... Senta-se à sombra do nosso poilão, sob o nº 870.

(***) Último poste da série > 3 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24033: (De)Caras (194): O mecânico-desempanador Mota, da CCAÇ 3535 (Zemba, Angola, 1972/74), mais conhecido por "Matraquilho" (Fernando de Sousa Ribeiro)

(****) Também pelas minhas contas, e de acordo com a própria narrativa do Seleiro, o "acidente" foi a 11 de março de 1970, uma quarta-feira... Evacuados para o HM 241, em Bissau, os nossos camaradas partem em avião militar, para Lisboa,no dia seguinte, dia 12, à noite. Chegam a Figo Maduro, na sexta-feira, 13, às 5 horas da manhã.

Guiné 61/74 - P24073: Parabéns a você (2146): António Carvalho, ex-Fur Mil Enfermeiro da CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74) e Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp da CCAÇ 1426 (Geba, Camamudo e Cantacunda, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24061: Parabéns a você (2145): Miguel Rocha, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2367/BCAÇ 2845 (Olossato, Teixeira Pinto e Cacheu, 1968/70)

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Guiné 61/74 - P24072: Tabanca Grande (543): Manuel Seleiro, ex-1º cabo, Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70), natural de Serpa, DFA, sofreu cegueira total e amputação das mãos, ao levantar e desativar um engenho explosivo, durante uma operação, em 13/3/1970... Senta-se à sombra do nosso poilão, sob o nº 870.


Foto nº 1 > Guiné > Região do Cacheu >  São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > O Manuel Seleiro, a sintonizar o rádio e a ouvir música.


Foto nº 2 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > 1968/70 > O Seleiro (à esquerda), no café do Leal


Foto nº 3 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > Estrada  São Domingos - Susana - Varela > Proximidades de Nhambalã > 13 de novembro de 1969 > O 1º cabo caçador Manuel Saleiro, que era o "sapador" do pelotão, aqui levantando uma mina anticarro... Foi desativada sem problemas... O problema é que mais à frente havia outra não detetada pelos picadores (*)...


Foto nº 4 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > Três minas A/P


Foto nº 5 > Guiné > Região do Cacheu > São Domingos > Pel Çaç Nat 60 > Estrada 
 São Domingos - Susana - Varela > Proximidades de Nhambalã > 13 de novembro de 1969 >  O Seleiro, feliz, por ter feito, com sucesso, o seu trabalho...

Fotos (e legendas): © Manuel Seleiro (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. 

Os créditos fotográficos das fotos de nºs 3 e 5 devem ser atribuídos ao fur mil Moreira, que vive hoje em Riba D' Ave: ele foi o fotógrafo que estava lá, nesse dia fatídico de 13/11/1969, nas proximidades de Nhambalã, no blogue do Pel Caç Nat 60  estão em formato reduzido, sem edição]. 

1. Manuel Seleiro, de seu nome completo, Manuel Francisco Cataluna Graça Seleiro, natural de Serpa, 76 anos (nasceu a 29/7/1946), Cataluna da mãe, Seleiro do pai. Famílas bem conhecdias da terra, que ele já não visita  desde 2014.  João Cataluna, do grupo musical de Serpa, "Os Alentejanos", é seu primo do lado materno.

Fiquei chocado, ontem à tarde, ao falar ao telemóvel com o Manuel Seleiro , e só então saber que ele era invisual total, tinha perdido as duas vistas e as duas mãos (!) ao levantar e desactivar uma mina (creio que A/P), na  mesma ocasião  em que foi ferido o Hugo Guerra, em 13/10/1970 (*)

O José Arruda (1949-2019), o  José Eduardo Gaspar Arruda,o líder histórico da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas), era uma figura pública, fui ao seu funeral: sofreu cegueira total e amputação (do membro superior esquerdo), um acidente com mina em Moçambique. Como também são figuras conhecidas de muitos de nós  o Cândido Patuleia Mendes (natural do Bombarral, meu vizinho,  com amigos na Lourinhã, ferido em Angola) e o Manuel Lopes Dias (não sei onde foí ferido)  (estes dois útimos membros da atual direção da ADFA, eleitos para o triénio de 2022/24, o prmeiro como tesoureiro e o segundo como secretário: mas já foram ambos presidentes da direção).

Da condição do Manuel Seleiro eu, confesso, que não sabia. Aliás, nunca nos encontrámos. Só sabia que era DFA.  Mas falou-me com uma aparente naturalidade e tranquilidade, fazendo-se valer da sua prodigiosa memória e grande coragem. Imagino o que tenha sido o seu calvário, no processo de tratamento, convalescência, reabilitação e integração ao longo de anos... Deu-me algumas detalhes... Mas eu não quis obrigá-lo a reviver o seu doloroso passado, para mais numa conversa telefónica... Disse-me que tem, não uma prótese, mas "dois dedos enxertados" numa das mãos (
a esquerda), que lhe permitem realizar algumas tarefas do dia-a-dia, incuindo comer ou  escrever no computador: recebe e responde a emails, tem dois blogues...  

Com essa mão de dois dedos edita o seu blogue (Pel Caç Nat 60) e a sua página de divulgação do Cante Alentejano (Luar da Meia Noite), que é também a sua página pessoal na Web... É "leitor" regular (!) do nosso blogue, ou melhor, acompanha o nosso blogue por voz...

Está registado no Blogger desde novembro de 2008. No seu perfil diz que a sua ocupação é a "informática". Presumimos que tenha feito formação nesta área, o que permite por exemplo acompanhar regulamente o nosso blogue (e outros) em modo áudio (há programas que leem o ecrã para os invisuais... Também foi rádio-amador. Foi fotógrafo na Guiné, mas hoje só  reconhece as fotos que tirou e que o filho digitalizou, através das legendas...

Sobre os seus passatempos, diz:

"Gosto do Mar, e do campo, a leitura, e a informática, Desporto favorito: Natação, Não gosto de animais: Adoro as aves, em particular os melros, pela sua beleza, de cantar, gosto de acordar com as suas melodias... Gostava da eletrónica. A minha cor preferida, o Azul. O pior da minha vida, foi ter que fazer a guerra. Mais vale um pássaro num ramo Que numa gaiola dourada."

Aceitou de bom grado integrar a nossa Tabanca Grande!... Passa ser o nosso grã-tabanqueiro nº 870, o lugar que lhe reservamos sob o nosso fraterno e mágico poilão, à sombra do qual se untam os amigos e camaradas da Guiné.

Sobre o seu passado militar, já sabemos que  foi 1º cabo, de rendição individual, no Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/70). Ficou no ativo como cabo. É DFA - Deficiente das Forças Armadas. Cegueira total, e amputação das duas mãos, na sequência da explosão de um engenho explosivo. 

Sobre o Hugo Guerra (**),  diz-me que não tem notícias dele há anos. Ao que parece, estará doente e acamado. Tal como não tem notícias da Manuela Gonçalves (a Nela), das Caldas da Raiha, professora reformada, esposa do infortunado alf mil Nelson Gonçalves, um dos comandantes do Pel Caç Nat 60, vítima de mina A/C, em 13/11/1969, que lhe levou uma perna (***), e foi a primeira mulher a integrar a Tabanca Grande... (Infelizmente, confirmámos hoje esta nossa amiga já nos deixou, conforme página do Facebook "Em memória de Manuela Gonçalves";   vamos fazer-lhe oportunamente um In Memoriam, no nosso blogue).


2. O Manuel Seleiro vive na Parede, Cascais, vamos convidá-lo para um dia destes aparecer na Magnífica Tabanca da Linha e arranjar-lhe uma boleia.

Contactos (que ele disponibiliza na sua página na Web):
Telem:  930 672 960
Email: manuelseleiro@gmail.com

Telefonem-lhe que ele gosta. Ajuda a suportar a sua solidão.  A esposa também tem problemas de visão  (lateral).

Mas, como o Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande (!), viemos também a saber que: 

(i) ele sabia que eu era natural da Lourinhã; 

(ii) disse-me que era casado com uma senhora do Sobral, Lourinhã; 

e (iii) tem um filho, Emanuel Seleiro, de uma primera relação: andou nos pupilos
do Exercito, está a trabalhar na Associação dos Bombeiros Voluntários da Lourinhã (BVL), de que foi presidente da direção, até maio de 2022, o meu amigo, vizinho e colega de escola Carlos Horta...

Para acabar esta apresentação do Manuel Seleiro aos membros da Tabanca Grande (****) foi-lhe fazer, talvez, uma surpresa (ele deve conhecer esta moda, mesmo que a não tenha listado na sua página pessoal, Luar da Meia Noite):



Vídeo (2' 12'') > Alojado em Luís Graça > Nhabijoes (2020). 

Lisboa > Casa do Alentejo > 8 de fevereiro de 2020 > Sessão de lançamento do livro do serpense José Saúde,  "Um ranger na guerra colonial: Guiné-Bissau, 1973-1974: memórias de Gabu" (Lisboa, Edições Colibri, 2019, 220 pp.)

Momento cultural: atuação do grupo musical "Os Alentejanos", de Serpa, com o João Cataluna ao centro (voz e acordeão). Moda alusiva ao embarque de tropas para a guerra colonial, "Lá vai uma embarcação / Por esses mares fora, / Por aqueles que lá vão / Há muita gente que chora"... (Reproduz-se a letra mais abaixo.)

Trata-se de uma homenagem sentida a um combatente da terra, o José Saúde, nascido em Aldeia Nova de São Bento, hoje vila, concelho de Serpa (em 23/11/1950), mas que foi cedo para Beja, a sua segunda terra, onde ainda hoje vive e onde nasceram as suas duas filhas, Marta e Rita.

Os dois concelhos viram sacrificados, no "altar da Pátria", 69 dos seus filhos, durante a guerra do ultramar/guerra colonial: 35, de Beja; 34, de Serpa... Só a freguesia de Aldeia Nova de São Bento teve 10 mortos, uma terra que viu decrescer a sua população para menos de metade em pouco de meio século: 8.842 habitantes em 1950, 3.073 em 2011.

Há uma versão original desta moda, de 1973, gravada pelo Trio Guadiana e o Quim Barreiros (como acordeonista). Segundo Miguel Catarino, "esta gravação data de 1973 e pertence à Banda 1 da Face A do disco EP de 45 R.P.M. editado pela 'Orfeu, etiqueta da 'Arnaldo Trindade e Companhia, Lda.', matriz 'ATEP 6514', em que o Trio Guadiana, acompanhado pelo acordeão de Quim Barreiros, interpreta quatro modas regionais alentejanas populares, com arranjos musicais do acordeonista. Esta moda é uma das mais pungentes que existe no Cante Alentejano, de seu nome 'Tão Triste Ver Partir', conhecida também como 'Lá Vai Uma Embarcação' ".

Convirá acrescentar que isto não é "cante", mas tem as suas raízes na música tradicional alentejana. No cante, não se usam, em regra, instrumentos musicais. Abrem-se exceções para a viola campaniça... A voz é o único (e grande) instrumento do cante, música do trabalho, do lazer e do protesto, cantada nos campos, na rua e na taberna... Em grupo, sempre em grupo. Homens e mulheres, se bem que os grupos corais femininos só tenham começado a aparecer há 3 décadas, por razões socioculturais... Mas as mulheres sempre cantaram, em grupo, com os homens no duro trabalho agrícola... Em grupo, num coro polifónico, "à capela" que não deixa ninguém indiferente: ou se ama ou se odeia... Um alentejano (do Baixo Alentejo) nunca conta(va) sozinho. No campo, trabalhava-se em "rancho", e cantava-se em "rancho"...O "cante" amenizava a dureza do trabalho e da vida no Alentejo dos latifúndios...

Lá vai uma embarcação (**)

É tão triste ver partir
Um barco do Continente,
Para Angola ou Moçambique
Lá lai outro contingente.

Tanta lágrima perdida,
Quando o barco larga o cais,
Adeus, minha mãe querida,
Não sei se voltarei mais.

Lá vai uma embarcação
Por esses mares afora,
Por aqueles que lá vão,
Há muita gente que chora.

Há muita gente que chora,
Com mágoas no coração,
Por esse mares afora,
Lá vai uma embarcação.

É tão triste ver partir
Um barco do Continente,
Para Angola ou Moçambique
Lá lai outro contingente.

Tanta lágrima perdida,
Quando o barco larga o cais,
Adeus, minha mãe querida,
Não sei se voltarei mais.

Lá vai uma embarcação
Por esses mares afora,
Por aqueles que lá vão,
Há muita gente que chora.

Há muita gente que chora,
Com mágoas no coração,
Por esse mares afora,
Lá vai uma embarcação.

[Revisão, fixação de texto: LG]


Contacto de "Os Alentejanos",
música tradicional Alentejana, Serpa

Telem: 962 766 339 / 938 527 595
Email: joaocataluna@gmail.com
___________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de fevereiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24067: Blogues da nossa blogosfera (177): Pel Caç Nat 60 (São Domingos, Ingoré e Susana, 1968/74), blogue criado por Manuel Seleiro, 1º cabo caçador, DFA, natural de Serpa - Parte I: Histórias de minas que marcaram corpos e almas...

(**) Vd. poste de 25 de novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3518: História de vida (18): Evacuado duas vezes e meia...(Hugo Guerra, ex-alf mil, cmdt Pel Caç Nat 50, 55 e 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70); hoje cor ref, DFA

(...) Fiquei a comandar o Pel Caç Nat 60 e ainda tenho algumas lembranças de coisas que por lá aconteceram. Adiante.

No dia 13 de Março de 1970, ia comandar um patrulhamento até à fronteira e eis senão quando detectámos uma primeira mina reforçada, mas em tal estado de conservação que não houve qualquer problema para a levantar.

Tinha no Pelotão um Primeiro Cabo, de nome Seleiro, já com um longo historial de levantar minas e, depois de a vermos, concordei que ele a levantasse, o que foi feito sem qualquer problema. Passámos o detonador para a bolsa do enfermeiro e continuámos a progressão.

Como eu era sempre o terceiro ou quarto homem depois das picas, vi perfeitamente que os picadores tinham localizado qualquer coisa. Montada a segurança,  lá chamei de novo o Seleiro para conferenciarmos sobre aquela.

Depois de nos certificarmos que estava isolada, tinha que decidir se abortava a operação, rebentando a mesma e regressando a São Domingos, expostos a alguma emboscada do IN. Se fosse entendido desactivar a mesma, poderíamos ir ao objectivo e no regresso levantá-la sem qualquer perigo.

Um e outro rastejámos até à mina que parecia nova e eu comecei a dizer ao Seleiro que a queria levantar. Ele acabaria a sua comissão dois meses mais tarde.

Comecei a suar por todos os poros e depois de olhar bem aquela malvada, disse ao Seleiro que não era capaz. Ele disse-me que não havia crise e tomou o meu lugar.

Deitado no chão a cerca de 5 metros, acompanhei todos os seus movimentos com angústia e só relaxei um pouco quando ele, de joelhos e com a mina na mão, prestes a desarmadilhá-la me chamou:

- Meu Alferes, olhe aqui.

Comecei a levantar-me e senti o estrondo infernal, o sopro que me projectou de costas, o sangue quente a escorrer na cara e os gritos dele a dizer que estava morto…

Mas não estava. Os nossos homens trataram-nos o melhor possível, pediram as evacuações e fizeram uma macas com bambus e camisas. Tinha medo de perder a consciência e passar para o outro lado.

Aguentei, em choque, até chegarmos ao HM 241 em Bissau e o que mais me agradava naquele desespero todo era continuar a ouvir o Seleiro a dizer que estava morto. Se ele se calasse, sabia que podia ter perdido um amigo.

Quarenta e oito horas depois chegámos ao aeroporto de Figo Maduro e, como já foi dito por um camarada nosso, fomos colocados dentro de ambulâncias militares e sem qualquer barulho para não acordar a cidade, levaram-me a mim para o HMP na Infante Santo e o Seleiro foi levado para o Anexo, em Campolide.(...)


(***) Vd. poste de 26 de março de 2006 > Guiné 63/74 - P634: Uma mina na estrada de São Domingos para Susana (Manuela Gonçalves)

(****) Último poste da série > 28 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24019: Tabanca Grande (542): Eduardo Jacinto Estevens, ex-1.º Cabo Radiomontador da CCS/BCAV 3854 (Nova Lamego, 1971/73), que se senta no lugar n.º 869 da nossa Terúlia

Guiné 61/74 - P24071: In Memoriam (468): Historiador Armando Tavares da Silva (5/5/1939 - 1/2/2023), Professor Catedrático Aposentado da Universidade de Coimbra (Mário Beja Santos)

IN MEMORIAM

Armando Tavares da Silva (5/5/1939 - 1/2/2023)

Mário Beja Santos

Conheci Armando Tavares da Silva quando um dia, inopinadamente (sem prévio aviso) me abriu a porta do meu gabinete de trabalho, onde eu fazia voluntariado, na Praça Duque de Saldanha, estávamos em 2016, vinha ajoujado de um cartapácio, apresentou-se, fiquei a saber que era professor catedrático reformado, presidente da secção Luís de Camões da Sociedade de Geografia de Lisboa, que andara aturadamente no Arquivo Histórico Ultramarino, fora desperto pelos assuntos guineenses graças a um avô marinheiro que andara na guerra do Churo, em 1904, trouxera muitas memórias, decidiu-se por aprofundar, documento puxa documento e escreveu uma obra de referência “A Presença Portuguesa na Guiné, História Política e Militar, 1878-1926”, obra recheada de imagens e cartografia, viria este tão prodigioso esforço a ser premiado pela Gulbenkian.

São centenas e centenas de páginas que começam na transformação da Guiné em província independente de Cabo Verde, meticulosamente vão sendo reveladas as atividades dos primeiros governadores, é o caso da guerra do Forreá, os incidentes do Casamansa, a delimitação de fronteiras (depois da convenção luso-francesa de maio de 1886), as intermináveis rebeliões, a indisciplina dos Papéis de Bissau, as tentativas de pacificação, com destaque para a governação de Oliveira Muzanty, as campanhas de Teixeira Pinto e o processo de Abdul Indjai, a governação de Vellez Caroço, o drama de heróis insurretos como Graça Falcão, a monopolização do comércio pela Casa Gouveia.

Não me cansei de louvar este levantamento monumental, uma singularidade na historiografia da Guiné colonial, tivemos a nossa querela a propósito das suas considerações finais quanto a legadas divisões em permanência entre militares e comerciantes, e mantive como mantenho sérias dúvidas quanto a todas as benevolências que ele atribui à campanha de Teixeira Pinto em Bissau, conducente à chamada pacificação definitiva de 1915. São arrufos entre estudiosos, mal ficaríamos se não houvesse divergências quanto ao olhar da sociedade e da política num certo período em análise.

A Guiné perde um investigador histórico de gabarito, foi colaborador do nosso blogue, deixou obra em várias instituições como a Sociedade de Geografia de Lisboa, o Instituto Português de Heráldica e a Sociedade Histórica da Independência de Portugal.

Curvo-me respeitosamente pela sua memória, pela companhia que nos trouxe e pelo acervo admirável que deixou sobre um importante período da nossa presença na Guiné.


********************

- Os editores e a tertúlia do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, lamentam a morte do insigne Historiador, Professor Armando Tavares da Silva, nosso confrade, endereçando aos seus familiares as mais sentidas condolências.

O Prof Armando Tavares da Silva deixa uma prestimosa colaboração neste Blogue, onde tem 52 referências, dando-nos a conhecer, no seu último livro publicado, a história política e militar da presença portuguesa na Guiné no período compreendido entre 1878-1926.

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24022: In Memoriam (467): Francisco Justino Silva (1948-2023), médico, ortopedista, ex-alf mil, CART 3492 / BART 3873, Xitole, e Pel Caç Nat 51, Jumbembem (1971/73) cerimónias fúnebres, hoje, em Porto Salvo, na igreja local, com velório a partir das 16h00; missa de corpo presente às 14h00 de 3.ª feira, seguindo o funeral para o cemitério de Carnaxide