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domingo, 23 de fevereiro de 2025

Guiné 61/74 - P26522: Humor de caserna (104 ): "Ontem fui ao Pilão, o que não quer dizer que fui às p..." (Bissau, 16 de dezembro de 1973, in: António Graça de Abreu, "Diário da Guiné", Lisboa, Guerra e Paz, 2007).




Guiné-Bissau > Bissau >  Planta de Bissau (edição, Paris, 1981) (Escala: 1/20 mil) > Posição relativa do bairro do Cupelon,. ou "pilão", como diziam os "tugas".. Fica(va) à esquerda da nossa conhecida estrada de Santa Luzia, portanto paredes meias com o QG/CTIG, em Santa Luzia... O Pilão fazia parte das nossas geografias emocionais...





Capa do Livro Diário da Guiné - Lama, Sangue e Água Pura. 
Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007.


1. O nosso camarada António Graça de Abreu (ex-alf mil, no CAOP 1, Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, jun 1972/ abr 74), enviou-nos há muitos anos (há 17)  alguns excertos (e depois cópia integral do seu "Diário da Guiné", com autorização de reprodução no nosso blogue).

Há uma entrada sobre o Pilão. Merece ser reeditada depois da "crónica" do Abílio Magro sobre os seus "desastrados" patrulhamentos nocturnos naquele bairro...

Temos apenas umas trinta e tal referências sobre o Pilão: famigerado, para uns; triste, para outros, vergonhoso, para os mais puritanos e conservadores... Houve um presidente da Câmara municipal de Bissau, o major Matos Guerra, que por volta de 1966 o quis arrasar (segundo  o comerciante Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai", vereador na altura) ... Ainda bem que prevaleceu o bom senso... (A ideia teria partido do próprio Governador e Comandante-Chefe, Arnaldo Schulz: alegava-se que o Pilão era umn "ninho de terroristas.)

O Pilão existia no nosso tempo...Era um bairro de gente honesta, como todos os nossos bairros populares... Mas ficava já fora do asfalto, com ruas de terra batida e moranças, mais ou menos alinhadas, em geral feitas de adobe, com cobertura de colmo, umas, as mais pobres, ou de chapa de zinco, as dos menos pobres... 

Em 1970, deviam morar em Bissau umas 70 mil pessoas, com a tropa incluída... (Não sabemos quantas no Pilão ou Cupelom)... 55 anos depois é preciso multiplicar por sete a população dos bissauenses...

Em 1973, quando o António Graça de Abreu passou por lá (como quase todos passámos, não havia museus nem monumentos para visitar  nas horas de cultura e lazer da nossa tropa), era mais ou menos equivalente ao nosso Bairro Alto dos anos 50, só com a diferença de que aqui havia "casas de passe" (proibidas pela hipocrisia da época a partir de 1963)... 

Dizer que o Pilão era um gigantesco bordel é um insulto parar os seus habitantes da época... E para as NT. E que se cortavam cabeças de "tugas", era outra enormidade... Que havia alguma animação noturna por aqueles lados, havia, e às vezes alguns distúrbios: não vale a pena negar, escamotear, branquear a realidade de uma prostituição, tolerada, a começar pelas autoridades militares e civis...e pelo próprio PAIGC (viviam lá simpatizantes e militantes, dizia-se)...

Nunca houve cabeças cortadas no Pilão, e a própria prostituição fazia parte da economia de guerra exercida sobretudo por cabo-verdianas, fugidas da miséria das ilhas...Como em todos os teatros de guerra...

Infelizmemnte não há estudos sobre esta realidade dita marginal... e eu até agora ainda estou â espera de descobrir a letra (já não digo a música) do Fado do Pilão, à semelhança do fado do Bairro Alto...

Mas demos a palavra a um dos nossos mais cronistas dessa época.


Diário da Guiné > Bissau, 16 de Dezembro de 1973

Ontem fui às p...!

Nestes dias em Bissau, com tanta tropa à solta, anda tudo num magnífico regabofe. Para estes homens, o fim da Guiné é a loucura. Aqui no “Biafra”, de madrugada ainda havia alferes a cair de bêbados, entrando pelos quartos em gritarias e choradeiras de pasmar. Não deixavam ninguém dormir.

Ontem o meu serviço foi fazer companhia ao alferes Tomé, meu antigo companheiro de quarto em Teixeira Pinto e em Mansoa. Era o seu último dia na Guiné, embarcou hoje para Lisboa no avião dos TAM e passou comigo as horas da derradeira festa guineense.

Fomos os dois até lá baixo à cidade, depois jantámos, bebemos bem e, entre pesaroso e alegre, o Tomé desatou a contar-me as suas aventuras com uma prostituta cabo-verdiana que o andava a encher de ilusões, ou o Tomé a ela. 

A rapariga gostava dele, sempre que vinha de Mansoa a Bissau ia visitá-la, de sexta para sábado dormiu a noite toda em casa da beldade, a menina desembrulhava-se em bolanhas de ternura e desdobrava-se em arrozais de dignidade. Existiria qualquer coisa de verdade nesse relacionamento oblíquo. A rapariga deve ter adivinhado no Tomé um homem que não lhe comprara apenas prazer para vinte minutos e talvez tenha gostado dele. 

Ontem o Tomé foi-se despedir e levou-me para eu conhecer a pérola dos seus sonhos reais. A moça tinha bom aspecto, pequena, redonda, um rosto suave e sorridente onde não se adivinhava o labor da mais velha profissão do mundo. O Tomé abraçou-a, entrou na casa dela e dedicou-se de imediato aos prazeres carnais, ia pela última vez comer o chocolate claro da sua princesinha.

Eu fiquei cá fora, à espera, aí uns quarenta e cinco minutos encostado a um monte de sucata, a carcaça desfigurada de um carro velho. Entretive-me a olhar à volta. Estava no Pilão, um bairro de Bissau habitado por muita miséria e alguma prostituição. 

O lugar é sujo, tem pouca luz e dizem os entendidos que é perigoso à noite. Ontem, sábado, havia muita tropa branca a fazer as despedidas da Guiné, à procura dos últimos prazeres do sexo negro ou mulato para levarem como recordação para Portugal. As prostitutas do Pilão trabalhavam heroicamente. Na casa em frente, vi uma mulher aviar três gajos em pouco mais de meia hora, entravam, saíam uns atrás dos outros. 

Não sou propriamente um puritano mas tudo aquilo com exceção da rapariga do Tomé, parecia boa menina me deixou um travo a desgosto, desconforto e imundície.

Enquanto esperava, uma das prostitutas meteu-se comigo. Chegou saracoteando-se dentro de um vestidinho vermelho, dengosa, um perfume barato, meloso, agarrou-me no braço e disparou: 

− Vá, amor, vem f...! 

Disse-lhe: 

− Não posso, já f.... 

Resposta pronta: 

− Vai apanhar no c... !

Andei pelo Pilão a cirandar junto às putas mas não fui às putas, não faz parte dos meus hábitos. E não segui o interessante conselho da prostituta do perfume oleoso e reles. Apanhar no c... também não faz parte dos meus hábitos. (...)

 

(Seleção, revisão / fixação de texto, título, negritos, itálicos: MR / LG)
____________

Nota do editor LG:

Ultimo poste da série >  23 de fevereiro de 2025 > Guiné 61/74 - P26521: Humor de caserna (103): Conversa de barbeiro na metrópole: "Cuidado com o Pilão, um gajo entra e sai de lá com a cabeça debaixo do braço!" (Abílio Magro, ex-fur mil, CSJD/QQ/CTIG, set 734 / set 74)

domingo, 14 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25069: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (2): "A Rainha"


A RAINHA

adão cruz

Dizem que toda a vida sonhara ser Rainha. Rainha de qualquer coisa, já que não podia ser Rainha a sério. Por isso, no bairro, todos lhe chamam Rainha. A Rainha para aqui, a Rainha para ali.

Não que haja, em bairro tão pobre, qualquer tipo de estatuto, hierarquia ou respeito especial. Não é um bairro onde os respeitos tenham degraus. No entanto, a Rainha, talvez pela idade, é assim uma espécie de pessoa honoris causa, uma espécie de Rainha-Mãe.

Dizem que é a prostituta mais antiga da cidade. Dizem que anda pelos oitenta, mas não precisam de o dizer. Está escrito nas engelhas. Trabalha na parte oriental da cidade, na zona oposta à do bairro onde vive. Noutro reino. Para não misturar as coisas.

Chega um pouco antes da meia-noite, ao único café aberto àquela hora. Senta-se sempre na mesma mesa, se estiver vaga, e na mesma posição. Virada para a porta. Com ela traz o filho e dois netos. O filho, alto e desengonçado, com um pequeno bigode à Hitler, mudo como uma pedra, não fala, e mal se senta não se mexe. Talvez fale para dentro, mas como falar para dentro é pensar, não é provável, porque ele dá a ideia de que não pensa. Dizem que nunca trabalhou e que sempre viveu à custa da mãe.

A neta, dos seus doze anos, engraçadinha, dá a entender que nada existe nem nunca existiu à sua volta. Não mexe uma fibra do corpo. Apenas os polegares, para premir, ininterruptamente, as teclas do telemóvel. O rapaz cola cromos numa caderneta como se, para ele, mais nenhuma tarefa houvesse neste mundo.

A Rainha e o filho comem um prego com mostarda, como quem cumpre um ritual, com os olhos fitos no nada, e bebem um fino. Ele, em duas goladas, ela, aos bocadinhos. Os netos comem hambúrger e bebem algo que está dentro de garrafinhas muito coloridas. E repetem, até à uma hora da madrugada. Entre a uma e as duas horas, o sono vence-os e eles tombam sobre a mesa. O pai pede mais um fino.

Por volta da uma hora, a Rainha mexe-se. Olha para os dedos enrolados em anéis de vários tamanhos e cores, compara-os com as argolas enfiadas nos pulsos magros, a ver se condizem, alisa as roupas e as repas que, teimosamente, saem do gorro vermelho, confirma a cor vermelha das unhas e das meias, espreme os lábios, onde o batom resvala para fora dos bordos e das comissuras por imprecisão das mãos secas e trémulas, sulcadas de veias. Com dificuldade põe a carteira a tiracolo, levanta-se um tanto cambaleante e sai. Dizem que vai trabalhar mas ninguém sabe para onde.

Cinco minutos antes das duas horas da madrugada regressa, antes de o café fechar. Paga a conta, o pai acorda os putos com um safanão, único gesto verdadeiramente activo da noite, e todos, como sonâmbulos, desaparecem na escuridão da rua, dizem que em direcção a casa, no bairro onde a mais antiga prostituta da cidade é Rainha.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24911: Contos do ser e não ser: Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (1): "Assinada e tudo"

terça-feira, 11 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24469: Memória dos lugares (449): "Chez Toi" / "Gato Negro", uma das referências da "noite de Bissau" (Nelson Herberto / Mário Serra de Oliveira / José Diniz de Sousa Faro)

Guiné > Bissau > s/d > "Aspecto parcial e Câmara Municipal"... Bilhete postal, nº 133, Edição "Foto Serra" (Colecção Guiné Portuguesa")... Ao fundo, do lado direito vè-se a ilha de Rei,

Colecção de postais ilustrados: Agostinho Gaspar / Digitalizações: Luís Graça & Camaradas da Guiné (2010).



Guiné- Bissau > Bissau > c. 1975 > Novo mapa, pós-colonial, da capital da nova república, já com as novas designações das ruas, avenidas e praças, que vieram substituir o roteiro português: av 3 de Agosto, av Pansau Na Isna, etc. Veja-se a localização do porto do Pidjiguiti (para os barcos de pesca e de cabotagem), à esquerda do porto de Bissau (para os navios da marinha mercante). (*)

A av da Unidade Africana separava a antiga Bissau Colonial dos bairros mais populosos como o Cupelon (de Cima e de Baixo), mais conhecfido pelas NT como "Pilão".

Por exemplo, a rua Eduardo Mondlane (assiinalada com um traço a zul) era antiga rua Engenheiro Sá Carneiro:,  parte do Chão de Papel (av. do Brasil), atravessa a av. Amílcar Cabral, a artéria central ( a antiga av. da República,) e vai até ao Hospital Simão Mendes, ao cemitério municipal e à antiga zona industrial...

Era a rua dos Serviços Meteorológicos e da messe de sargentos da FAP (com a independência, foi a primeira chancelaria da embaixada da China.). Em frente aos Serviços Metereolgicos ficava o "Chez Toi" (restaurante, pensão, bar e "boite", mais tarde "Gato Negro").

 
Foto: © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Segundo o nosso amigo guineense, de origem cabo-verdiana, Nelson Herbert,  jornalista que trabalhou na VOA - Voice of America, e viveu nos EUA, estando hoje reformado no Mindelo, São Vicente, a casa de duas moradias que se vê à direita  na primeira imagem acima,  foi a antiga "boite" ou "cabaret" "Chez Toi" (mais tarde "Gato Negro", como antes terá sido "O Nazareno", restaurante e casa de fados)... 

Em frente era a "Estação Meterológica de Bissau".. Antes da independência, esta rua, que era perpendicular à avenida da República (que partia da praça do Império até ao cais do Pidjiguiti) chamava-se rua do engº Sá Carneiro (antigo subsecretário de Estado das Colónias que visitou o território em 1947, sendo governador-geral Sarmento Rodrigues). (***)

2. Mário Serra de Oliveira é outro dos nossos amigos (e camaradas) que conheceu este e outros estabelecimentos da noite  da velha Bissau Colonial, quer como empregado quer depois como empresário do ramo da restauração coletiva.

[Foto à direita: Mário Serra de Oliveira, ex-1.º cabo escriturário, nº 262/66, BA 12, Bissalanca, 1967/68; esteve destacado na messe de oficiais em Bissau, entre maio de 1967 e dezembro de 1968; depois, já como civil, entre janeiro de 1968 e agosto de 1981, como empregado e como emtrsário passou por diversos estebelcimentos: Café Restaurante Solmar, Grande Hotel, Pelicano,  Ninho de Santa Luzia (uma casa sua, que abriu em 14/11/1972), Tabanca, Casa Santos, Abel Moreira, José D’Amura e Oásis; trabalharia ainda  na embaixada dos EUA; é autor, entre outros, do livro "Palavras de um Defunto... Antes de o Ser"(Lisboa: Chiado Editora, 2012, 542 pp, preço de capa 16€]

 
Num extenso texto, reproduzido na Net,  ele fala da “boate” Gato Negro, que antes se chamava "Chez Toi" (**):

(...) "O dono era um locutor de rádio cujo nome creio que era Soares Duarte, uma figura avultada cuja mulher não sei se o suportaria em cima, na exclusividade!" (...)

Mudou de nome e de d0no:

(...) passou a chamar-se... "Gato Negro", cujo dono era o Chico Fernandes. E, aí, ele foi a Portugal de propósito a contratar gado novo – todas com um “Gato Negro” um pouco mais abaixo do umbigo... Algumas vinte, aptas para todo o serviço.

Recordo aqui, já eu com "O Ninho de Santa Luzia" aberto, principalmente às sextas- feiras, me telefonava – sim, tinha telefone naquela ocasião, podia era não trabalhar mas que tinha, tinha… para um almoço para 22 ou 23, depois das 3 da tarde. A ideia, era tentar afugentar os 'mirones'. (...)

(...) Que inocència, a do Chico!... O problema era que...havia tantos esfomeados de 'carne fresca' – mesmo que besuntada de outros  – que até parece que lhes dava o cheiro!...

Então, após já estarem a almoçar, vinham aqueles tipos que só faltava 'comerem-nas com os olhos'...  Ainda tive problemas com alguns, porque se sentavam mesmo em frente da registadora – local do meu trabalho mais assiduamente , e...a comentarem ' olha p’rá aquelas trancas,  caralho!'

 (...) Claro que eu não permitia provocações diretas! O respeitinho era muito bonito e eu tratava de fazer vingar o mesmo!... Enfim...longa estória." (...) (**)



3. Outro depoimento (há mais no blogue), este do nosso tabanqueiro José Diniz Carneiro de Souza e Faro, ex-fur mil art, 7.º Pel Art (Cameconde, Piche, Pelundo e Binar, 1968/70), em comentário ao poste P18910 (***)

(...) De facto no início de 1970 (março a  a junho) existia o Chez Toi onde eu e os meus camaradas da BAC 1 nos untávamos para umas bebidas, era o tempo de partida para a Metrópole (17 de junho no Carvalho Araújo).

 Nessa altura,  creio, foi quando mudou de nome e o gerente era um locutor da Emissora Nacional que esteve na Índia (Goa),  de nome Oliveira Duarte (?), ex-sargento.

 Era um local simpático, com bailarinas recrutadas nas "boites" de Lisboa. Um dos fadistas era o Marco Paulo, já com muito sucesso. Uma das bailarinas era a Luísa,  uma mocinha atraente que encontrei em Lisboa,  na "Cova da Onça" (Av da Liberdade). 

Como estávamos no fim da comissão (com 27 meses), não ficávamos muito tempo nesses locais de risco, passando o resto da noite no Bar do Biafra (QG-Stª Luzia) ouvindo as aventuras e desventuras dos 'Piriquitos' (era só cheiro a pólvora) em trânsito de e para o mato. (...)  (****)

_____________

Notas do editor:

(**) Blogue A Guerra Nunca Acaba Para Quem Se Bateu em Combate > segunda-feira, 21 de novembro de 2011 > Guiné, Bissau, Pelicano, Solmar, Nino de Santa Luzia, Tabanca, Meta, Chez Toi (Gato Negro) e a longa e atribulada missão de serviço do 'camarada' Mário de Oliveira, de 1967 a 1981

(***) Vd. poste de 10 de agosto de 2018 > Guiné 61/74 - P18910: Memória dos lugares (378): Restaurante, pensão e "boite", o Chez Toi fazia parte do roteiro de "Bissau, by night"... O estabelecimento situava-se na rua engº Sá Carneiro... Desdobrável publicitário: cortesia de Carlos Vinhal.

(****) Último poste da série  > 25 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P24009: Memória dos lugares (448): a "Esnoga", a sinagoga portuguesa de Amesterdão (séc. XVII) e a história incrível da sua comunidade

terça-feira, 28 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23391: A galeria dos meus heróis (46): uma história pícara de três “a(r)didos” - II (e última) Parte (Luís Graça)



Guiné > Região de Bissau > Brá > Depósito de Adidos > Junho de 1969 > O Virgílio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS / BCAÇ 1933 (Nova Lamego e São Domingos, 1967/69), na sua função de Oficial de Dia. "Normalmente fazia as minhas rondas na minha própria motorizada, quando não tinha jipe disponível, uma vez que a área a percorrer era grande. Tinha uma extensão à volta de 1000 metros, de frente para a estrada, e uma quantidade indeterminada de instalações militares. A minha motorizada era uma Honda Azul, de 50 cc, que depois, quando regressei, deixei por lá abandonada. Pode observar-se a existência de valas abertas fundas, para escoamento das chuvadas diluvianas, quando apareciam. Em finais dos anos 40, havia aqui um campo de aviação."

Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné, região de Bafatá. Contuboel,
junho de 1969: o autor



A galeria dos meus
heróis: uma história
pícara de três
“a(r)didos” - II 
(e última) Parte 

por Luís Graça (*)


7. Tirando eventualmente um ou outro serviço, que eu não sei se chegaram a fazer (como “sargento de dia” ou “polícia de unidade”) e o facto de dormirem mal e comerem ainda pior, no Depósito Geral de Adidos (DGA), na Calçada da Ajuda  (só o termo “depósito” era um “achado”!), os nossos três “a(r)didos”, o Parente, o "Matosinhos" e o "Algarvio"  não se podiam queixar: afinal tiveram um prolongamento inesperado das férias (se bem que curtas, de duas ou três semanas), em Lisboa, enquanto aguardavam o embarque no “cruzeiro para a África de todos os sonhos” (de acordo com o prospeto da “agência de viagens” da tropa…).

Podiam ter ficado em casa de família ou numa pensão, mas por razão ou outra (e sobretudo "financeira"), optaram pela incomodidade dos Adidos, para mais tratando de um quartel que, naquele tempo,  ficava um bocado "fora de mão", na Ajuda.
 
Como compensação pelo sacrifício, "deu para beber uns copos” bem como para uma ou outra escapadela aos cinemas da Baixa e aos bares do Cais do Sodré, que estavam então na moda (e continuaram a estar até hoje, sobretudo com a criação da rua pedonal, a Rua Cor de Rosa, há cerca de anos atrás). Ficara  até prometida uma “visita secreta” ao Bairro Alto, que o “Matosinhos” e o “Algarvio” mostraram alguma curiosidade em conhecer… Por uma razão ou outra, o Parente ainda não os tinha levado lá, mas a surpresa ficaria guardada para a véspera do dia do embarque.

No regresso ao DGA, apanhavam o elétrico, o autocarro ou, às vezes, o comboio até Belém,  e subiam depois a Calçada da Ajuda, a pé… Tinham que entrar até à meia-noite, naquele tempo o “Matosinhos” e o “Algarvio” ainda eram 1ºs cabos milicianos mas já alinhavam nas escalas de serviço dos sargentos. Com a guerra, havia falta de sargentos e oficiais, o que era colmatado com o recurso aos milicianos. Mão de obra “escrava”, diga-se de passagen, paga a 90 escudos por mês (o valor do pré de então…), equivalente hoje a 28 euros…

− Mas também se ganha mal e porcamente na vida civil – contemporizava o Parente. – Agora, quando voltarem da Guiné, vivos e inteiros, vocês já poderão comprar carro, montar casa e casar!

− Não me f…! – interrompeu o “Matosinhos”. – Não haverá dinheiro que pague o sacrifício da nossa juventude… A madrasta da Pátria paga-nos para matar e para morrer…

− Não sejas tão panfletário, já pareces o Manuel Alegre aos microfones da rádio Argel… A maior parte da malta vai ter as férias que nunca sonhou ter!... Férias, ainda por cima, pagas!... – ironizou o sargento.

− Férias ?!...

− Olha, eu não quero outra vida. Já vou na 3ª comissão… É verdade que também não sei...  fazer mais nada!

− Grande malandro, tinhas dado um belo padre – ouviu-se a voz do “Algarvio”, do fundo do cadeirão.

− Pois era, mas o sacana do falangista f… o nosso Parente! − comentou o “Matosinhos”.

− Ele é que foi ingénuo. Nunca ouviste dizer: “Em Roma sê romano” ?!... Tinha obrigação de conhecer as regras da casa, foi pobre e mal agradecido − arrematou o "Algarvio", seco e contundente.


8. A cena mais pícara destes três “a(r)didos” foi quando o Parente convidou os outros dois para “irem às meninas” (sic) na véspera do embarque no “Niassa”. O “Matosinhos” e o “Algarvio” entreolharam-se, com um certo olhar de espanto, e terão respondido ao desafio, com uma pitada de humor negro:

− E porque não ?!...  Só Deus sabe se voltaremos a casa, vivos e inteiros!
 
− Sobretudo inteiros, com os ditos cujos “en su situ”! – atalhou, malicioso, o sargento.

Quase instintivamente, o "Matosinhos"  levou as mãos ao baixo ventre para se certificar que ainda lá estavam, inteiros, os “tintins”…

O Parente não conseguiu deixar de soltar uma sonora gargalhada:

− Façam de conta que é uma despedida de solteiro!... Mas primeiro vamos beber uns copos. E eu pago a primeira rodada!

Como estava previsto o navio largar amarras às 11h00 da manhã, do dia 24 de maio de 1969, no Cais da Rocha Conde de Óbidos, o Parente não quis arriscar deixar a surpresa para o próprio dia do embarque, o que teria tido muito mais "pica"... 

No fim da tarde do dia anterior, sexta-feira meteram-se num táxi, e “ala, moço, que se faz tarde”, a caminho do Bairro Alto. (As malas já haviam seguido, entretanto numa viatura dos Adidos, e, mais importante, haviam conseguido  dispensa de pernoita, seguindo na manhã do  outro dia diretamente para o "Niassa", como eu, de resto, que vim, durante toda a noite, em comboio, do Campo Militar de Santa Margarida para o Cais da Rocha Conde de Óbidos.)

Tinham, pois,  a noite toda por conta deles,  suspirava, feliz, o safado do sargento. Mas antes haveria que celebrar o evento com uma mariscada, na cervejaria "Trindade". No dia seguinte era sábado e nessa altura ainda se trabalhava aos sábados, e o Bairro Alto deveria estar animado de gente laboriosa. (É bom lembrar que a chamada semana inglesa, as 45 horas de trabalho semanal, com um dia e meio de descanso em cada sete, é uma conquista dos trabalhadores do comércio portugueses, só conseguida justamemte nesse ano, em 1969.)

A “Sissi”, a “Rita Pavone” e a “Mudinha” foram as três mulheres com quem os nossos “a(r)didos” passaram essa noite  de 23 para 24 de maio de 1969. Na cama, como eles depois me contaram. Ou melhor, quem me 
contou essa cena, digna de figurar no melhor livro do nosso humor de caserna, foi o “Algarvio”, que era, dos três, o mais sensato, o mais discreto, o mais sóbrio, o melhor observador e quiçá o  melhor contador de histórias que eu conheci …

Os nomes de guerra das três mulheres podem não ser estes, mas para o caso também não  é  relevante. A “Sissi” era a patroa, tinha uma “casa de bonecas”,  perto da “Princesa da Atalaia” (uma tasca que eu virei a conhecer mais tarde, dez anos depois. em 1979)... Com a  extinção das casas de passe, em 1963, fora a maneira da "Sissi" de contornar a lei e manter o negócio: alugava quartos a raparigas ("que vinham da província").  Com ela trabalhavam a “Rita Pavone” e a “Mudinha” (assim conhecida por ser muda) e, ocasionalmente, mais algumas que ali faziam o seu "biscate".

Como era habitual terem clientes na sexta feira à noite, o Parente tratou de tudo, previamente e reservou três quartos... Imagine o leitor o que era o Bairro Alto de há mais de 50 anos atrás, ainda com prostituição de rua (tolerada, se bem que ilegal).

A “Sissi”, como velha conhecida do Parente, combinou com as outras duas raparigas e facilitou as apresentações. O prédio  compunha-se de rés-de-chão (ainda com os famosos “aventais de pau”, as "meias-portas" onde no passado as mulheres se mostravam, debruçadas para a rua), primeiro andar e águas furtadas. 

 Era uma construção ou reconstrução oitocentista, de pé direito alto. As divisões eram minúsculas, mal cabendo nos quartos uma cama, uma mesinha de cabeceira e um pechiché, com um espelho (onde as raparigas tinham a tralha para a maquilhagem, os cosméticos, os pós de arroz, os batons, os vernizes). O rés-de-chão, compunha-se de um pequeno vestíbulo, com um reprodução  do quadro a óleo do José Malhoa, " O Fado" (1910), na parede;  uma  pequeno  cozinha, a casa de banho (reduzida a um retrete, lavatório e pouco mais), um roupeiro e ainda um saleta de costura. (Oficialmente, a "Sissi" era costureira, e tinha os impostos em dia.)

Havia ainda umas águas furtadas, acrescentava o "Algarvio", meticuloso na reconstituição da cena e do cenário que fez para mim a bordo do "Niassa"... Ali a “Sissi” tinha a sua “suite” (sic)  e um pequeno salão onde recebia os “hóspedes” mais íntimos… (O Parente achava que ela beneficiava de alguma proteção da gente do poder.)

− O teu gajo hoje está por aí ?! – interrogou, cauteloso, o Parente.

− Já não preciso de “guarda-costas” e muito menos de “Júlios” – respondeu, seca mas orgulhosa, a “Sissi”. 

O sargento ficou a “matar saudades” com a sua antiga “chavala” de há uns atrás. O “Matosinhos” e o “Algarvio” tiraram à sorte quem ficava com as outras duas: é que uma era mesmo “muda”…

− Muda, mas felizmente, não é cega nem é surda – encolheu os ombros, o “Matosinhos”, resignado com a sua (má) sorte, ele que logo simpatizara com a “Rita Pavone”, que falava pelos cotovelos, e tinha umas lindas sardas, que lhe fazia lembrar a sua primeira namorada do tempo de escola.

Fiquei depois a saber, pelo relato do “Algarvio”, que a “Mudinha” fora adotada pela “Sissi” como “afilhada”… Tinha sido violado, ao que se dizia,  pelo padrasto, em Setúbal, onde vivia e estudava no liceu. O gajo era uma granjola da máfia da estiva. A rapariga acabou por cair na “má vida” e veio para Lisboa, "por portas e travessas". A ”Sissi” acolheu-a.

Mas, afinal, quem mais se divertiu, dos três “a(r)didos”, nesse sexta feira à noite  inesquecível, foi o “Matosinhos”. A “Mudinha” era uma verdadeira figura dos contos das Mil e Uma Noites, capaz de satisfazer as mais exigentes fantasias eróticas dos “clientes”. A sua “especialidade” era exemplificar, ao vivo, algumas das mais ousadas e acrobáticas  posições do Kama Sutra…

E tinha um inusitado sentido de humor negro. Quando convidou o “Matosinhos” a fazer o “69”, este recusou, com alguma brusquidão e irritação, típica do macho latino… Ela então “rogou-lhe a sua famigerada maldição” (sic), um delicioso aforismo que é uma obra-prima do linguajar do "bas-fond":

− Quem não faz sessenta e nove, não chega… aos cem!

 Mesmo assim o tempo foi curto para tantas “lições”... O "Matosinhos" fez questão de mandar vir "champagne de Sacavém" e 
o par trocou de galhardetes e de endereços postais. A rapariga, sabendo que ele, “tadinho", ia para o "ultramar”, fez-lhe até um desconto e não lhe levou nada pelas “aulas extras”. O “Matosinhos” prometeu-lhe que escreveria da Guiné, e que, nas férias, lhe traria um colar de missangas, conforme pedido expresso da rapariga… Ela comunicava através de notas, a lápis, num caderno escolar, a par da linguagem gestual.

Não sei se o “Matosinhos” chegou a vir de férias. E se, muito menos, cumpriu o prometido,    voltar à Rua da Atalaia com o colar de missangas  e acabar o resto das aulas... enquanto a sua namorada o esperava, ansiosa, a 300 km mais a norte... (Nem nunca mais poderei saber se ele chegou a casar com ela, a menos que me dê sinais de vida, o que me parece pouco provável.)


 9.  Ainda foram, para a despedida,  ao cacau da Ribeira, no Cais do Sodré,  antes de rumarem diretos ao Cais da Rocha Conde de Óbidos, a pé. Já estavam os três com um grãozinho na asa, ou pelo menos eufóricos, quando passaram pelas senhoras do Movimento Nacional Feminino, e receberam o maço de cigarros “Três Vintes” e a medalhinha de Nossa Senhora de Fátima a que tinham direito.

Mas, logo à entrada do “Niassa”, junto às escadas que levavam ao portaló, ia havendo uma “bronca de todo o tamanho" (sic), com o “Matosinhos” e uma das “meninas da Cilinha”. Ele depois explicou-se, já mais calmo, no bar do navio: o que mais o irritara, fora o sorriso piedoso, cínico, amarelo, de uma delas, por sinal a que parecia mais nova, mas já "trintona, balzaquiana, com ar de solteirona" (sic)...

− A fulana estava a pedi-las! − desculpou-se ele.

O “Matosinhos” vinha eufórico, mas ali, no cais, ao cair na realidade e ao ser confrontado com o seu imperioso dever como militar, que era embarcar,  rumar  à Guiné, pegar na G3, ir para o mato e  defender a Pátria…, teve de repente uma “tirada infeliz” (reconheceria mais tarde), quando a senhora do MNF lhe “desejou boa sorte e a bênção de Nossa Senhora de Fátima” (sic)…

Ele não sabe o que é que  lhe deu na veneta..., mas  "passou-se dos carretos” (sic) e respondeu-lhe ao ouvido, para que as outras, ali à volta,  não dessem conta e armassem um escarcéu:

− Em matéria de santas, gosto mais da minha mãe e da senhora de Matosinhos, a nossa padroeira… E a si, minha querida senhora, que não deve ser santa mas ainda tem um lindo palminho de cara, e um belo par de marmelos,  eu dava-lhe mas era uma valente trancada patriótica!… Mas venho do Bairro Alto, de papo cheio, e agora a Pátria chama-me, e outros valores mais altos se 'alevantam'…

Não sei se a senhora percebeu patavinha do palavreado, já meio empastelado,  do “Matosinhos”… Só deve ter reagido à referência ao mal afamado Bairro Alto… Corou, Ficou afogueada,  e mal teve tempo de balbuciar:

− Ai, senhor furriel!... Mas que pessoa tão inconveniente e mal educada!…

E terá feito um gesto de pedido de socorro ao piquete da Polícia Militar que estava à entrada do cais, controlando os civis, de costas para o navio, pelo que os PM não terão sequer assistido à cena…

O Parente, felino,  é que não teve com meias medidas… À cautela, dei logo um valente puxão ao colarinho do "Matosinhos", arrastando-o pelas escadas acima até ao portaló!... Entraram os três, de roldão,  no navio, e só pararam no bar...Pediram três uísques duplos,  e comentaram, aliviados e bem dispostos, as peripécias daquele "dia inesquecível"…

Crachá do Depósito de Adidos, Brá.
Cortesia de Augusto Silva Santos (2013)

10. No dia 30 de maio de 1969, logo pela manhã, cerca das 8h00, desembarcámos em Bissau. E fomos levados para o Depósito de Adidos, em Brá. E cada um foi para o seu lado, eu fiquei com a malta da minha companhia, num dos pré-fabricados.  Sei que ficámos numa camarata, em camas sem lençóis, com um cheiro insuportável, agravado pelo calor e humidade de Bissau.  Foi um horror, durante três dias, até acertar com a bebiba que matava a sede.

 No dia 2 de junho, eu segui em LGD pelo rio Geba acima até ao Xime, a caminho de Contuboel (via Bambadinca e Bafatá).  

Os três “a(r)didos” ainda lá ficaram, coitados, em Brá,  à espera de transporte, cada um para o seu destino. Ainda nos encontrámos no "Pelicano", se a memória não me atraiçoa. ... Mas mal tivemos tempo de nos despedirmo-nos. Nunca mais os vi, mas espero que tenham conseguido regressar a casa, sãos e salvos, "vivos e inteiros"… Eu, por mim,  regressei, vivo, em março de 1971,  mas com a morte na alma...


11. Tem piada, durante anos não me lembrei mais desta(s) história(s) picara(s) dos três “a(r)didos"... Como tantas outras que me fariam correr o risco de "voltar à Guiné", tentação essa a que fui resistindo durante os primeiros anos da "peluda",  fechando as memórias da guerra com um cadeado a sete chaves. 

Para mim a Guiné, "c'est fini", dizia eu... Até que, uma década depois, no 2º trimestre de 1979, dei de caras com a placa com o nome da rua, a Rua da Atalaia… Foi um choque. Aprendiz de etnógrafo, a acabar o curso de sociologia, andei dias e dias, semanas e semanas, ao fim da  tarde, a caminho daquela rua, com o meu grupo de trabalho,  para apanhar histórias de vida, e registar letras e músicas dos velhos e velhas frequentadores da “Princesa da Atalaia”, uma tasca, uma das poucas, onde ainda se cantava o “fado vadio”… 

Então estas recordações vieram à tona de água, em catadupa... Tive que as registar. Pensei, como etnógrafo, que um dia alguém se iria interessar pelas "memórias da guerra colonial" (ou do ultramar), um objeto de estudo  que se calhar deveria merecer a mesma atenção  que o fado, "canção popular urbana", lisboeta,  em risco de extinção no pós-25 de Abril... 

Peguei no meu caderno de notas  e escrevi um primeiro esboço desta história... que ficou entretanto em banho maria e depois esquecida até agora... Mas hoje pergunto-me: se calhar ainda me cruzei,  sem o saber, em 1979, com a “Sissi”, a “Rita Pavone” e a “Mudinha”,  as três "meninas" com quem os meus companheiros  do "cruzeiro do Niassa" passaram as primeiras horas do dia 24 de maio de 1969. Na cama,  no bem-bom, a acreditar na história, bem pícara e hilariante, que me foi contada por um deles, o "Algarvio"... (Claro que com dez anos a mais estariam precocemente envelhecidas, e quiçá irreconhecíveis.)

Se resgato, hoje, esta história, ao fim de mais de meio século no limbo da memória, é porque afinal ela pode ter algum interesse para se conhecer um pouco melhor... a "idiossincrasia" da geração dos últimos soldados do império,   os que fecharam um ciclo de 500 anos... Não eram santos nem heróis, muito menos gigantes, daqueles talhados no bronze e na pedra ou imortalizados nos versos épicos do Camões... Eram apenas  "arraia-miúda", gente vulgar,  de quem nunca reza a História...

O Parente, o "Matosinhos", o "Algarvio", os três "a(r)didos", tal como a "Cilinha" e as suas senhoras,  ou a "Sissi" e as suas meninas, também faziam parte, afinal, da pequena história da História (com H grande)... 

Luís Graça

Lourinhã, 24 de maio de 2022, 
53 anos depois do embarque no T/T Niassa com destino à Guiné.
_________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 27 de junho de 2022 > Guiné 61/74 - P23389: A galeria dos meus heróis (46): uma história pícara de três “a(r)didos” - Parte I (Luís Graça)

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Guiné 61/74 - P20219: (Ex)citações (360): O sucesso do posto de controlo sanitário de Nhacra, ao tempo em que por lá passavam as "trabalhadoras do sexo" de Bissau, em missão patriótica... (José Ferreira da Silva, autor do bestseller "Memórias boas da minha guerra", 3 volumes, Chiado Books, 2016-2018)


Guiné > Região autónoma de Bissau >  Nhacra > c. 1972/74 > Casa do administrador


Guiné > Região autónoma de Bissau > Nhacra > c. 1972/74 > Igreja, escola e campo de futebol

Fotos do álbum de Eduardo Ferreira Campos, ex-1º cabo trms, CCAÇ 4540 )Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74)


Fotos (e legendas): © Eduardo Campos (2009). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região autónoma  de Bissau >> 11 de março de 1968 > O alf mil SAM Virgílio Teixeira,   CCS/BCAÇ 1933 ( Nova Lamego e São Domingos, 1967/69),  de motorizada, em Safim, a caminho de Nhacra.


Foto (e legenda): © Virgílio Teixeira (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região do Òio > Mansoa > 1968 > CCAÇ 2405 (1968/70) > O Alf Mil Inf Paulo Raposo, membro sénior da nossa Tabanca Grande, junto à placa toponímica que indicava as localidades mais próximas: para oeste e sudoeste, Encheia (a 18 km), Nhacra (a 28 km), Bissau (a 49 km)...; para leste sudeste e nordeste: Porto Gole ( a 28 km), Enxalé (a 50 km), Bambadinca (a 65 km), Bafatá (a 93 km)...

Foto (e legenda): © Paulo Raposo (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. A propósito da nossa "despreocupada sexualidade" em tempo de guerra, segundo uns, ou "miséria sexual", segundo outros,  quando já havia a santa penicilina (desde finais de finais dos anos 40, eficaz no combate às doenças sexualmente transmissíveis), mas ainda ninguém suspeitava da diabólica pandemia do HIV/Sida que se haveria de abater sobre o primata do "homo sapiens sapiens" nos cinco continentes (a partir dos anos 80), já  aqui foram evocados ou chamados a capítulo  dois dos nossos mais talentosos contadores de histórias, o "alfero Cabral", mais "softcore", e o Zé Ferreira, mais "hardcore"... 

O Cabral é incapaz de dizer uma asneira, uma palavrão, uma indecência (*), o Zé Ferreira chama os "bois pelos cornos", como nós chamávamos naquele tempo, em que tínhamos testosterona para dar e vender...Enfim, idade ideal para matar e morrer... Não é por acaso que nos chamavam para a tropa nessa idade...Mas também era um tempo em que a hipocrisia social havia feito do sexo um tabu.

Hoje cabe a vez de "repescar" uma das "memórias boas da minha guerra",aqui já publicadas há mais de dois anos (**), mas também já passadas para livro: e já vão três, os volumes com a assinatura do José Ferreira da Silva, sob a chancela da Chiado Books. (***)




2. Memórias boas da minha guerra > Controlo sanitário (**)

por José Ferreira



Todos os rapazes do meu tempo sabem bem do perigo que se corria quando se procurava uma relação sexual com uma das “badalhocas” que proliferavam nos arrabaldes do Porto e de Gaia. Dizia-se, até, que as prostitutas “mais limpas” eram as “meninas” da baixa do Porto, porque eram submetidas a um rigoroso controlo sanitário, uma “modernice” imposta pelo regime de Salazar.

José Ferreira 
da Silva
É claro que as relações amorosas surgiam por todo o lado. Não havia santa terrinha que não exibisse (ou ocultasse) enredos dignos da pena de um Camilo Castelo Branco. Ora, os resultados apareciam como cogumelos no pinhal, umas vezes com as gravidezes involuntárias e outras com os inesperados “esquentamentos”. Tudo fruta da época.
Enfim, tudo normal. Porém, por vezes, surgiam alguns rumores de que o Senhor Fulano de Tal, também andava “esquentado”, devido a descuidos da sua bela e fidelíssima amante. Mas isso era abafado e rapidamente esquecido, por falta de testemunhos credíveis e por alguns receios de represália. Quando muito, e para se salvaguardar situação social tão melindrosa, fazia-se a alusão aos lugares públicos, onde possivelmente se sentara, sem a protecção do lencinho estendido debaixo do rabo.

Esta juventude foi mobilizada para defender patrioticamente as nossas Províncias Ultramarinas. Influenciada pelos princípios patrióticos incutidos desde a instrução primária, ela aparece, assim, repentinamente, relacionada com os nativos. 


Os “turras”, no interior, que, em termos de guerra subversiva, dominavam as populações, levavam as jovens e deixavam as crianças e as velhas para as proteger. Raramente ficava alguma mulher adulta para apoio a essas pessoas mais fragilizadas. As mulheres que mais se viam, eram as da tropa milícia, que combatia ao nosso lado.

Isto quer dizer simplesmente que a actividade de prostituição, fora de Bissau, era quase nula, apesar dos apetites sexuais de tanta e tão potente clientela.

Pergunta-se:
- E como é que a malta se “safava”?

Os portugueses sempre foram conhecidos pelo seu primor no desenrascanço. Aqui, como manda a sua educação católica, cada um teria que se confessar dos seus pecados contra a castidade e de um ou outro caso de relação furtiva, por vezes não muito correcta. Estou a lembrar-me do caso do Fafe que apareceu na enfermaria “à rasca da piça”, porque uma jovem adolescente o havia masturbado, não tendo lavado as mãos, que estavam impregnadas de piripiri.

Por altura dos princípios dos anos 70, com a evolução da guerra, foram aumentados os contingentes militares, a par de outras consequentes movimentações. Uma delas, foi o aparecimento de prostitutas brancas, na cidade de Bissau. No bar Mon Ami já “trabalhavam” regularmente. 


Tal como no Texas, nos tempos da corrida ao ouro, essas profissionais carregadas de ambição, tudo arriscavam pelo dinheiro fácil obtido no “negócio das carnes”. Agora, na procura de clientes do interior, deslocavam-se de táxi e de outros meios de transporte (até onde as novas e poucas estradas alcatroadas o permitiam), saindo, assim, de Bissau, rumo a norte… com regressos rápidos e seguros.

Fora de Bissau, elas passavam por controlos militares. Na zona de Nhacra, esse movimento era cada vez mais notório. Perante essa situação, os militares locais viam-nas passar, a caminho da satisfação dos outros camaradas, deixando-os chateados porque também queriam usufruir desse “serviço”. 


Foi então que o Maia, mais o Seixas, assumiram a liderança reivindicativa dos “justos direitos” e foram interpelar o comandante do destacamento, o Alferes Bastos:
- Meu Alferes, nós também queremos foder. Estamos a deixá-las passar e …ficamos “a ver navios”. E quando lhes dizemos qualquer coisa, elas mandam-nos ir a Bissau, que é perto. Aqui o Seixas, há dias, ainda conseguiu, disfarçadamente, dar-lhes umas apalpadelas, com o pretexto de ter que fazer “controlo de armas”, mas uma mulata quis “assapar-lhe” o pelo.

O Alferes, que também já se apercebera dessa movimentação, e que até já fora mimoseado por reconhecimento dessa sua autoridade local, em visita ao Mon Ami, acalmou-os e disse que ia pensar no assunto.

À noite, com os Furriéis, enquanto bebiam umas cervejas, a conversa versava o assunto da prostituição versus “necessidades fisiológicas” da nossa tropa. O Furriel Moura aproveitou para demonstrar os seus conhecimentos nessa matéria, dando como exemplo o que se se passava no Vietname. Falou do grande número de prostitutas que quase chegava a rivalizar com os 500 mil militares. Ao contrário da nossa situação na Guiné, aos americanos “não faltava onde despejar os tomates”. 


Mesmo assim, lembrou o facto de grandes artistas americanos visitarem periodicamente as tropas, moralizando-as e mantendo-as racionalmente ligadas ao seu mundo de origem. Lembrou a Raquel Welch e a Joan Collins. Esta, que sendo capa da Playboy, foi pessoalmente entregar exemplares da tiragem dos 7 milhões dessa edição recorde. A Playboy subira de tiragem desmesuradamente, graças à sua procura no seio das forças armadas.

Por sua vez, o Alferes Bastos referiu um facto curioso, também relacionado com o Vietname. Dizia que numa determinada zona, ocupada por cerca de 20.000 militares, se haviam desenvolvido doenças venéreas com tal gravidade que, por precaução sanitária, os militares foram impedidos de se deslocarem à cidade mais próxima, o que provocou nocivos reflexos psicológicos, sociológicos e económicos. 


Então, o chefe dessa região teve uma ideia brilhante. Em parceria com as autoridades militares, fundou um enorme bordel, conhecido por “Disneyland Oriental”, que consistia essencialmente numa zona de 10 hectares, devidamente cercada, implantada com 40 quartos/casa dispersos, para satisfação sexual dos visitantes. E, em simultâneo, foram admitidas, identificadas e controladas as prostitutas, bem como o desenvolvimento de condições de tratamento aos infectados, tudo integrado num adequado serviço de controlo e apoio sanitário.

Porém, é sabido que, apesar do grande esforço médico, apoiado em carradas de “Penicilina” e “Penisulfadê”, o drama causado pelas doenças venéreas foi dos piores inimigos enfrentados pelos militares. Fala-se muito de suicídios de militares, incapacitados sexualmente, na hora do regresso do Vietname, mas, nós sabemos que isso também acontecia entre os nossos combatentes da Guiné. E muitos dos afectados optaram por ficar por lá.

Da conversa, voltou-se à análise da nossa situação e à nossa real dimensão. Momentaneamente, o que mais preocupava estes graduados era o aproveitamento do movimento “putéfio” para resolver a satisfação sexual da tropa do seu destacamento. E foi assim que com mais cerveja ou menos conversa, o Alferes determinou democraticamente, sem qualquer votação, contestação ou parecer superior, que ali também seria criado um serviço contínuo de Controlo Sanitário. A partir de agora, todas as mulheres, supostamente prostitutas, que ali passassem para exercício do seu métier em outras zonas, teriam que ser submetidas a exame prévio. 


Desta forma, se daria a oportunidade dos nossos militares, agora habilitados ao uso de bata branca, poderem, alternadamente, usufruir de (e cobrar) contactos seguramente mais agradáveis.

Uns dias depois, perante as novas valências do Controlo Militar e o enorme entusiasmo criado, o Alferes Bastos foi obrigado a aprovar uma rigorosa escala de serviço na Enfermaria, por via do Controlo Sanitário de mulheres, em trânsito, a caminho do norte.


_____________

Notas do editor:

(**) Vd. poste de 6 de março de 2017 > Guiné 61/74 - P17146: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (27): Controlo sanitário


(***) O autor não precisa de apresentações... Mas, para os que chegaram só agora à Tabanca Grande, podem a ficar a saber o seguinte sobre ele:
José Ferreira da Silva:

- Nasceu em 1943, no concelho da Feira.

– Aos 10 anos de idade começou a trabalhar no sector corticeiro.

– Fez os estudos liceais e outros através de ensino particular.

– Durante o serviço militar, esteve nas seguintes unidades: Escola Prática de Cavalaria – Santarém Set/Dez 1965;  Escola Prática de Artilharia – Vendas Novas,  Jan/ Março 1966; GACA 3 – Espinho,  Abr/Set 1966;   CIOE (Rangers) – Lamego,   Set/Dez 1966; RAP 2 – V. N. Gaia, Jan/Fev 1967

– Partiu para a Guiné no Navio Uíge em 26 de Abril de 1967, integrado na CART 1689 do BART 1913. Chegado a Bissau, a CART 1689 saiu do Uíge directamente para barcaças rumo a Bambadinca, subindo o Rio Geba.

– A CART 1689 esteve colocada em Fá Mandinga, Catió, Gandembel, Cabedu, Dunane, Canquelifá e Bissau. Com Companhia de Intervenção, a CART 1689 actuou em mais de metade do território do CTIG, vindo a ser premiada com a Flâmula de Honra em Ouro do CTIG, o mais alto galardão atribuído a companhias operacionais.

– Regressou da Guiné, chegada a V. N. Gaia em 09 de Março de 1969.

– Começou a trabalhar como Comercial no ramo de Tintas e Vernizes, mas logo seguiu para Angola, terra de seus sonhos.

– Trabalhou na secção de Contabilidade da Câmara Municipal de Cabinda.

– Regressado de férias, em 1974, demitiu-se da C.M. Cabinda e foi viver para Crestuma, Vila Nova de Gaia, terra natal de sua Mulher.

– De 1975 a 1985, trabalhou numa empresa de fundição, como Director de Serviços.

– De regresso ao sector corticeiro, trabalhou como Director Comercial, vindo a criar uma pequena empresa direccionada para o apoio ao engarrafador.

– Como amante do desporto e do associativismo, ajudou à criação e desenvolvimento de vários clubes e associações desportivas, cultura, solidariedade e recreio.

– Praticou Canoagem, chefiou a Federação Portuguesa de Canoagem,   é Sócio Honorário, por aclamação, da F. P. Canoagem.

– Foi reconhecido pela Comunicação Social como Presidente do Ano, mais que uma vez; também foi homenageado em Espanha.; foi galardoado como Personalidade Desportiva do Século XX (como foram Eusébio, Joaquim Agostinho, Moniz Pereira e outros ilustres desportistas).

quinta-feira, 16 de março de 2017

Guiné 61/74 - P17146: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (27): Controlo sanitário



1. O nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem do dia 5 de Março de 2017 enviou-nos mais uma das suas outras memórias da guerra. Esta bem divertida.


Outras memórias da minha guerra

26 - Controlo sanitário

Todos os rapazes do meu tempo sabem bem do perigo que se corria quando se procurava uma relação sexual com uma das “badalhocas” que proliferavam nos arrabaldes do Porto e de Gaia. Dizia-se, até, que as prostitutas “mais limpas” eram as “meninas” da baixa do Porto, porque eram submetidas a um rigoroso controlo sanitário, uma “modernice” imposta pelo regime de Salazar.

É claro que as relações amorosas surgiam por todo o lado. Não havia santa terrinha que não exibisse (ou ocultasse) enredos dignos da pena de um Camilo Castelo Branco. Ora, os resultados apareciam como cogumelos no pinhal, umas vezes com as gravidezes involuntárias e outras com os inesperados “esquentamentos”. Tudo fruta da época. Enfim, tudo normal. Porém, por vezes, surgiam alguns rumores de que o Senhor Fulano de Tal, também andava “esquentado”, devido a descuidos da sua bela e fidelíssima amante. Mas isso era abafado e rapidamente esquecido, por falta de testemunhos credíveis e por alguns receios de represália. Quando muito, e para se salvaguardar situação social tão melindrosa, fazia-se a alusão aos lugares públicos, onde possivelmente se sentara, sem a protecção do lencinho estendido debaixo do rabo.

Esta juventude foi mobilizada para defender patrioticamente as nossas Províncias Ultramarinas. Influenciada pelos princípios patrióticos incutidos desde a instrução primária, ela aparece, assim, repentinamente, relacionada com os nativos. Os “turras”, no interior, que, em termos de guerra subversiva, dominavam as populações, levavam as jovens e deixavam as crianças e as velhas para as proteger. Raramente ficava alguma mulher adulta para apoio a essas pessoas mais fragilizadas. As mulheres que mais se viam, eram as da tropa Milícia, que combatia ao nosso lado.

Isto quer dizer simplesmente que a actividade de prostituição, fora de Bissau, era quase nula, apesar dos apetites sexuais de tanta e tão potente clientela.

Pergunta-se:
- E como é que a malta se “safava”?

Joan Collins [n. 1933]

Os portugueses sempre foram conhecidos pelo seu primor no desenrascanço. Aqui, como manda a sua educação católica, cada um teria que se confessar dos seus pecados contra a castidade e de um ou outro caso de relação furtiva, por vezes não muito correcta. Estou a lembrar-me do caso do Fafe que apareceu na enfermaria “à rasca da piça”, porque uma jovem adolescente o havia masturbado, não tendo lavado as mãos, que estavam impregnadas de piripiri.


Raquel Welch [n. 1940]


Por altura dos princípios dos anos 70, com a evolução da guerra, foram aumentados os contingentes militares, a par de outras consequentes movimentações. Uma delas, foi o aparecimento de prostitutas brancas, na cidade de Bissau. No bar Mon Ami já “trabalhavam” regularmente. Tal como no Texas, nos tempos da corrida ao ouro, essas profissionais carregadas de ambição, tudo arriscavam pelo dinheiro fácil obtido no “negócio das carnes”. Agora, na procura de clientes do interior, deslocavam-se de táxi e de outros meios de transporte (até onde as novas e poucas estradas alcatroadas o permitiam), saindo, assim, de Bissau, rumo a norte… com regressos rápidos e seguros.

Fora de Bissau, elas passavam por controlos militares. Na zona de Nhacra, esse movimento era cada vez mais notório. Perante essa situação, os militares locais viam-nas passar, a caminho da satisfação dos outros camaradas, deixando-os chateados porque também queriam usufruir desse “serviço”. Foi então que o Maia, mais o Seixas,  assumiram a liderança reivindicativa dos “justos direitos”e foram interpelar o comandante do destacamento, o Alferes Bastos:
- Meu Alferes, nós também queremos foder. Estamos a deixá-las passar e …ficamos “a ver navios”. E quando lhes dizemos qualquer coisa, elas mandam-nos ir a Bissau, que é perto. Aqui o Seixas, há dias, ainda conseguiu, disfarçadamente, dar-lhes umas apalpadelas, com o pretexto de ter que fazer “controlo de armas”, mas uma mulata quis “assapar-lhe” o pelo.

O Alferes, que também já se apercebera dessa movimentação, e que até já fora mimoseado por reconhecimento dessa sua autoridade local, em visita ao Mon Ami, acalmou-os e disse que ia pensar no assunto.

À noite, com os Furriéis, enquanto bebiam umas cervejas, a conversa versava o assunto da prostituição versus “necessidades fisiológicas” da nossa tropa. O Furriel Moura aproveitou para demonstrar os seus conhecimentos nessa matéria, dando como exemplo o que se se passava no Vietname. Falou do grande número de prostitutas que quase chegava a rivalizar com os 500 mil militares. Ao contrário da nossa situação na Guiné, aos americanos “não faltava onde despejar os tomates”. Mesmo assim, lembrou o facto de grandes artistas americanos visitarem periodicamente as tropas, moralizando-as e mantendo-as racionalmente ligadas ao seu mundo de origem. Lembrou a Raquel Welch e a Joan Collins (*). Esta, que sendo capa da Playboy, foi pessoalmente entregar exemplares da tiragem dos 7 milhões dessa edição recorde. A Playboy subira de tiragem desmesuradamente, graças à sua procura no seio das forças armadas.

Por sua vez, o Alferes Bastos referiu um facto curioso, também relacionado com o Vietname. Dizia que numa determinada zona, ocupada por cerca de 20.000 militares, se haviam desenvolvido doenças venéreas com tal gravidade que, por precaução sanitária, os militares foram impedidos de se deslocarem à cidade mais próxima, o que provocou nocivos reflexos psicológicos, sociológicos e económicos. Então, o chefe dessa região teve uma ideia brilhante. Em parceria com as autoridades militares, fundou um enorme bordel, conhecido por “Disneyland Oriental”, que consistia essencialmente numa zona de 10 hectares, devidamente cercada, implantada com 40 quartos/casa dispersos, para satisfação sexual dos visitantes. E, em simultâneo, foram admitidas, identificadas e controladas as prostitutas, bem como o desenvolvimento de condições de tratamento aos infectados, tudo integrado num adequado serviço de controlo e apoio sanitário.

Porém, é sabido que, apesar do grande esforço médico, apoiado em carradas de “Penicilina” e “Penisulfadê”, o drama causado pelas doenças venéreas foi dos piores inimigos enfrentados pelos militares. Fala-se muito de suicídios de militares, incapacitados sexualmente, na hora do regresso do Vietname,  mas, nós sabemos que isso também acontecia entre os nossos combatentes da Guiné. E muitos dos afectados optaram por ficar por lá.

Da conversa, voltou-se à análise da nossa situação e à nossa real dimensão. Momentaneamente, o que mais preocupava estes graduados era o aproveitamento do movimento “putéfio” para resolver a satisfação sexual da tropa do seu destacamento. E foi assim que com mais cerveja ou menos conversa, o Alferes determinou democraticamente, sem qualquer votação, contestação ou parecer superior,  que ali também seria criado um serviço contínuo de Controlo Sanitário. A partir de agora, todas as mulheres, supostamente prostitutas, que ali passassem para exercício do seu métier em outras zonas, teriam que ser submetidas a exame prévio. Desta forma, se daria a oportunidade dos nossos militares, agora habilitados ao uso de bata branca,  poderem, alternadamente, usufruir de (e cobrar)  contactos seguramente mais agradáveis.

Uns dias depois, perante as novas valências do Controlo Militar e o enorme entusiasmo criado, o Alferes Bastos foi obrigado a aprovar uma rigorosa escala de serviço na Enfermaria, por via do Controlo Sanitário de mulheres, em trânsito, a caminho do norte.

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(*) Nota: - Apenas para referir que a única artista que eu avistei na Guiné, foi a Sara Montiel [1928-2013]  Sim, a Sarita,  do filme “La Violetera” [1958].  Foi durante uma exibição cinéfila, ao ar livre, acompanhado pelas fervorosas melgas da Guiné.

Destaco ainda o entusiasmo da tropa, sempre que o Operador da projecção parava a imagem, pondo em evidência os lábios carnudos e sensuais da artista, enquanto cantava:

Besame, besame mucho
Como si fuera esta noche
La ultima vez

Besame, besame mucho
Que tengo miedo a perderte
Perderte después

Quierote verte muy cerca
Mirarme en tus ojos
Verte junto a mi
Piensa que talvez mañana
Yo ya estaré lejo
Muy lejo de aquí

Besame, besame mucho
Como si…

(https://www.youtube.com/watch?v=xyOMyXTI3O0)
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de fevereiro de 2017 > Guiné 61/74 - P17069: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (26): Sonhos em perigo

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14701: (Ex)citações (275): Hospitalidade, brejeirice e ... instinto de sobrevivência das mulheres e bajudas fulas de Nhala, na receção aos "periquitos", em 29/4/1973 (António Murta, ex-alf mil inf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513, Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74)



Vídeo (1' 02'' ). Alojado em You Tube > ADBissau
(Cortesia do nosso saudoso Pepito, 1949-2014. Gravação feita em Gadamael Porto, em setembro de 2013, cinco meses antes de morrer)



Vídeo (0' 44'' ). Alojado em You Tube > ADBissau 

(Cortesia do nosso saudoso Pepito, 1949-2014. Gravação feita em Gadamael Porto, em setembro de 2013, cinco meses antes de morrer)


1. Excerto do poste P14691 (*), da autoria do nosso camarada António Murta, ex-alf mil inf MA, 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74) [foto à esquerda]

(...) À chegada da coluna a Nhala, e ainda antes de termos descido das viaturas, num ápice, formou-se uma pequena multidão vinda da tabanca, sobretudo mulheres e crianças, que nos receberam com palmas, cânticos, enfim..., se não em apoteose, pelo menos com grande euforia.

Fiquei entre contente e surpreso, a achar tudo um bocado exagerado. Seria sempre assim? Não foi preciso passarem muitos dias para ter uma explicação, plausível, para aquele acolhimento tão efusivo.

E cantavam acompanhando com palmas:

Periquito vai pró mato / Ó lé, lé, lé!, Velhice vai no Bissau / Ó lé-lé – lé-lé!. 

Esta cantilena, soube depois, era conhecida em quase todo o território da Guiné (**). E eram-lhe acrescentados outros versos, que só aprendi mais tarde, muito brejeiros e, pareceu-me, ao sabor da inspiração do momento:

"Mulher grande cá tem cabaço, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dele / Ó lé-lé – lé-lé"
"Mulher grande cá tem catota, / Ó lé, lé, lé! / Bajuda tem manga dela / Ó lé-lé – lé-lé"


E voltavam ao princípio com o Periquito vai pró mato, etc. etc. (...)

A população de Nhala é Fula. Os adultos parecem muito indiferentes em relação a nós, ou mesmo frios. Dependem muito da tropa, mas estão fartos de tropa. As mulheres e as bajudas atravessam o aquartelamento para se deslocarem à fonte que fica a pequena distância, num baixio. Está sempre alguém a passar para um lado e para o outro com bacias à cabeça e com a roupa que nos lavam. (...)

As bajudas, algumas bonitas, e toda a criançada são uma simpatia. É contagiante a alegria delas e um bálsamo para a nossa saúde mental. Ainda assim, como já disse, os “velhinhos” de Nhala parece que já não beneficiam desse bálsamo. Aproveitando as recomendações deles, vamos escolhendo as nossas lavadeiras. A oferta é grande, de modo que se fazem “contratações” despreocupadamente.

E em matéria de sexo, como é? Já em Bolama aprendemos que há lavadeiras “que lavam tudo” por pouco mais que a mensalidade da roupa lavada. «Desiludam-se!». As fulas são muito reservadas e pouco permissivas.

Contam-nos um caso ou outro de envolvimento com militares, mas excepcionais e por questões de afecto. A tropa em geral vai brincando, mais ou menos inocentemente, com as bajudas mais velhitas, mas sem consequências nem gravidade. De vez em quando, por ocasião da entrega da roupa lavada aos soldados, lá vem uma delas fazer queixa:
- Alfero, o soldado Manel do teu pelotão apalpou minha mama!

E eu perguntava:
- Ai, sim? E não lhe deste uma estalada?

E estava o caso resolvido. (...) (***)

2. Comentário do editor LG:

A propósito da conferência “Filhos da guerra”, no âmbito do Festival Rotas & Rituais (Lisboa, Cinema São Jorge, 22 de maio de 2015), tomei nota no meu canhenho:

 “Temos dificuldade em abordar em público este problema, o das nossas relações com as mulheres guineenses no tempo da guerra colonial. Pior ainda, num público feminino ( e senão mesmo feminista), português e africano, ou de origem africana… Somos, os homens, facilmente “suspeitos de cumplicidade” uns com os outros… Os homens são todos iguais, em toda a parte, defendem-se uns aos outros, dizem elas…

"A intervenção, longa e incisiva,  do Jorge Cabral, em tempo de debate, acabou por provocar algum sururu na sala. Disse ele, em síntese:

- Defenderei até à morte a honra do soldiado português na Guiné. Nós não eramos  nenhum emprenhadores compulsivos. Mais: atrevo-me a dizer que 80% a 90% dos soldados portugueses na Guiné não tiveram quaisquer relações sexuais com mulheres africanos… E se querem falar de prostituição organizada (que no meu tempo praticamente se restringia a Bissau e, em pequena escala, a Bafatá), pois tenho a dizer que é muito maior hoje, só na capital da Guiné-Bissau, do que no meu tempo"…
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Notas do editor: