Uma fotografia recentíssima do José Martins (ex-furriel miliciano de transmissões, da CCA 5, Canjadude, 1968/70), "tirada no meu lugar de meditação e recordação". © José Martins (2006)
1. Texto do José Martins (CCAÇ 5, Canjadude, 1968/70):
Caro João e, por extensão, caro Luís:
Estive a ler os últimos momentos passados em Canjadude.
Voltei a visitar aqueles lugares e é curioso que, após mais de trinta anos a seguir ao meu regresso, pela primeira vez não estive lá sozinho. Passados estes anos ao folhear o álbum de fotografias, cuja capa foi feita com o tecido do meu camuflado, foi folheado e comentado com a minha mulher a meu lado.
Pelo relato da última noite, calculo que a entrega do destacamento aos novos inquilinos não foi muito pacífica.
Em conversa com alguém que esteve lá contigo nos últimos dias - creio que o Capitão Miliciano Silva de Mendonça, de que já te enviei o contacto -, sei que pagaram aos africanos seis meses de pré e, como se o contrato de trabalho de muitos anos e muita lealdade tivesse terminado, disseram-lhes, em nome de quem nunca os conheceu e viveu junto deles, vão à vossa vida.
Também em conversa tida com o Capitão Figueiredo Barros, soube que o Salazar Saliú Queta, Soldado Africano da Psico-social, foi sumariamente executado, por degolação, assim que o PAIGC tomou conta do aquartelamento. Este relato foi feito pelo Fernando Saliu Queta, filho do nosso nharo.
Foi assim que se passou? Gostava de saber, já que estou a tentar escrever uma pequena resenha sobre a CCAÇ 5, além de pretender agregar alguns elementos para constituir a história da unidade com o maior número de factos possível.
Mudando de assunto.
Asim que me for possível, tentarei pôr em comum algumas fotos que retratam os mesmos locais das tuas fotos, mas quatro anos antes: o posto de rádio, o Aeroporto da Portela de Canjadude, o Clube Militar, a Parada do Aquartelamento, etc.
Espero também que alguns dos camaradas espalhados por este canteiro junto ao mar, que conheça Gatos Pretos, os encaminhem para este convívio, para que possamos trocar experiências e recordações e, quem sabe, promover um encontro (...).
Um forte abraço
José Martins
2. Resposta do João Carvalho (ex-furriel enfermeiro da CCAÇ 5, Canjadude, 1973/74)
Olá:
Agradeço o email. Não sei como mas passou-me completamente ao lado, na lista que me tinhas enviado do pessoal que esteve em Canjadude, o nome do meu ex-capitão Mendonça. Recordo-me muitíssimo bem dele. Lembro-me que ainda fui uma ou duas vezes a casa dele, mas depois perdi o contacto. Em algumas das fotos por mim enviadas, aparece o camarada Mendonça. Se falares com ele, pede-lhe o email, para juntar à tua lista, e para que eu também o possa contactar. Há por vezes promenores dos quais eu já não me lembro muito bem, e assim pode-se confirmar alguns factos, para repor a verdade.
Em relação ao Salazar (não o que caiu da bendita cadeira), o professor de Canjadude, desconhecia o facto da sua morte. Tenho imensa pena. Apesar de eu pessoalmente não simpatizar muito com ele, acho que não merecia uma morte dessas. A maldita guerra e os ajustes de contas, têm sido uma vergonha da sociedade ao longo dos milénios. Quem diria que no fim do século XX e princípio do XXI ainda se fazem coisas [dessas]...
Enquanto nós estivemos em Canjadude não tive conhecimento de nenhum acto semelhante a este que aconteceu ao Salazar. Devem ter esperado pela nossa saída.
Sabes, estes emails e o blogue do Luís têm mexido comigo. (Provavelmente com os camaradas acontece o mesmo). Parece-me um pouco, a terapia do stress pós-traumático. (Nem sempre é fácil...).
Um grande abraço
João Carvalho
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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