Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quinta-feira, 9 de março de 2006
Guiné 63/74 - P600: Estórias de Dulombi (Rui Felício, CCAÇ 2405) (1): O nosso vagomestre Cabral
1. Começo por agradecer ao Paulo Raposo a gentileza do envio, pelo correio, de um documento, ilustrado, com a sua história na Guiné, que é também a história da CCAÇ 2405 (Mansoa, Galomaro, Dulombi...) do BCCAÇ 2852 (Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70), um relato do seu envolvimento pessoal e militar, com a sua visão (muito própia e assumida) das coisas, com as suas alegrias e tristezas (a morte do seu pai, por exemplo, durante a comissão; o desastre no Rio Corubal, no Cheche...).
É um documento notável que eu gostaria de poder partilhar com o resto da tertúlia, se ele para tanto me der autorização para tal... O Paulo esteve em Madina do Boé, no Fiofioli, conheceu camaradas que eu, o Humberto, o Tony Levezinho, o Fernandes e o Jorge Cabral também conhecemos, em Bambadinca, como o Beja Santos... O Paulo foi alferes miliciano, com a especialidade de minas e armadilhas, na CCAÇ 2405, sendo portanto camarada de outros dois membros da nossa tertúlia, o Victor David e Rui Felício (1) .
Por sua vez, o Rui, já o sabemos, é um excelente contador de estórias. O Paulo mandou-te também cópia de várias dessas estórias, que são deliciosas, e a que eu vou chamar estórias de Dulombi. Publica-se hoje a primeira dessas estórias, com a devida vénia e um grande abraço aos camaradas de Dulombi e Galomaro: Paulo, Victor e Rui...
2. O nosso vagomestre Cabral (por Rui Felício)
O Natal aproximava-se…
Antes da data prevista, chegara-nos um presente inesperado! Um periquito….
O furriel Cabral foi-nos mandado para substituir o furriel vagomestre, uns meses antes falecido em acidente de viação na estrada de Galomaro-Bafatá numa viagem de reabastecimento de viveres à nossa Companhia…
O Cabral era uma jóia de pessoa, simpatiquíssimo, um tanto ingénuo e crédulo, sempre bem disposto e que rapidamente granjeou a estima de todos.
Natural de Bissau, de etnia pepel, um verdadeiro e retinto preto da Guiné…
Estudara em Lisboa, e, incorporado no exército, fez o curso de sargentos milicianos até que foi promovido a furriel e mobilizado, em rendição individual, para a Guiné, sua terra natal…
Calhou-lhe em sorte (ou azar…), ser destacado para a nossa Companhia numa altura em que já tinhamos cumprido um ano e meio de comissão.
Portanto já éramos, claramente, velhinhos experientes, com tudo o que de bom e de mau isso significava.
Ora um periquito no seio de tantos velhinhos era coisa que prometia animar a rotina e que não se podia desperdiçar.
O Sargento Vargas, que já tinha feito uma comissão em Angola como furriel miliciano e que metera o chico no fim da mesma, combinou pregar uma partida ao Cabral, de conluio com os seus camaradas (furriéis Veiga, Ribas, Trombinhas, Rebelo e muitos outros… ).
Deu conhecimento disso aos alferes e explicou-lhes o plano.
O cabo Xico, responsável pelo bar da messe conjunta de oficiais e sargentos, foi avisado que depois de jantar lhe seria pedida uma rodada de aniz escarchado, bebida incolor, em tudo semelhante à água, excepto no sabor muito doce e no grau alcoólico, como é evidente.
E o cabo deveria satisfazer o pedido colocando à frente de cada um dos presentes sentados à mesa, um cálice cheio da referida bebida….
Só que…(!)… apenas o cálice do furriel Cabral deveria conter aniz! Todos os restantes seriam cheios com água……..
E assim foi feito…
Sempre que os comparsas engoliam os repectivos cálices, alguém se prontificava a pagar mais uma rodada para todos…. E o cabo Xico lá ia levantando os cálices trazendo-os de novo cheios, um com aniz para o Cabral e um para cada um dos restantes, com água…
O Cabral foi perdendo a timidez, ganhando alegria, e com a voz entaramelada era já ele próprio que ordenava ao cabo Xico:
- Mais uma ( hic.. ) rodada que pago eu agora ( hic… ), se fachabôri, rrr…rápido e com ( hic…) bons modos! Hic..hic…
E gargalhava sem ele próprio perceber a razão de tão súbita e inusitada alegria….
Muitas rodadas depois, o Sargento Vargas, resolveu acabar por ali com a brincadeira, receoso de que o Cabral não resistisse muito mais aos efeitos de tanto aniz…e aconselhou a que todos fossem para a rua tomar o ar fresco da noite…
Quem não estava muito pelos ajustes era o Carbral que queria beber mais um cálice… Confessava ser a primeira vez que tinha bebido aniz e que nunca sonhara que fosse uma bebida tão deliciosamente doce…
E intimou o cabo Xico, socorrendo-se de toda a autoridade que as suas divisas lhe conferiam:
- Ou trazes mais uma ( hic… ) rodada ou levas uma ( hic… ) porrada!... Escolhe!
Como o cabo Xico, por indicação do Sargento Vargas, não cumprisse a ordem, o Cabral deu um impulso para se levantar e para coagir o Xico a cumprir a ordem.
Mas o peso do aniz foi mais forte que o impulso… e o Cabral caiu de borco no chão …inanimado!
O furriel enfermeiro Ribas, ali presente, apercebeu-se, primeiro que todos, da gravidade da situação e foi rápidamente buscar uma injecção de coramina que de imediato ministrou no corpo inanimado do Cabral…
Alguns segundos depois o Cabral retomava os sentidos e foi ajudado a dirigir-se ao seu abrigo onde o deitaram e o adormeceram….
Entre risos e alguns suspiros de alivio por a brincadeira não ter resultado em tragédia, todos se dirigiram para os respectivos abrigos, remoendo as peripécias do sucedido…
A noite passou…
E o alvorecer, marcado pelo som ritmado dos pilões a descascar o arroz e pelas orações matinais dos homens grandes da tabanca, foi acordando os militares que, a pouco e pouco começavam a sua azáfama diária.
Uns a irem buscar água para abastecer os diversos bidons espalhados pelo aquartelamento, transformados em reservatórios, os das transmissões e da secretaria para os respectivos locais de trabalho e os operacionais em preparação do próximo patrulhamento ou na limpeza das armas.
Na messe, alguns alferes, sargentos e furriéis matavam o bicho matinal e recordavam as cenas da noite anterior e, especialmente, reviviam os pormenores da bebedeira do Cabral.
Com os olhos encovados, ar de ressaca ainda mal curada, e alguma vergonha pelo sucedido, surge o furriel Cabral, que com um sorriso amarelo cumprimentou os presentes:
- Bom dia!
Quase em coro, com um largo sorriso, os presentes retribuiram:
- Bom dia pá! Passaste bem a noite?
- Nem me lembro bem…. Só sei que estou com uma sede terrivel.. e umas náuseas e dor de cabeça insuportáveis….- retorquiu o Cabral
E continuou:
- Mas já falei com o Ribas e ele diz que isso é natural e que mais umas horas tudo voltará ao normal...
E, ainda confuso, perguntou:
- Quantos anizes a gente bebeu ontem?... Eu acho que até 15 contei.. mas depois a minha memória não tem mais nada registado… Vocês contaram-nos ?... O cabo Xico deve ter tomado nota, com certeza….
O Xico, atrás do balcão, matreiro, antecipou-se na resposta:
- Apontei 17, meu furriel, e dessas rodadas, 3 são da sua conta… Logo que puder, agradeço-lhe que salde a dívida….
E o Cabral, pressuroso, puxando da carteira:
- Eh pá, desculpa lá… Vamos a contas… Eu ontem nem me preocupei com isso…
O Ribas, ali presente é que atalhou o diálogo:
- Nada disso, tu apanhaste a bebedeira, mas quem paga somos nós, fica tranquilo…
- Há uma coisa que me tem metralhado o cérebro desde que acordei – confidenciou o Cabral…
E continuou:
- Sei que de todos nós, o único que realmente se embebedou a sério fui eu… Reparei, segundo me lembro, que vocês todos não aparentavam estar tão mal como eu...pelo contrário…
Os circunstantes mordiam o riso, mas tentavam manter a compostura para não denunciarem toda a tramóia.
E deixaram o Cabral continuar o seu devaneio:
- Sou forçado a concluir que branco aguenta vinho como o caraças!
Resposta imediata do Vargas:
- Claro.. há diferenças entre brancos e pretos… Essa é uma delas: a capacidade de aguentar a bebida…
E perante o rebentar de gargalhadas dos presentes, incapazes de se conterem por mais tempo, sentenciou:
- Por alguma razão somos brancos! Já devias ter compreendido isso!
[Abro um parentesis para garantir que neste diálogo não há o menor resquício de racismo! O à vontade com o que o Vargas assim falou só se explica exactamente porque não havia racismo entre nós. Se o houvesse, penso que jamais teria sido dito de uma forma tão inocent]
EPÍLOGO
Durante vários dias o segredo manteve-se e o Cabral devia continuar a matutar se de facto existiam diferenças fisicas e morfológicas entre um branco e um preto, que justificassem tal diferença na capacidade de aguentar bebedeiras.
Descansámo-lo quando, um certo dia, o Ribas se prontificou a contar-lhe a verdade Que o Cabral aceitou com a maior desportivismo! Era de facto uma jóia de pessoa…
Vim a encontrá-lo uns anos mais tarde em Lisboa, por mero acaso, e perguntei-lhe o que fazia na Grande Tabanca.
Disse-me que cursava Economia para depois regressar à Guiné e colaborar na consrução do seu País independente.
Soube que, passados poucos anos, já licenciado, morreu de doença, em Bissau, por falta de assistência médica, medicamentosa e hospitalar…
Como a dele, também a ilusão de muitos outros guineenses, bem intencionados, que se deixaram enganar pelos ineptos e corruptos politicos que invadiram o poder daquela bela terra… Que a têm continuadamente destruido, em prol das suas ambições e do seu nepotismo!
Mas enfim.. A terra é deles.. Centremos as nossas preocupações em Portugal…
Nesta nossa terra que cá vai andando… cantando e rindo… umas vezes para os lados, outras para trás e poucas , muito poucas vezes, para a frente…
Rui Felício
DULOMBI
CCAÇ 2405
Ex-Alf Mil Inf
______________
Nota de L. G.
(1) Vd post de 12 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXV: Paulo Raposo e Rui Felício, dois novos camaradas (CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70)
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