Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > O Zé Teixeira com um antigo milícia, o Braima de Mampatá.
© José Teixeira (2005)
XVI Parte de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).
© José Teixeira:
Empada, 11 de Setembro de 1969
Conheci a Mariama no primeiro dia que aqui cheguei. A sua alegria contagiante, as suas brincadeiras e a maneira como sabia fazer-se respeitada, tudo isso fez com que simpatizasse logo com ela. De manhã vinha acordar-me:
- Tissera, corpo stá bom ?
Ao fim da tarde de hoje, passou pela enfermaria, como sempre, mas vinha diferente; olhos inchados, cabelo muito arranjado, a alegria habitual tinha desaparecido.
- Mariama Corpo di bó ?
- Ká stá bom, hodje manga di chátisse.
- Porquê? Qui passa ?
- Meu pai diz a minha Mãe: 'Põe Mariama bonito. Hodje ela vai cása cum alfaiate'. Mim ká na sibi qui vai cása. Mim ká miste alfaiate.E acrescentou:
- Eu fui trabalhar na bolanha , manhã cedo, muito trabalho. Vem, lava roupa de Catarino (1) e passo tua roupa a ferro. Chega a minha mãe e conta a verdade. Eu não sabia que ia casar...
As lágrimas escorriam-lhe para o regaço. Não gosta do Sanhá e parece que nem sabia que o pai a tinha vendido como se faz com os animais. Sabia o que a esperava mais dia menos dia, mas nunca com um velho.
Nos Beafadas a cerimónia de casamento é diferente dos Fulas. Ao fim da tarde a bajuda segue para a morança do futuro marido, acompanhada por outras bajudas em festa: aí espera-a um jantar.
Em tempos apreciei um casamento fula em Mampatá. O casamento foi programado com antecedência. A festa durou dois dias com muita animação e até batuque. Este foi controlado pelo Sargento da Milícia, que a determinada altura mandou parar a batucada e vingou o silêncio. A noiva seguiu para casa do noivo às costas de um ancião coberto com um lençol de modo a ficar escondida dos olhares dos curiosos e, segundo me disseram, no dia seguinte tinha de pôr à porta o lençol com manchas de sangue para demonstrar que estava virgem.
Guiné-Bissau > 2005 > Campanha sanitária: "Usa camisinha na hora di ten"... Trinta anos depois da independência, o que é mudou na condição da mulher guineense ? Uma pergunta de difícil resposta, mas que não nos deixa indiferentes (LG).
© José Teixeira (2005)
A conversa com Mariama prolongou-se. Apresentou-me a Fanta, minha nova lavandera e deixou-me a dar largas aos meus pensamentos… Vieram-me à memória os jovens de Nápoles, e os da Ribeira . . . A Fármara de Mampatá que gostava do Amadu e era feliz; da Jubae, e da Yeró.
Esta última casada à força, presa fácil da tropa, que o marido me ofereceu como pagamento por lhe ter salvo o pai de uma doença (2), da Fatinha (siriana), cujo marido não se cansava de lhe bater. . e era tão bonita !... Da Suade … das suas lágrimas, quando à sua volta toda agente dançava ao som do batuque.
Pergunto a mim mesmo, como é possível em pleno século XX, ainda haver este tipo de escravidão. Como é possível um pai vender sua filha por uma vaca e três carneiros !
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Notas do L.G.
(1) Jorge Catarino, meu companheiro nas artes de seringa e grande amigo
(2) Quando cheguei a Mampatá, veio ter comigo pedir quinino para o pai que estava com muitas dores. O Furriel enfermeiro que fui substituir disse-me:
- Este gajo tem o pai a morrer, eu estou a dar-lhe um comprimido por dia de X medicamento. Não lhe dês mais que um por dia, pois só tens esta caixa e em Aldeia Formosa não há.
Assim fiz e no dia seguinte, já sozinho, fui ver o doente. Velho de cabelos brancos, amarelo como cera, há mais de um mês de cama, sem forças etc,etc.
Reuni com o Alferes comandante do Destacamento e decidimos pedir a evacuação, à revelia das ordens que havia, o que gerou ameaças solenes para o Alferes do Comandante de Quebo, o qual teve como resposta:
- Sr. Major, eu não sou médico nem enfermeiro, o meu enfermeiro diz-me que não se responsabiliza pela saúde do homem. O Sr. Major responsabiliza-se ?
Assim o velho, foi evacuado. Esteve cerca de dois meses internado, fez uma operação ao intestino e regressou, para alegria dos familiares, muito melhor. Quando deixei Mampatá estava vivinho da costa.
Como prémio ou pagamento do meu trabalho, o filho, disse-me:
- Fermero, Ká na tem patacão pra paga. Fica ku minha mudjer.
Este gesto gerou outra conversa que como esta história não coube no meu diário.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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