1. Mandei ontem um inocente convite (ou melhor: sugestão) à nossa tertúlia:
"Amigos & camaradas: Estórias de mulheres… na guerra e na paz, precisam-se! Amanhã é dia (internacional) das bajudas e das mulheres grandes (com o devido respeito pelas nossas mulheres grandes, da caserna ao lado)…
"Vejo que os nossos tertulianos, com excepção do Zé Teixeira, do Jorge Cabral, do VB, da Zélia e de poucos mais, são muito recatados"…
... As respostas não se fizeram esperar.
2. Texto do José Martins (ex-furriel miliciano de transmissõres, CCAÇ 5 - Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70):
Luís: Mando um texto que escrevi em 1999, dois dias depois de a minha mãe ter partido ao encontro da PAZ, já que por cá viveu duas GUERRAS.
Martins
SARA DA SILVA MARCELINO MARTINS
(11/10/1911 * 15/05/1999)
Descendente de uma família de insignes militares do Regimento de Infantaria nº 7 de Leiria, em três fases distintas da sua vida, viu partir seu Pai para a I Grande Guerra, França, e dois dos seus Filhos para a Guerra do Ultramar, Guiné; e assistiu ainda à incorporação dos seus Netos no Exército Português.
Por outro lado, os Soldados da Paz também fizeram parte da sua vida: O Marido como Ajudante do Comando dos Bombeiros Municipais de leiria e um Filho como Bombeiro da mesma Corporação, tendo um Neto sido Bombeiro Voluntário da Corporação de Avintes.
Lisboa, 17 de Maio de 1999.
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3. A Nela, já aqui referida em tempos (1), não faz mas devia
fazer parte da nossa tertúlia, juntamente com o seu marido: ele foi
nosso camarada na época de 1969/70, foi no Niassa em Maio de 1969
- o mesmo é dizer que fomos juntos, ele e o pessoal metropolitano da
CCAÇ 2590, a futura CCAÇ 12 - esteve em Ingoré e foi gravemente ferido
na explosão de uma mina anticarro... Ela, jovem estudante universitára e
então namorada, viveu a guerra à distância, com a morte na alma... Já
casada, anos depois, desloca-se à Guiné-Bissau, com a família, para
exorcizar os seus fantasmas... Da paixão à cooperação foi um passo...
Mais recentemente, descobriu o nosso blogue, que visita regularmente, e
mais do que isso mantém o seu próprio blogue: Caminhos por onde andei...
Hoje voltou a escrever-me, dizendo:
"No Blog, vou revivendo e recordando com o meu marido. Continuarei a blogar. Estamos a tentar digitalizar os slides de 69/70, época da luta (nunca chamei turras aos guerrilheiros) e 81/82, época em que estivemos lá como cooperantes.
"No
meu blog, as memórias e factos, alguns bem curiosos, irão aparecendo.
Continuem com a vossa tertúlia! Passo por lá diariamente. Os meus
cumprimentos. Manuela Gonçalves".
No Dia Internacional
da Mulher, a Nela, companheira de um camarada nosso (cujo nome e unidade
desconhecemos, mas que terá viajado connosco no memso barco, na mesma
altura), merece o devido destaque.
Com a sua licença,
tomo a liberdade de reproduzir aqui dois dos seus posts em que ela evoca
esse doloroso tempo em que elo de comunicação entre os homens que
faziam a guerra na Guiné e as mulheres (mães, namoradas, madrinhas de
guerra...) que ficavam na retaguarda, se fazia através do frágil e
suspeito aerograma...
4. Blogue da Nela [Manuela Gonçalves] > Caminhos por onde andei > 7 de Janeiro de 2006 > Guiné-Bissau (1)
Esta
noite, ao navegar pelos blogs que visito habitualmente, fui parar,
através de hiperligações de posts, ao Blogue Fora-Nada, que reúne
documentos e memórias de ex-combatentes da Guiné-Bissau.
Não
fui combatente na Guiné, mas esses caminhos foram percorridos por mim
de modo e tempo diferentes... Tornaram-se mesmo decisivos na minha vida
de jovem estudante universitária rebelde, namorada de um alferes
miliciano que para ali fora enviado para a guerra, mais tarde meu
companheiro de vida (já lá vão 35 anos) e de mulher e mãe, que
considerou importante ir para Bissau, como cooperante!
A
Guiné dos aerogramas despertara um desejo imenso de conhecer a Guiné
das bolanhas, das tabancas, dos mosquitos, dos rios e pântanos e das
gentes que ali viviam, dos flupes, dos mandingas, dos papéis, de Amílcar
Cabral, dos guerrilheiros do PAIGC...
Nunca tinha
aceite a Guerra Colonial, mas uma vez que ela tinha entrado nas nossas
vidas abruptamente e deixado incapacidades físicas ao maridão, senti uma
vontade imensa de viajar para aquele pequeno país e conhecê-lo bem!
Era como que uma necessidade intrínseca de compreender bem uma etapa importante da vida vivida pelo companheiro de route!
Bissau, Bafatá, Mansoa, São Domingos, Ingoré eram locais que precisávamos (re)visitar.
E
fomos lá! Também os nossos filhos nos acompanharam, crianças ainda,
viram e pisaram as picadas que , anos antes, o pai cruzara, sempre
alerta! Agora podíamos circular livremente, apesar do mau estado das
estradas, mas em paz e liberdade!
Gostei da Guiné-Bissau! Voltar lá foi um modo de exorcizar fantasmas de guerra que habitavam a nossa casa!
Hei-de voltar ao tema!
Nela [Manuela Gonçalves]
Terça-feira, 7 de Março de 2006 > Guiné-Bissau (2)
Andei a rever fotos antigas.
Com elas caminhei por memórias bem aninhadas em mim, por vidas vividas,
por estradas perdidas, por espaços guardiães das minhas / nossas
vivências. Nossas, cá da casa, mas sobretudo minhas e do companheiro de
tantos anos.
Foi em 1969, Maio, que ele foi para a
Guiné. A bordo do Niassa e integrado numa companhia que fora formada em
Estremoz. Rendição individual, quando nada fazia prever que ainda fosse
até à Guerra. A faculdade ficou para trás, os sonhos adiados por uns
anos.
Da Guiné, chegavam aerogramas que eu lia e
tentava decifrar. Sim, naquela época, era preciso decifrar as palavras,
como aquelas em que me dizia que tinha dado um passeio até ao Senegal.
Eu sabia que tal significava que tinham feito uma incursão em terras
senegalesas e fiquei receando que fosse feito prisioneiro. Pouco tempo
antes, um grupo de oficiais tinha desertado e procurado asilo na Suécia.
Na
faculdade, eu continuava o curso e a apoiar as lutas estudantis contra a
guerra colonial. E escrevia cartas, cartas, aerogramas. Sempre muito
cautelosa, sabia-se lá quem poderia ler as nossas palavras.
Recebia
aerogramas aos pares. Um dia não recebi. O silêncio continuou por duas
longas semanas. Não fazia ideia do que poderia ter acontecido. Passaram
diversos cenários pela minha mente, todos deduzidos pelas conversas que
tínhamos tido, pelas utopias que partilhávamos, pelas palavras que não
eram escritas. Teria sido apanhado no Senegal? Teria ido ele para o
Senegal? Estaria morto? Ferido? Os jornais falavam da captura de um
major cubano.
Que se passava? Um aerograma de um amigo,
Alferes Baptista, no Q.G. em Bissau, deu – me a notícia: uma mina tinha
rebentado com o Unimog, quando ele e o seu pelotão 60 seguiam numa
patrulha. Ele estava no HMP em Bissau, em coma. Era dia 13 de Novembro
de 1969, 10:30 da manhã.
Restava-me esperar que o
trouxessem para Lisboa e falar diariamente com um médico, amigo de uma
tia, que prestava serviço no Hospital em Bissau. E de longe fui
acompanhando o seu estado! Mais tarde um lacónico aerograma dele, muito
parco em palavras, cheio de silêncios, confirmava-a.
Apesar
de toda a dor e angústia sentidas, uma grande alegria: ele estava vivo.
Os sonhos continuavam adiados, mas não jogados fora. Uma nova etapa nas
nossas vidas havia começado!
Nela [Manuela Gonçalves]
____________
Nota de L.G.
(1) Vd. pots de 9 de Janeiro de 2006 > Guine 63/74 - CDXXXV: O que os outros (blogues) dizem de nós (1): Caminhos por onde andei
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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