Guiné > Chulame > 1971 > Catotinha e sua mãe, manjaca
© Rui Esteves (2005)
Texto do João Tunes, um tertuliano que não precisa de adjectivos e, muito menos, de: (i) licença para entrar e sair da nossa caserna, (ii) licença de porte de arma, (iii) licença para exercer a arte de blogar a toda hora, (iv) licença para entrar a matar, nos interpelar, emocionar, provocar, criticar, estarrecer, encostar à parede, pôr-nos em sentido, pôr-nos em pelota, nus, na parada, indefesos, fodidos... e, por fim, (v) licença para, assim de repente, fazer de medium e deixar-nos em paz connosco mesmos e com os outros e com os nossos fantasmas de estimação. É um prestidigitador. Um feiticeiro. Um mauro....
Como se diz agora, em bom economês, este João Tunes é uma mais-valia para esta tertúlia de cotas, de gajos marados da guerra de sessenta e troca o passo... Em boa verdade, eu não o posso tratar com menos mimos do que ele me (mal)trata, desbaratando o seu grande talento de manipulador de palavras, de fabricante de letras, de produtor de idiossincracias... (LG) .
2. O texto do João, que já circulou previamente pela tertúlia, mereceu do Afonso M. F. Sousa o seguinte comentário:
"Um texto magnífico, com exemplares figuras de estilo ! ...e a facilidade com que a pena desliza, dando forma à lucidez do espírito !
"Uma delícia, os seus escritos! Parabéns, grande escritor !"
3. Este Comandante Luís, entre tantas qualidades, ainda guarda a de irreverente desafiador. Topo o género de tipos como este - na sua ternura perante a vida, gostam de ver ramos, por gastos que sejam, a rebentarem de botões de primavera, puxando brios à seiva, adiando a secura de se tornarem paus secos só prestáveis para a lareira da velhice.
Sabendo que se lá queremos ir com azedume ou rancor mal seco, fodidos e mal pagos, vamo-nos tristes, assim nos secando no resto das nossas vidas, pouco merecendo a boa aventurança de, afinal, termos vindo da Guiné com cabedal e cachola prontos ao riso e à recordação, exorcizando lágrimas agarradas ao corpo mais as malvadas réplicas sádicas na flor da alma. Como diria o outro, este Nosso Comandante Luís é um Senhor! E julgo que é assim que ele, um Comandante, recusando-se ser Coma Andante, generoso e diligente, conserva composta, operacional e bem arreada esta tropa do nosso Blogue-Esquadrão.
Guiné- Bissau > Portogole > Mulher balanta com os filho às costas. Fonte: Africanidades > 21.11.05 > Tchon balanta (região balanta). © Jorge Neto (2005)
Pois o Comandante Luís lançou novo mote - puxarmos das recordações para comemorarmos condignamente o dia de amanhã - 8 de Março, Dia Internacional da Mulher. Mais uma das suas boas ideias, disse para mim, abalançando-me aos preparos de não o deixar lançar desafios na bolanha sem resposta condizente, de costureirinha que seja.
Matutei um ror de coisas, olhando o teclado a ver se, entre a formatura das letras, me surgia inspiração ou ideia pífia mas sincera que fosse.
Pensei na viúva de Amílcar Cabral, pensando-lhe o drama do assassinato a frio e à vista do companheiro e um dos maiores líderes africanos de todos os tempos. Que nos combateu e tanto nos esforçámos por combater. Não encontrei dados que me inspirassem. Nem sei se está morta, viva ou onde pára. Desisti.
Passei às comandantes e guerrilheiras do PAIGC, algumas insignes e heróicas. Não encontrei dados. Foi-se o motivo.
Julgava safar-me a pensar nas nossas bajudas, nas nossas lavadeiras, nas guineenses que vimos curvadas sobre a lavra e a safra acartando os filhos nas dobras dos seus lenços. Fiz as contas ao horizonte médio de vida das e dos guineenses e restou-me a tristeza funda de prever que a maioria já não terá um centímetro de vida para receber homenagem que seja. Passei à frente.
Restaram-me as nossas, as portuguesas - as noivas, as esposas, as mães e as irmãs dos mancebos camuflados que fomos, trocando-lhes a companhia por uma G3, essa gaja volúvel e mais puta que a puta rainha das putas. E aí defendi-me da emoção, tanta que me levava, pela certa, à lamechice pimba. E disse-me: basta, não vou por aí.
E festa é festa, até no Dia da Mulher. Haja baile até, se para tanto aprouver. Siga a dança então e com o riso da paródia que é o melhor dos exorcismos. Numa boa paródia, não há memória em que diabo entre que até a ele não lhe apeteça dançar. E enquanto o diabo dança, antes lhe dê para dançar que para guerrear, as diabruras esmorecem e nós descansamos. Até na memória, dando-nos calma de repouso e até preguiça de sesta. E não é disso que estamos precisados? A merecida sesta dos guerreiros?
Com inspiração falida, cansado de esperar inspiração vinda do teclado, fui ao baú dos textos publicados e desenterro este que julgo valer, pelo menos se festejado no gozo da antinomia:
"Tropecei nas Senhoras do Movimento Nacional por duas vezes. Eram uma espécie das Tias de hoje (Lili Caneças lá não faltaria, estou convencido disso), normalmente casadas com dignatários do regime salazarista-marcelista. Ocupavam o tempo a acarinhar a rapaziada que ia para a guerra colonial ou já lá tinha batido com os costados."
"Na primeira vez, estava eu perfilado e em sentido, comandando o meu pelotão, no Cais de Alcântara, a aguardar o embarque no Niassa que nos ia levar para a Guiné. Imaginem o estado de espírito. As famílias amontoavam-se nos varandins da Estação a acenar com lenços porque as despedidas estavam feitas. A tropa em formatura a gramar o discurso patrioteiro de um General qualquer. As lágrimas a caírem por dentro. Cada um a olhar de soslaio para os varandins, com uma tristeza infinita nos olhos ao ver a bruma dos lenços a acenarem sem se distinguirem os rostos. E uma raiva contra a sorte do destino a subir-nos até à garganta. A certo momento, avançam as senhoras do MNF, todas com aspecto de terem vindo directamente do cabeleireiro, sorrisos afivelados como os que fazem as meninas de um qualquer balcão de recepção, com saquinhos de pano a tiracolo para oferecerem a cada militar do Império um maço de cigarros de marca Aviz. Eu olhei o rosto da senhora que se postou na minha frente e senti uma navalhada da hipocrisia da situação em estar a ver aquela cara e não os rostos que eu queria ver mas não distinguia entre os lenços dos varandins. A senhora entende-me um maço Aviz e diz-me sorridente "parabéns senhor alferes, por ir defender a pátria". Senti a raiva crescer-me. Mas tinha que estar perfilado e em sentido. E tinha uma data de homens sob o meu comando. Crispei os dedos das palmas da mão esticadas. Disse-lhe entre dentes como um sussurro, não perdendo a compostura na formatura: "meta o Aviz na cona e desapareça-me da vista!". A senhora circulou para junto de outro militar, conservando o sorriso do protocolo. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias."
Guiné > Mato Farroba > Catió > Abril de 1970 > João Tunes, oficial (miliciano) de transmissões.
© João Tunes (2005).
"A segunda e última vez que contactei o MNF, foi no primeiro Natal passado na Guiné, em que a malta do Pelundo teve direito à visita da Presidenta da coisa, D. Cilinha Supico Pinto em pessoa. Ela foi lá numa visita ultra-rápida, demorou uns minutos a distribuir discos da Amália Rodrigues a cada militar e zarpou para o helicóptero. Os militares ficaram atónitos, para que é que queriam o disco se ninguém tinha gira-discos? Quando o helicóptero se preparava para subir, a malta já se tinha recomposto da surpresa e desatou quase toda a correr para o heliporto improvisado e, ainda o heli tinha as rodas no chão, a discaria da Amália subiu aos céus do Pelundo transformados em discos voadores. Foi a escolta merecida que a D. Supico teve na sua viagem de regresso do Pelundo. A tropa ficou fascinada com aquela nuvem de discos da D. Amália que pareciam querer tapar o céu e desatou toda aos gritos "Oh Supico, mete-os na cona!". Ela deve ter sorrido. Já devia estar habituada. Tinha mesmo vocação para aquelas cerimónias."
"Com o passar dos anos, vêm-me os remorsos. Tantas ofensas a tão respeitáveis Senhoras. Sabendo todos que as suas pudicas partes anatómicas não foram feitas para armazenarem maços de tabaco ou discos, mesmo que sejam da marca Aviz ou transportem a voz da Amália. Espero bem que outras prestações gloriosas as tenham compensado dos insultos da tropa chateada. Ainda para mais, fomos, com o apoio delas e dos seus esposos, defender a pátria e o império. Felizes, fomos. Patriotas também. Como o caraças! Só que, às vezes, na tropa, as palavras resvalavam para a ordinarice. Acontece. As minhas atrasadas desculpas, na parte que me toca."
Fonte > Primeiro (?) Bogue do João Tunes > Bota Cima > Homenagem ao MNF >
Com as melhores saudações a todos os estimados camaradas tertulianos.
João Tunes
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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