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sexta-feira, 7 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22177: In Memoriam (393): Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai" (Bolama 1929 - Coimbra, 2021), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010

 

Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai) (1929-2021). 

Foto:cortesia de ANG - Agência de Noticias da Guiné


Cópia do texto, de 26 páginas,  que foi me entregue em 7 de março de 2008, em Bissau, pelo próprio autor, no final do Simposium Internacional de Guildje (Bissau, 1-7 de março de 2008). Está dividido em duas partes, com numeração autónoma: 1ª parte (9 pp.): Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai, Galardoado com a Medalha de Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Luta de Libertação Nacional. Guiledje, Simpósium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008; a II parte (17 pp): Simpósium Internacional, História da Mobilização da Luta da Libertação Nacional: Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai.



1. Acabamos de saber, pelas redes sociais e agências notíciosas, da morte de Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai), ocorrida anteontem por volta das 23 horas, em Coimbra, vitima de doença prolongada.

Era pai de Carlos Gomes Júnior (Cadogo Júnior), talvez o mais conhecido dos empresários guineenses e antigo 1º primeiro-ministro, bem como presidente  do PAIGC, ao tempo de 'Nino' Vieira.

Reproduz-se aqui a notícia da ANG:

Bissau,06 Mai 21(ANG) - O empresário Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai), faleceu quarta-feira por volta das 23 horas, em Coimbra(Portugal), vitima de doença prolongada.

Cadogo Pai como é vulgarmente conhecido, é pai do antigo 1º Ministro da Guiné-Bissau, Carlos Gomes Júnior, também conhecido por Cadogo Júnior, nascido em Bolama em 1929.

Segundo os dados fornecidos à ANG pela família, Carlos Domingos Gomes começou a  actividade empresarial como Paquete no escritório da família Barbosa, junto ao Grande Hotel. Com ambições e desejoso de ter outro futuro, foi trabalhar na SCOA (proprietária do edifício onde está instalada a Pensão Central), foi depois transferido para Bolama e mais tarde regressou à Bissau como chefe de loja, antes de voltar para Bolama em 1951.

Em 1967,Carlos Domingos Gomes, sofre a prisão e tortura pela PIDE e foi libertado no tempo de Spínola em 1968, tendo depois se refugiado em Portugal, em 1973 e regressado ao país depois do 25 de Abril de 1974.

Depois da independência do país, Cadogo Pai continuou a sua actividade empresarial tendo criado a Loja Abelha Mestra, que dedicava ao comercio geral e venda de vinhos em divisas.

Posteriormente veio a criar nova empresa denominada de Carlos Gomes & Filhos que igualmente dedicava ao comércio geral import e export.

Carlos Domingos Gomes foi acionista do Banco Internacional da Guiné-Bissau(BIGB), e um dos accionistas fundador do Banco de África Ocidental (BAO), e também accionista do Banco Panafricano (Ecobank).

No domínio político, o malogrado foi candidato as eleições presidenciais de 1994, onde tinha como adversários João Bernardo Vieira (Nino) e Kumba Yalá.

Em 1999 foi nomeado Ministro de Justiça e Poder Local, no governo de Unidade Nacional liderado pelo Francisco José Fadul ,depois do conflito político militar de 7 de junho de 1998.

Durante o período de conflito político militar de 7 de junho que durou 11 meses, o falecido empresário Carlos Domingos Gomes juntamente com o Bispo Don Setímio Artur Farazeta, se destacaram como ativista que trabalharam afincadamente na busca da paz e reconciliação entre as partes envolvidas no conflito. (...)


2. Era membro da nossa Tabanca Grande, desde 16 de agosto de 2010, com cerca de dezena e meia de referências no nosso blogue.  Conheci-o em Bissau, no decurso do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008).

Estava ainda no poder o ‘Nino’ Veira. Era presidente do PAIGC o seu filho Carlos Gomes Júnior (também conhecido na sua terra como Cadogo Júnior), e que chegou a ser considerado como delfim do próprio ‘Nino’ Vieira até ao conflito de 1998. Dez meses depois do Simpósio, o filho de Carlos Domingos Gomes, no final desse ano, seria indigitado para o cargo de Primeiro-Ministro,

Tal como o pai, o Carlos Gomes Júnior nasceu em Bolama em 1949. Sabemos que, antes de entrar na política, e chegar a dirigente máximo do PAIGC, foi um empresário e gestor de sucesso. Não participou na luta armada como combatente.

Já o pai, o Cadogo Pai, em contrapartida, reclamava-se da condição de Combatente da Liberdade da Pátria, sem todavia nunca ter pertencido ao PAIGC, e muito menos combatido na guerrilha. 

Considerava-se um  nacionalista, embora tenha colaborado com o poder colonial, como autarca (em Bolama e depois em Bissau), o que lhe trouxe alguns alguns amargos de boca nos primeiros tempos, após a independência. Dizia-se amigo de Aristides Pereira. Em contrapartida, teve problemas com Luís Cabral que “tentou impedir a minha candidatura às primeiras eleições legislativas realizadas em Bissau, após a Independência” (1ª Parte, p. 2).

Publiquei aqui, em 2010,  a sua  história de vida, a partir de um texto autobiográfico, policopiado, de que ele me ofereceu uma cópia autografada (*). Conheci-o por acaso, na sala de conferências do hotel onde estava a realizar-se o Simpósio. Na mesma altura conheci o Joseph Turpin, o sobrinho do Élisee Turpin, esse sim um histórico do PAIGC.
.
O Simpósio Internacional de Guiledje  terá sido um bom pretexto para o Cadogo Pai escrever, eventualmente retocar e sobretudo divulgar as suas memórias, quer como cidadão quer como empresário, balizadas entre os anos de 1946 e 1974. Mas nem toda a gente o levava muito a sério, em 2008, em Bissau.
 
3. Recordemos aqui alguns marcos da sua história, de acordo com a sua narrativa autobiográfica (*):

(i) em 1946, aos 17 anos (nasceu portanto em 1929), o autor era “paquete de escritório da família Barbosa, junto do Grande Hotel”; ganhava 120 escudos de salário mensal, essa família Barbosa incluía Antoninho Barbosa e César Barbosa, tios do Caló Capé.

(ii) achando que não era lugar de (ou com) futuro, candidatou-se a (e ganhou) o lugar de auxiliar de escriturário numa firma francesa, a SCOA – Sociedade Comercial do Oeste Africano,  com várias lojas espalhadas pela Guiné de então (Bissau, Bolama, Bissorã…);

(iii) está-se em agosto de 1946, a escrituração das receitas da loja era feita em francês, língua que ele não dominava, mas iria contar com a ajuda (inesperada) do empregado que fora substituir, nada menos que o José Costa, colega de escola, entretanto transferido para Bissorã;

(iv) ele próprio, Cadogo,  será transferido, meses depois, a 24 de dezembro de 1946, para Bolama; em Bissau ganhava 250 escudos. wm Bolama, passou a ganhar 300, “quantia exígua para tomar conta da minha vida” (1ª Parte, p. 3);

(v) fica em Bolama três anos; em 26 de Dezembro de 1949 é convidado “para vir ocupar o posto de chefia da loja nº 2 em Bissau”, enquanto o José Costa, regressado de Bissorã, chefia a loja nº 1;

(vi) tinha 20 anos, “ainda era menor”, só fazendo os 21 em Maio de 1950; é  em Bolama que nasce o seu filho, futuro 1º ministro, em 19 de Dezembro de 1949;

(vi) volta a Bolama, em Março de 1951, como chefe operacional da mesma empresa, a Sociedade Comercial Oeste Africana (onde trabalhou como contabilista, de 1942 a 1956, Elisée Turpin, um dos fundadores do PAIGC).

(vii) foi e  Bolama que conheceu "o camarada Aristides Pereira",  pessoa que ele descreve como "muito reservada"; tem uma tertúlia de que fazem parte, a
lém de Artistides Pereira, Alcebíades Tolentino, Barcelos de Lima, Adelino Gomes e Afredo Fortes; falava-se de tudo, “mas sobre a política africana nada"  (1ª Parte, p. 4);

(viii) é em Bolama que passa a ter "consciência política",  e se torna   um nacionalista, próximo do PAIGC;

 (ix) sera através do  Elisée Turpin, seu colega em Bissau, que lhe chegavam a Bolama as notícias das primeiras “movimentações”, de “cariz político”, que surgiam em Bissau. 

(x) é por essa altura, na 1ª metade da década de 1950, que a SCOA e as outras empresas francesas, NOSOCO e CFAO, começam a sentir restrições na sua atividade comercial, dada a posição monopolista da Casa Gouveia: tendo vocação exportadora, eram "obrigadas a vender os seus produtos à Gouveia" (sic); naa realidade, a CUF (, através da Casa Gouveia, ) detinha o monopólio da exportação do amendoim da Guiné, até à independência da Guiné-Bissau;

(xi) é também  nessa altura que o Cadogo Pai  começa a ponderar a hipótese da demissão e começar a trabalhar por conta própria. o  seu chefe, francês, não apoiou logo a ideia; em contrapartida, ter-lhe-á proposto "uma transferência para Paris, dada a confiança que ganh[ara] em toda a organização, a exemplo de muitos colegas que foram transferidos na altura para Ziguinchor, Dakar, etc."; e, mais: tê-lo-á avisado que "o vento da independência iniciada nos países vizinhos (Conakry, Senegal, etc.) chegaria à Guiné-Bissau", pelo que , se ficasse na Guiné, iria passar mal, como veio a acontecer...

(xii) estabelece-se por conta própria em 5 de setembro de 1955;

(xiii)  casa-se em 1956 e em 1957 é eleito vereador da Câmara Municipal de Bolama, "palco dos meus primeiros confrontos com o poder colonial, que marcaram bem a minha vida de luta e experiência";

(xiv) diz que  não completou o mandato, "porque começou a repressão colonial, após a fundação do PAIGC a 19/9/1956 e os acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 no Cais do Pinjiguiti", obrigando-a refugiar-se por uns tempos  em  Portugal  entre junho e novembro de de 1960;

(xv) instala-se em Bissau e  é vereador da Câmara Municipal de Bissau, "com o velho companheiro Benjamim Correia, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela"; era presidente o major Matos Guerra;

(xvi) é preso,pela primeira vez pela PIDE em 17 de janeiro de 1967, ao tempo do governador Arnaldo Schulz; depois de libertado no tempo de Spínola em 1968, refugia-se em Portugal em 1973 e só regressa ao  país depois do 25 de Abril de 1974. (*)

Sem ter sido uma figura de primeiro plano na história recente da Guiné-Bissau, "Cadogo Pai" deverá ser lembrado, em todo o caso,  como um nacionalista, um cidadão e um empresário cuja experiência, saber e exemplo devem inspirar as gerações mais novas. (**)

Ao filho, Carlos Gomes Júnior  (que conheci, se não erro,  no funeral da mãe do Pepito,  a dra. Clara Schwarz, em 2016) e demais  família e amigos mais próximos, em nome pessoal e em nome da Tabanca Grande, apresento sentido pêsames. 

_______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6856: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (Fim): Prisão e tortura pela PIDE em 1967, libertação no tempo de Spínola em 1968, refúgio em Portugal em 1973 e regresso ao país depois do 25 de Abril de 1974

 (**) 29 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22152: In Memoriam (392): Claúdio Ferreira (1950-2021), ex-fur mil art, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74)... Passa a integrar, a título póstumo, a Tabanca Grande, sob o nº 840 (Jorge Araújo)

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20297: (De)Caras (139): Quem foi António Augusto Esteves, colono desde 1922, comerciante, fundador da "Casa Esteves", simpatizante do PAIGC?


Guiné-Bissau > Bissau > Casa Esteves > c. 1980/90 (?) > Av Domingos Ramos, nº 33 (?). Foto: cortesia da página do Facebook de Adilson Cardoso. nascido na Guiné-Bissau, a viver em Lisboa. O fundador, António Augusto Esteves, foi dos poucos velhos colonos portugueses que terá ficado por lá, depois da independência, tendo sido, ao que parece, simpatizante do PAIGC. Ou soube adaptar-se ao fim do "império". Antes da independência, a Casa Esteves era na  Rua Administrador Gomes Pimentel, num r/c, havendo no piso superior 4 moradias para a família e para alugar... Em frente ficava a Tipografia das Missões  onde se publicava "O Arauto" (, a informação é da Lucinda Aranha Antunes. "O Homem do Cinema" (Alcochete, Alfarroba, 2018, p. 112).



1. António Augusto Esteves foi um conceituado colono da Guiné portuguesa, comerciante, radicado no território, nos anos 20, tendo inclusive sido nomeado, como vogal, do primeiro Conselho Legislativo da província, em março de 1964. Pertencia igualmente à direcção da Associação Comercial, Industrial e Agrícola.

No romance ou  biografia ficcionada "O Homem do Cinema - A la Manel Djoquim i na na bim" [Alcochete, Alfarroba, 2018, 163 pp, il,] a autora, a nossa amiga e grã-trabanqueira Lucinda Aranha Antunes (*), tem várias referências a esta conhecida figura da vida comercial da Guiné, o António Augusto Esteves, sendo inclusive amigo e compadre de seu pai, Manuel Joaquim dos Prazeres (1901-1977), empresário, caçador e homem do cinema ambulante que, nascido em Lisboa, viveu grande parte da sua vida em Cabo Verde (1929/1943) e depois na Guiné (1943/1973).

Segundo a Lucinda Aranha Antunes (op cit, pp. 103 e ss), o fundador da Casa Esteves teria chegado à colónia em 1922, acompanhando a mulher que fora colocada no Cacheu como professora primária. .  

No Cacheu terá começado a dar cinema. Entretanto, a mulher no final dos anos 30 é colocada em Bafatá. O Esteves conhece o Manuel Joaquim quando este se muda de Cabo Verde para a Guiné em 1946. Em 1951, em Bissau, o Esteves explora uma sala de espetáculos, onde projeta cinema, sala que fica totalmente destruída na sequência de um incêndio.

É a altura então em que inicia os seus negócios no ramo do comércio. Começou com um camião e ao fim de algum tempo tinha várias filiais junto à fronteira e no interior do país (Em Bafatá, por exemplo, a Casa Esteves era conhecida de alguns de nós, sendo o gerente um transmontano de Mirandela, o sr. Camilo.)

Na obra atrás citada, a filha do "Manel Djoquim" (que, diga-se, de passagem, escreveu um notável livro de memórias sobre Cabo Verde e a Guiné, onde, a par de Lisboa, decorre a saga da família, mas também um livrinho que é um monumento de ternura pelo seu pai, que tinha o nominho de Nequinhas, e pela sua mãe Julinha...), diz-nos algo mais sobre os negócios do António Augusto Esteves (p.  104):

(...) "O compadre estendera, pouco a pouco, os negócios comercializando arroz, calçado, fardos e fardos de suecas, camisolas interiores sem mangas, fabricadas em Portugal, e tão baratas que os indígenas ao fim de uma semana de uso continuado, descartavam.

"Por influência do Pereira, seu genro, começou a fazer representaçã de carros e de motas (Honda, Volvo, Simca, Vauxhall Bedford), tendo também representação de acessórios auto. Mas não se ficou por aí, passando a importar máquinas fotográficas japonesas, frigoríficos, primeiro a petróleo e nos anos sessenta-setenta já elétricos, rádios, gravadores, máquinas-ferramentas, além de não desdenhar a venda de combustível"...

" - Dou graças a Deus por o cinema  ter ardido [em 1951] e eu ter mudado de vida. A Casa Esteves é a minha galinha dos ovos de ouro" (...).

Alguém saberá mais sobre este homem, que conheceu vários regimes políticos (Monarquia Constitucional, República, Ditadura Militar, Estado Novo, República da Guiné-Bissau...) ?  (***) Não sabemos quando morreu, mas foi já depois da independência da Guiné-Bissau, e possivelmente ainda uns anos depois do seu compadre Manel Djoquim (1901-1977)(*).


Guiné > Bissau > s/d > Associação Comercial, Industrial e Agrícola de Bissau. Bilhete Postal, Coleção "Guiné Portuguesa, 144". (Edição Foto Serra, C.P. 239 Bissau. Impresso em Portugal).

Projeto do arquiteto Jorge Chaves (, datando de 1949/52), é considerado o melhor edifício colonial da ex-Guiné portuguesa (, segundo a opinião da especialista Ana Vaz Milheiros). Depois da independência, passou a ser a sede do PAIGC.

Foto: © Agostinho Gaspar (2010). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. O nosso amigo e camarada, guineense, António Estácio, em "Nha Bijagó: respeitada personalidade da sociedade guineense (1871-1959)" (edição de autor, 2011, 159 pp., c/ ilustrações), refere o nome do António Augusto Esteves, como vogal do Conselho Legislativo:

(...) "O profundo conhecimento da realidade guineense e a reconhecida ascendência social, contribuíram para que em 1964, no mandato (1964-1968) do General Arnaldo Schulz, como Governador, a “tia Nâna” viesse a ser eleita e por sufrágio directo, para exercer as funções de vogal do primeiro Conselho Legislativo da Província da Guiné.

Como vogais natos, integravam o Conselho o Inspector Dr. James Pinto Bull e o Director de Finanças, Tomás Joaquim da Cunha Alves, o Comandante Militar e o Delegado do Procurador da República.

Ainda, por sufrágio directo, Fernando dos Santos Correia e Joaquim V. Graça do Espírito Santo. Pelos Corpos Administrativos e Pessoas Colectivas de Utilidade Pública o Dr. Luís dos Santos Lopes. Pelos Organismos Morais e Culturais o Padre José M. da Cruz Amaral, pelos Contribuintes os comerciantes António Augusto Esteves e Mário Lima Wahnon. Pelos Corpos Administrativos e Pessoas Colectivas de Utilidade Pública o Dr. Artur Augusto da Silva [, pai do nosso Pepito e marido da Dra. Clara Schwarz ] e, pelas Autoridades das Regedorias Joaquim Batican Ferreira, Sene Sane e Mamadú Bonco Sanhá [, o régulo de Badora]." (...) [Negrito nosso, LG]


3. Excerto das memórias de Carlos Domingos Gomes, 'Cadogo Pai' (Bissau, edição de autor,  2008):

(...) “Voltei a encontrar o camarada Aristides Pereira em Madina do Boé. Foi na altura do 1º Aniversário da nossa Independência Nacional. Conduzi uma delegação de Bissau até Gabú. Era comandante da zona o sr. Honório Chantre que nos recebeu à chegada a Gabú. Após se inteirar da nossa intenção de irmos assistir às comemorações do 1º Aniversário da nossa Independência, mandou-nos procurar alojamento e aguardar a resposta à comunicação que ia mandar para a base.

“No dia seguinte, logo pela manhã, mandou-me chamar a mim e aos companheiros a fim de dar a resposta prometida. Da autorização recebida, só eu podia entrar para a base, escolhendo uma pessoa para me acompanhar.

"A delegação era composta por 14 nacionais e um português, de nome António Augusto Esteves, ex-comerciante bem conhecido, já falecido, radicado há dezenas de anos na Guiné-Bissau. Posso testemunhar a sua dedicação, bem coberta a causa da Independência (como o testemunham os bens implantados).

"Foi ele então a pessoa escolhida para me acompanhar. Foi deslocado um helicóptero da base de Madina Boé a Gabu para nos transportar. A minha escolha causou mal estar na caravana que teve de regressar a Bissau.

"A chegada à base que acolheu a manifestação, fomos recebidos pelo então Comissário do Comércio, o camarada Armando Ramos, que a seguir às manifestações, recebeu ordens para nos conduzir a uma sessão especial, onde encontrámos, reunido, todo o elenco dirigente do Partido, entre eles com a toda a surpresa o camarada Aristides Pereira que me acolheu de braços abertos, com uma abertura desconhecida no seu semblante, sempre fechado. Disparou-me a seguinte pergunta:

- E as nossas conversas em Bolama ?

"Respondi comovido, só descobri os fundamentos dos nossos encontros após a sua partida dita para os Estados Unidos." (...) [Negritos nossos]


4. Comentário de António  Rosinha, outro amigo e camarada nosso com um profundo conhecimento da Guiné, onde trabalhou na empresa Tecnil, depois da independência (**):

O português António Augusto Esteves, a que Cadogo se refere, antigo comerciante, poderá ser da célebre "Casa Esteves", que continuava a funcionar com muita dificuldade em plena ortodoxia comunista. Essa casa fica na rua do mercado municipal. (***)

Vários comerciantes mantinham após a independência um certo entendimento com os governantes. Embora sem grandes perspectivas, foi melhor do que em Angola e Moçambique, devido à guerra com Renamo, Unita e FNLA, após 74.

Quando falamos que a Guiné está mal, no pós-independência, o povo não sofreu nada comparado com as guerras de Angola e Moçambique, após 1974. Embora o petróleo pague e esqueça muita coisa.

Agora ver um guineense com o nome respeitado como Cadogo, ter que recorrer a um cabo-verdiano, A. Pereira,  do PAIGC, para "provar" o seu nacionalismo, ajuda-nos a subentender o que foi o pesadelo dos nosso comandos e de muitos anónimos.

Quando se cria a ideia que historicamente a administração usou os cabo-verdianos, se virmos por outro prisma, a capacidade, a necessidade e a inteligência dos cabo-verdianos, não seriam estes a imporem-se, em Bissau, mas também em Luanda?

Exceptuando os velhos comerciantes, "atrasados" e "analfabetos", que falavam vários dialetos e se «amancebavam» nos fins de mundo, a verdadeira administração colonial, nunca passou de uns ingénuos "piriquitos", perante os cabo-verdianos e luso-descendentes, e os brancos de 2ª ( de vez em quando, por conveniência, quem se auto-intitula de 2ª é Otelo Saraiva de Carvalho).

Penso que o que digo, não ofende ninguém, até porque me refiro a um grande número que continua português como eu e cujos filhos e netos, mesmo nascido lá, são registados (também) cá." (...)
______________

Notas do editor:

(*) Vd. poste de 15 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P12991: Tabanca Grande (433): Lucinda Aranha, filha de Manuel Joaquim dos Prazeres que viveu em Cabo Verde e na Guiné entre os anos 30 e 1972, e que era empresário de cinema ambulante

Vd. também postes de:

23 de abril de 2014 > Guiné 63/74 - P13022: Em busca de... (241): Fotos e histórias do cinema ao ar livre e do empresário Manuel Joaquim dos Prazeres, que deambulou pelo território entre 1943 e 1972 (Lucinda Aranha, filha e escritora)

9 de maio de 2014 > Guiné 63/74 - P13120: Notas de leitura (588): "Julinha", um excerto do próximo livro de Lucinda Aranha dedicado a seu pai Manuel Joaquim, empresário e caçador em Cabo Verde e Guiné (Lucinda Aranha)

(...) O meu pai teve 7 filhos, todos eles nascidos na Praia, excepto a sexta nascida em Bolama e eu que vim a nascer em Portugal. Viveu na Praia entre 1929 e 43 e desde essa data até 1972 na Guiné portuguesa, vindo à metrópole para junto da família, que residia em Portugal desde 1946, na época das chuvas.

Assim, nem eu nem os meus irmãos estudámos em África.

(...) Fui professora, leccionando História no ensino secundário. As estórias sobre África que conto no Reino das Orelhas não foram vivenciadas por mim mas são recordações dos meus pais, da minha ama Sampadjuda e dos amigos cabo-verdianos e guineenses que enxameavam a nossa casa de Lisboa.

O meu pai praticava uma política de casa aberta aos amigos. Por lá passavam administradores, chefes de posto, comerciantes e as suas famílias, alguns deles chegaram mesmo a ser residentes temporários.

Envio-lhes um excerto do livro que estou a escrever sobre Manuel Joaquim onde a sua mulher discreteia sobre essas «invasões» e que, penso, lhes permitirá perceberem melhor as minhas relações com a Guiné." (...)

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Guiné 61/74 - P20144: Controvérsias (137): Craveiro Lopes em Bolama, em visita de Estado... Era presidente da câmara municipal o Júlio [Lopes] Pereira, que passa, em dez anos, de cidadão respeitável a proscrito social... (Recorte de imprensa: "Diário Popular", Lisboa, 6 de maio de 1955)















Notícia do "Diário Popular", de 6 de maio de 1955, relativa à viagem do Chefe de Estado,  general Craveiro Lopes, à Guiné, com passagem por Bissau e Bolama e depois visita ao interior. Em Bolama, era presidente da Câmara o Júlio Lopes Pereira, colono e comerciante em Bolama, condecorado em 1947, ao tempo do governador Sarmento Rodrigues,  com o grau de Cavaleiro da Ordem do Mérito - Classe de Mérito Industrial. (Decreto de concessão publicado em D.G. de 29 de abril de 1947). Já nos anos 30 estava radicado em Bolama.


1. Presumimos que seja o mesmo Júlio [Lopes] Pereira, morto em novembro de 1965, em Farim... Foi acusado pela PIDE e pelas autoridades militares de Farim (comando do BART 733) de ser o "autor moral" do atentado terrorista de 1 de novembro de 1965, em Farim.

A tratar-se da mesma pessoa, o Júlio [Lopes] Pereira,  radicado em Bolama,  desde os anos  30 e depois em Farim (nos anos 60), seria o pai da jornalista Ana Emília Pereira (,"Milocas" Pereira, para os amigos), jornalista e docente universitária da Guiné-Bissau, a viver em Luanda desde 2004 e entretanto desaparecida, "misteriosamente", em 2012.

A tratar-se da mesma pessoa, verifica-se terá passado de cidadão respeitável a "proscrito social", tendo sido morto às mãos da PIDE em Farim, na sequência do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965. cuja autoria nunca foi reivindicada.(*)

As circunstâncias da morte do Júlio [Lopes] Pereira, de Farim, já aqui foi relatada por Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai" (n. 1929), seu amigo (**):

(...) "Em 1964, requeri terreno onde se encontram as minhas actuais instalações e iniciei as obras. Então o número de contactos aumentou. Concentrávamo-nos frente às minhas obras, com o perigo a aumentar passamos a organizar jantares e mais festas. O grupo engrossou, com Júlio Pereira (que vinha de Farim), Armando Lobo de Pina, Domingos Maria Deybs, João Vaz, Elisée Turpin, Pedro Pinto Ferreira, Duarte Vieira, Aguinaldo Paquete, eu, Carlos Domingos Gomes, etc.

Estes encontros organizavam-se sempre que o Júlio Pereira vinha de Farim para nos trazer as notícias da evolução da luta, que já estava muito avançada. Tudo estava sob perigo, sob vigilância da PIDE.

(...) Como uma bomba soou-nos a notícia da prisão de Júlio Pereira em Farim, na sequência de uma granada atirada a um ajuntamenmto numa festa de tambor em Farim. Foi sovado que nem um animal e obrigado numa cela a lutar com um companheiro até à morte.

Eu era vereador da Câmara Municipal de Bissau, com o velho companheiro Benjamim Correio, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela. Ninguém me fazia acreditar que seria preso, dada a forma isolada como actuava durante a distribuição de arroz. Atendia tudo e todos, até às pessoas que desmaiavam oferecia arroz, punha no meu carro e levava-as a suas casas, mas sempre de cara amarada (sic), porque sabia que a minha actividade estava sendo vigiada.


(...) Com a morte de Júlio Pereira, a raiva que gerou,  atingiu-nos a todos, Benjamim Correia que era meu colega, também vereador da Câmara [de Bissau], todos muito vigiados, colocou-me os anseio da filha, Luisa Pereira, esposa do  Júlio Pereira, de pedir o corpo do marido. 

Dirigi.me ao gerente da casa onde trabalhava, a Ultramarina, de nome Figueiredo, a transmitir-lhe a mensagem de Benjamim Correia e da filha. Telefonou para o director da PIDE, e este para me perguntar quem nos informou da morte. Situação que aumentou ainda mais as suspeitas da minha atuação, isto já no decorrer dos anos 1965/66. Esta onda passou." (...)


Guiné-Bissau > Região de Bafatá >  Saltinho > Ponte General Craveiro Lopes > Lápide, em bronze, evocativa da "visita, durante a construção" do então Chefe do Estado Português, general da FAP Francisco Higino Craveiro Lopes, acompanhado do Ministro do Ultramar, Capitão de Mar e Guerra Sarmento Rodrigues, em 8 de Maio de 1955. Era Governador Geral da Província Portuguesa da Guiné (tinha deixado de ser colónia em 1951, tal como os outros territórios ultramarinos...) o Capitão de Fragata Diogo de Melo e Alvim... Craveiro Lopes nasceu (1894) e morreu (1964), aos 70 anos.  Foi presidente da República entre 1951 e 1958 (substituído então pelo Almirante Américo Tomás). Não morria de amores por Salazar.

Como se pode ler na página do Museu da Presidência da República:

(...)  Após a eleição de Américo Tomás para a Presidência, em 1958, Craveiro Lopes é, em Novembro desse ano, promovido a marechal.

Apesar da promoção, torna-se progressivamente crítico do regime. Logo em 1959, alguns militares que lhe são próximos, participam activamente no "golpe da Sé", movimento militar revolucionário, promovido por oficiais ligados a Humberto Delgado, desmantelado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). Esta mesma polícia não deixará de o manter sob apertada vigilância, controlando todos os seus movimentos até ao final da sua vida. É com total envolvimento que o vamos encontrar ligado à chamada "Abrilada" de 1961 ("golpe de Botelho Moniz"). Craveiro Lopes é um dos militares presentes no plenário dos comandantes militares, na Cova da Moura, convocado por Botelho Moniz. O plano delineado previa que Craveiro Lopes voltasse a ocupar a chefia do Estado, e que Marcelo Caetano pudesse vir a tornar-se chefe do Governo. Considerando a situação irremediavelmente perdida, e perante a desistência dos outros implicados na conspiração, o marechal é um dos poucos que defende a desobediência e o confronto militar com as forças fiéis ao regime.

(...) O seu ressentimento em relação a Salazar e a certas figuras do regime será (...),  até ao fim da sua vida, profundo e irremediável. (...) As suas últimas intervenções com peso político dão-se em 196[2]: o prefácio que aceita fazer ao opúsculo da autoria de Manuel José Homem de Mello "Portugal.  o Ultramar e o Futuro", no qual defende a necessidade de se encontrar uma "solução verdadeiramente nacional" e promover uma "livre discussão", para o que uma maior liberdade de imprensa constituía factor fundamental; a entrevista que concede, meses depois, ao Diário de Lisboa, publicada na edição de 10 de Agosto, onde leva as suas críticas mais longe, defendendo a livre discussão dos principais problemas do país, "a evolução gradual do regime", a abolição da censura" e a "liberdade de expressão e discussão", apelando ainda à "coragem" e ao "bom senso", no âmbito da política ultramarina, a fim de que se reconheçam "as realidades da hora presente". (...)

Foto: © Albano M. Costa (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 11 de setembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20142: Controvérsias (136): Não consta que o Amílcar Cabral, o "pai da Pátria", tenha reivindicado a autoria (moral e política) do "atentado terrorista" de 1 de novembro de 1965, em Morocunda, Farim, e muito menos denunciado ou condenado esse ato monstruoso... Pelo contrário, até lhe convinha, para memória futura, que as criancinhas de Farim continuassem a repetir, em coro, estes anos todos, na escola, que esse ato foi obra maquiavélica e tenebrosa dos "colonialistas portugueses"...

(**) Vd. poste de  10 de agosto de  2010 > Guiné 63/74 - P6843: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (5): Júlio Pereira, preso, torturado e morto na prisão pela PIDE, suspeito de estar por detrás dos graves acontecimentos de Farim, em 1/11/1965

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Guiné 61/74 - P17780: Historiografia da presença portuguesa em África (90): a nossa conhecida NOSOCO - Nouvelle Société Commerciale Africaine, uma das patrocinadoras da Exposição Colonial Internacional de Paris, em 1931



Cartaz da Exposição Colonial Internacional de Paris, 1931, onde Portugal esteve representado (*).  Foi um retubambante sucesso, e uma manifestação da glória imperial gaulesa, cun espaço expositivo de  110 hectares / 220 campos de futebol, em Vincennes, Paris, Três anos depois, Portugal quis também reforçar, mais para consumo interno, a mensagem propagandística de que não éramos um país pequeno (Henrique Galvão dixit...).

O cartaz promocional da exposição de Paris foi uma oferta da nossa conhecida NOSOCO - Nouvelle Société Commerciale Africaine [NOva SOciedade COmercial africana], com delegações em Senegal, Casamance e Guiné Portuguesa.

Foto: © Mário Beja Santos (2017) . Todos os direitos reservado. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camarads da Guiné].


Guiné > Bissalanca > c. 1958/59 > Fotografia tirada na despedida do gerente da NOSOCO, Monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata) [nº 1, a amarelo]. O avião era, naturalmente, da Air France [5].

O João Rosa [2], o guarda-livros, [e que foi um dos fundadores do MLG - Movimento de Libertação da Guiné e um dos primeiros contactos políticos de Amílcar Cabral, tendo feito reuniões clandestinas, na sua casa, com o próprio Amílcar Cabral e outros nacionalistas guineenses;  morreria no hospital,, e 1961, na sequência da sua prisão e tortura pela PIDE, em 1961, segundo informação do Leopoldo Amado], está na segunda fila à direita ; à sua frente, o 2º da direita é o Toi Cabral [António da Luz Cabral, irmão de Amílcar Cabral] [3]. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau, entre eles, supomos, o Mário Dias [que não conseguimos ainda identificar, e a quem já pedimos para "validar" esta legendagem...].

O quatro elemento conhecido do grupo [4] é, a contar da esquerda, o Armando Duarte Lopes, o pai do nosso amigo Nelson Herbert, e velha glória do futebol guineense... (Festeve em 1943 no Mindelo, sua terra natal, integrado numa força expedicionária, vinda do continente, que veio reforçar o sistema de defesa da Ilha de São Vicente durante a II Guerra Mundial; viveu depois, trabalhou e casou em Bissau. Conhecido como o Armando 'Bufallo Bill', seu nome de guerra, foi o melhor de futebolista da UDIB, e do Benfica de Bissau, tendo sido nternacional pela selecção da antiga Guiné Portuguesa..).

Recorde-se que o apelido Herbert, no caso do nosso amigo Nelson, antigo jornalista na VOA (Voz da América), vem do  avô materno francês, que foi o representante local, na Guiné, da CFAO - Compagnie Française de l'Afrique Occidentale, fundada em 1887, e  que, com a NOSOCO e  a SCOA,  foi um das peças importantes do do sistema colonial francês.

Foto (e legenda): © Mário Dias (2006) . Todos os direitos reservado. [Edião e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. A NOSOCO eram uma das empresas comerciais, estrangeiras, e nomeadamente de capital francês, que operavam na Guiné. A sua presença já era efetiva em Bissau, desde pelo menos 1915.  (A partir de 1930, passa a fazer parte da multinacional Unilever.)

Outras casas comerciais francesas poderosas era,: (i) a Companhia Francesa da África Ocidental (CFAO); e (ii) a Sociedade Comercial do Oeste Africano (SCOA). Nesta última onde trabalhou o Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC, e o Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (membro da nossa Tabanca Grande). A SCOA foi fundada em 1907 e tinha sede em Paris, e sucursal em Manchester,  agências em Nova Iorque e Casablanca... Objeto da actividade económica: "toutes opérations commerciales, industrielles et financières en Afrique"...

Embora sendo um "filho da Guiné",  Cadogo Pai, nascido em 1929,  foi admitido como de auxiliar de escriturário, em agosto de 1946, na firma francesa, SCOA – Sociedade Comercial do Oeste Africano (proprietária do edifício onde está hoje a Pensão Berta), com várias lojas pela Guiné (Bissau, Bolama, Bissorã…). Foi transferido para Bolama no final do ano. Em 1949, nasceria aí o seu filho, Carlos Gomes Júnior, futuro empresário, dirigente do PAIGC e primeiro ministro. Em 1951 é encarregado, na mesma firma e sente a pressão da concorrência dos encarregados (europeus) das outras casas, e nomeadamente portuguesas: Gouveia, Ultramarina, Pinto Grande, Ernesto Gonçalves de Carvalho, etc.

Nas suas memórias, Cadogo Pai conta que é por essa altura, na 1ª metade da década de 1950, que a SCOA e as outras empresas francesas, NOSOCO e CFAO, começam a sentir restrições na sua atividade comercial, dada a posição monopolista da Casa Gouveia: tendo vocação exportadora, eram "obrigadas a vender os seus produtos à Gouveia" (sic)... Na realidade, a CUF (, através da Casa Gouveia, ) detinha o monopólio da exportação do amendoim da Guiné, até à independência da Guiné-Bissau. (**)

É nessa altura que o Cadogo Pai (que eu conheci pessoalmente em Bissau, em março de 2008)  começa a ponderar a hipótese da demissão e começar a trabalhar por conta própria. O seu chefe, francês, não apoiou logo a ideia; em contrapartida, ter-lhe-á proposto... "uma transferência para Paris, dada a confiança que ganh[ara] em toda a organização, a exemplo de muitos colegas que foram transferidos na altura para Ziguinchor, Dakar, etc." E mais: tê-lo-á avisado que "o vento da independência iniciada nos países vizinhos (Conakry, Senegal, etc.) chegaria à Guiné-Bissau", pelo que , se ficasse na Guiné, iria passar mal, como veio a acontecer... 

O Cadogo Pai irá estabelecer-se  por conta própria em 5 de setembro de 1955. Em contrapartida, não sabemos nem quando nem como os franceses cessaram a sua actividade económica na Guiné... Presumivelmente com a guerra e por causa da guerra, e a consequente quebra (brutal) da produção de oleaginosas, e nomeadamente da "mancarra" (**)


Anúncio comercial reproduzido, com a devida vénia, de Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2. Na foto, o moderno edifício da loja da NOSOCO, em Bissau.

Numa lista, de 18 pp.,  com  mais de 150 empresas coloniais da África Ocidental Francesa (AOF), em 1925, vem a seguinte informação  sobre a NOSOCO, sociedade anónima com um capital de 8 milhões de francos. Dedicava-se à importação e exportação. Na Guiné, tinha sucursais no Cacheu, Bissau e Bolama:

"NOUVELLE SOCIÉTÉ COMMERCIALE AFRICAINE [NOSOCO], 9, cours de Gourgue,
Bordeaux (Gironde). T. 852. Codes: A.B.C. 5e éd., Lieber. Soc. an. au cap. de 8.000.000
de fr. Conseil d'adm.: Prés.: M. Pascal Buhan; MM. Gaston Thubé fils, Amédée Thubé,
adm. Direction: 2, av. de Launay, Nantes (Loire-Inf.). T. 11-49. Ad. t. Nosoco-Nantes.
Comptoirs: Sénégal: Rufisque, Kaolack, Fondiougne; Casamance: Ziguinchor; Bissao
[Bissau]: Cacheo, Bissao, Boulam. Importation et exportation au Sénégal, en Casamance et en Guinée. (2-38657)." 

Vinte e seis anos depois, no anuário de 1951, das 441 empresas coloniais francesas da AOF  + Togo (78 pp.), a situação da NOSOCO já era outra: (i) faz  parte do grupo Unilever (tal como mais outras quatro); (ii) tem sede em Dacar; (iii) continua a ser uma "sociedade anónima"; (iv) o capital social é de 220 milhões de francos CFA; (v) na Guiné Portuguesa (sic), está em Bissau, Bolama, Farim e Bafatá: (v) exporta matérias-primas, importa produtos manufaturados, como qualquer boa empresa colonialista...

"244 — Nouvelle Société commerciale africaine (NOSOCO)[Unilever],
Siège social: 131 [ou 31 ?], boulevard Pinet-Laprade, DAKAR (Sénégal)[= 204] [a mesma sede da Cie du Niger français (C.N.F.)[Unilever]
Capital. — Société anon., 220 millions de fr. C. F. A.
Objet. — Import. et export. au Sénégal, en Casamance et en Guinée portugaise.
Exp. — Arachides, palmistes, caoutchouc, cire, cuirs, gommes, etc.
Imp. — Tissus, riz, huile, sucre, conserves, quincaillerie, épicerie et toutes
marchandises.
Comptoirs. Sénégal: Dakar, Thiés, Diourbel, Fatick, Kaolack;. Foundiougne. —
Casamance: Ziguinchor, Kolda. — Guinée portugaise: Bissao, Boulame, Farim, Bafata.
Conseil. — MM. Arnaud Faure, présid. dél. M. Gérard, G. Rouzaud, Wallerston, L.
Leibosis, admin."

(Fonte: Les Entreprises Coloniales Françaises)

Fotos: © Mário Vasconcelos (2015). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


2. Segundo dados que recolhemos na Net, a NOSOCO foi criada em 1879, no Senegal, tendo-se tornado uma das maiores empresas na área da importação /  exportação. O seu negócio principal será a exportação de oleaginosas... Na Guiné portuguesa, estava em competição com a Casa Gouveia (Grupo CUF) (como vimos, socorrendo-nos das memórias de Cadogo Pai).

A NOCOSO, sociedade anónima,  acabou por se tornar uma filial da ainda mais poderosa UAC - United Africa Company, de origem britânica que, antes da II Guerra Mundial, detinha 40% do total do comércio da África Ocidental, mas já como subsidiária da transnacional Unilever, de capital britânico e holandês. (A UAC, com a crise do capitalismo de 1929, estava à beira da banca rota, sendo então comprada pela Unilever;  seria totalmente absorvida em 1987 pela empresa-mãe, a Unilever,  deixando portanto de ter existência, de facto e de direito).

Será interessante saber que a Unilever  nasce justamente em 1930 através da fusão da Margarine Unie (fabricante holandês de margarina) e da Lever Brothers (fabricante inglês de sopas). É hoje um dos gigantes mundiais do agroalimentar, das bebidas, dos produtos de limpeza e cuidados pessoais... Os "factos" falam por si:  c. 400 marcas, c. 170 mil empregados, c. 52,7 mil milhões de euros de faturação, c. 2,5 mil milhões de clientes... (Como termo de comparação, refira-se o montante das exportações portuguesas em 2016: c. 26,3 mil milhôes de euros, segundo dados da PORDATA).

E tudo (ou quase tudo ou uma grande parte ) começou em África... com o colonialismo europeu. Em África,  que continua pobre e subdesenvolvida...(***) (LG)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de setembro de  2017 > Guiné 61/74 - P17772: Historiografia da presença portuguesa em África (88): Exposição Colonial Internacional de Paris, 1931 (1) (Mário Beja Santos)

(**) Vd. poste de 31 de outubro de 2015 > Guiné 63/74 - P15309: Historiografia da presença portuguesa em África (64): Cem pesos era "manga de patacão" para o camponês guineense, produtor de mancarra... Era por quanto venderia um saco de 100kg ao comerciante intermediário... Em finais de 1965 o governo de Lisboa garante a compra pela metrópole da totalidade da produção exportável da mancarra guineense e fixa o preço por quilo em 3$60 FOB (Free On Board)

Vd. também poste de 7 de janeiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14126: (Ex)citações (258): A prosperidade de Bafatá não se deveu tanto ao "patacão da guerra" como ao negócio da mancarra (Cherno Baldé)

(***) Último poste da série > 17 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17775: Historiografia da presença portuguesa em África (89): Exposição Colonial Portuguesa, Porto, 1934 (2) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Guiné 63/74 - P13312: Manuscritos(s) (Luís Graça) (33): Revisitar Bissau, cidade da I República, pela mão de Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura e urbanismo da época colonial (Parte VI): O novo bairro da Ajuda (1965/68), um "reordenamento" na estrada para o aeroporto...


Guiné-Bissau > Bissau > Localização do bairro da Ajuda, a oeste da cidadezinha colonial do nosso tempo, mais ou menos a seis quilómetros do centro, a caminho de Brá e do aeroporto, que fica a noroeste . Adaptado, com a devida vénia do mapa da Google.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


Guiné-Bissau > Bissau > Planta da cidade, no pós.independência. O bairro da Ajuda fica a seguir Missirá, a noroeste do centro histórico de Bissaum, mais iou menos a meia dúzia de quilómetros. Em frente ao bairro da Ajuda, do lado esquerdo da estrada que liga o centro de Bissau ao Aeroporto ( hoje, avenida Francisco Mendes, que parte do centro urbano). ficava o HM 241,  infelizmente conhecido de alguns de nós. (Antigo Pavilhão  de Tisiologia, depois da independência Hospital 3 de Agosto; foi desenho pelos arquitetos do Gabinete de  Urbanização do Ultramar,  Lucínio Cruz e  Mário de Oliveira (1951/53: fica hoje relativamente perto da Cooperação Portuguesa, e da Universidade Lusófona; em frente ao antigo HM 241, fica a Mesquita, no bairro da Ajuda).



Fonte: © Ana Vaz Milheiro (2012) (Reproduzido com a devida vénia)



1. Manuscrito(s) (Luís Graça)

Nota de leitura >  Ana Vaz Milheiro – Guiné-Bissau: 2011. Lisboa, Circo de ideias, 2012, 52 pp. (Viagens, 5)

Parte VI (*)

Continuação das nossas notas de leitura desta brochura da investigadora e professora do ISCTE -IUL, Ana Vaz Milheiro (que é também crítica do jornal "Público" e que, sabemo-lo, também utilliza
o nosso blogue como fonte de informação e conhecimento, graças ao seu valioso espólio documental sobre a ex-Guiné portuguesa).

Como temos referido em postes anteriores desta série, este livrinho, profusamente ilustrado com fotografias da autora, a cores,  resulta de uma singular viagem à Guiné-Bissau, durante 10 dias, de 2 a 10 de outubro de 2011, .feita por ela e por outro colega arquiteto, bem como pelo  antropólogo  Eduardo Costa Dias, nosso grã-tabanqueiro.

Reproduzimos, com a devida vénia, um excerto de um artigo que a autora publicou no "Público",  que é uma boa síntese da leitura desta cidade lusófona onde foi procurar e estudar a tão esquecida, tão maltratada (e às vezes subvalortizada pelos próprios  portugueses e guineenses) arquitetura colonial, e em particular a do Estado Novo:

(...) "A arquitectura que procurava foi produzida durante o regime do Estado Novo por arquitectos sediados em Lisboa e que trabalham para o Ministério das Colónias (depois de 1951, Ministério do Ultramar) como funcionários públicos. Nomes que raramente se citam e que correspondem a visões mais conservadoras, como João Aguiar, Lucínio Cruz, Eurico Pinto Lopes ou Mário de Oliveira, até aos “quase modernos”, casos de João Simões, Fernando Schiappa de Campos, Luís Possolo, António Seabra, António Sousa Mendes, Emília Caria, António Moreira Veloso, Alfredo Silva e Castro."

Recorde-se que esse Gabinete (originalmente, GUC - Gabinete de Urbanização Colonial) foi criado em 1944 pelo então ministro das colónias, Marcelo Caetano. Mas voltemos à Ana Vaz Milheiro:

(...)" Todos trabalharam para a Guiné. Mas é esta arquitectura, para lá de algumas estruturas fortificadas mais antigas (casos do fortim e Cacheu ou do forte de Amura, em Bissau), do edificado de sabor oitocentista (presente em Bafatá, por exemplo, ou na antiga capital Bolama), e dos equipamentos promovidos pela Primeira República, a expressão dominante.

"Percorrer Bissau, capital desde 1941, é visitar uma cidade jardim africana que mantém intacta a escala doméstica, ou melhor, uma City Garden nos Trópicos. Sucessivos bairros residenciais foram dando à cidade o perfil que hoje ostenta, desde o primeiro bairro de inspiração deco, composto por um conjunto de casas cúbicas para funcionários públicos erguidas antes de 1945, com terraços visitáveis, passando pelas casas construídas pelo arquitecto Paulo Cunha em 1946 (hoje figura quase omitida pela historiografia de arquitectura, mas personagem central na realização do famoso Congresso de 1948), terminando no bairro com casas de dois pisos para os funcionários dos Correios. A cidade é portanto um laboratório de habitação de promoção pública construída entre o final da Segunda Guerra e a década de 1960." (...) 

É bom ler-se e reler-se este parágrafo, sobretudo  aqueles de nós que têm de Bissau, cidadezinha colonial, memórias fragmentadas, umas mais doridas, outras mais  reconfortantes, já que foi para todos nós, ex-combabentes que estiveram no mato, uma placa giratória, um cais de partida, um local de passagem, de lazer, de escape, de "desenfianço", enfim, também um refúgio, "far from the Vietnam", como eu gostava de dizer nos meus escritos da época. Mas o que é que eu conhecia de Bissau ? O que é nós conhecíamos de Bissau ? A zona portuária, a baixa, o Chez Toi, o Pelicano... Fora do alcatrão, o máximo a que nos aventurávamos era o Pilão (Cupelom)... Fiquei lá uma noite e ninguém me cortou o pescoço...

Retomando o artigo da nossa Ana Vaz Milheiro:

(...) "Menos visíveis, porque em zonas periféricas e portanto sujeitas a maiores transformações, são as experiências no domínio da casa para as populações africanas realizadas pelos arquitectos que trabalham a partir de Lisboa e que se iniciam no final dos anos de 1950. Levantamentos sobre a casa guineense, nas suas diversas configurações étnicas, são conhecidos desde 1948. Orlando Ribeiro, em missão geográfica pelo território, em 1947, também se interessou pelo assunto.

"Mas os arquitectos propõem, na sequência dos seus próprios estudos, novos bairros e casas (melhoradas em termos de organização funcional, mas realizadas em sistema de auto-construção). A casa é então, e segundo defendem, um “meio civilizador” e portanto central. Facilmente reconhecível é o bairro de Santa Luzia, uma das primeiras experiências em alojamento para africanos impulsionadas pelo Estado Novo e, mais tarde, o bairro da Ajuda, erguido na década de 60. Este último destina-se aos desalojados do incêndio que, no início de 1965, destrói parte dos assentamentos informais que circundam a capital da Guiné. Em 1968, estão já terminadas 140 casas, ocupando um rectângulo de 300 por 700 metros. É traçado pelos serviços das Obras Públicas guineenses. Os fundos são angariados localmente e os trabalhos contam com o apoio das forças militares que, em plena guerra colonial, procuram cativar as populações." (...) 

[Fonte: Ana Vaz Milheiro: Viagem à arquitectura portuguesa da Guiné-Bissau. Público,  25/11/2012]

Já aqui falámos, em poste anterior, do bairro de Santa Luzia (onde estavam instalados o Quartel General e o a sede das Transmissões; as instalações do QG dariam  depois lugar, no pós-independência,  ao Hotel 24 de Setembro) (ª)... Já o bairro da Ajuda era, segundo penso,  menos conhecido de (e frequentado por) pela malta da tropa... Daí que valha a pena, reproduzir na íntegra a curta informação, telegráfica, que nos dá a nossa cicerone, a páginas 24 do seu caderno de viagem:



[Fonte: Ana Vaz Milheiro – Guiné-Bissau: 2011. Lisboa: Circo de ideias. 2012, p. 24. Reproduzido com a devida vénia...]


Informações a reforçar: (i) o  planeamento  do bairro da Ajuda  já não é da responsabilidade do Gabinete de Urbanização do Ultramar, sediado em Lsiboa, mas sim das Obras Públicas locais; e (ii) os trabalhos de construção têm o apoio dos militares... Estamos no ínício da "acção psico-social" e dos reordenamentos das populações, no interiro da Guiné, que vão contar com o apoio técnico e logístico do famoso BENG 447... Mas em 1966 discutia-se, na Câmara de Bissau, a hipótese de mandar arrasar e reordenar o famigerado Cupelom, suspeito de ser um "ninho de terroristas" (***)...

O nosso amigo e irmãozinho Cherno Baldé ligou, em tempos,  o nome do administrador Guerra Ribeiro (de seu nome completo Manuel da Trindade Guerra Ribeiro, que foi igualmente administrador de Bafatá, antes de o ser de Bissau) "à construção do Bairro-de-Ajuda, o único bairro digno deste nome na periferia da antiga Bissau construído na base de trabalho obrigatório" (****). De qualquer modo, antes do bairro da Ajuda, já aqui  foi referido o bairro, mais antigo, de Santa Luzia. É de 1948, ao tempo do Sarmento Rodrigues.
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Notas do editor:

(*) Vd., poste anteriro da série > 31 de maio de  2014 >  Guiné 63/74 - P13217: Manuscrito(s) (Luís Graça (31): Revisitar Bissau, cidade da I República, pela mão de Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura e urbanismo da época colonial (Parte V): O bairro de Santa Luzia, de 1948: uma das nossas primeiras experiências de alojamento para populações nativas

Último poste da série > 12 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13271: Manuscrito(s) (Luís Graça) (32): Estavam lindos os jacarandás quando deixei Lisboa... (Luís Graça)


(...) O Guerra Ribeiro, Administrador da Circunscrição, depois Conselho de Bafatá nos anos 60, era o terror dos nativos "indígenas" que viviam nos arredores ou visitavam a cidade, por força de uma medida administrativa que mandava prender e açoitar todos os nativos que nela entrassem de pés descalços.

A medida era inédita, controversa e paradoxal, porque no seu ambiente natural, salvo raras excepções (personalidades politicas ou religiosas), o nativo guineense, em geral, não usava sapatos no seu dia-a-dia e, também na fase inicial da colonização, o uso de sapatos entre o "gentio" ou era mal visto ou simplesmente proibido pela administração.

E, de repente, nos anos 60, o Administrador de Bafatá confundiu a mentalidade dos nativos com esta medida que intrigava muita gente e teria sido motivo para o surgimento de casos caricatos que ainda hoje se contam e são motivo de divertidas gargalhadas.

Com esta medida histórica, quem tivesse que passar por Bafatá, por qualquer motivo, sabia de antemão ao que era obrigado, mesmo que, por isso, tivesse que arrastar os pés ou andar como um coxo, porque os cipaios de Guerra Ribeiro estavam lá para fazer cumprir a ordem.

Assim, na região de Bafatá a história do uso de sapatos está intimamente ligada ao nome de Guerra Ribeiro, e a maioria dessas pessoas compravam o seu par de sapatos exclusivamente para satisfazer o Senhor Administrador de Bafatá.

O nome de Guerra Ribeiro está também ligado a construção do Bairro-de-Ajuda, o unico Bairro digno deste nome na periferia da antiga Bissau construido na base de trabalho obrigatório.

É por estas e outras coisas que, hoje, face a situação actual do pais, muita gente questiona (em especial os mais velhos) se não era melhor manter a ordem e a disciplina coloniais.

Um abraço amigo, Cherno Baldé (...)

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11899: Notas de leitura (507): Memórias de Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Abril de 2013:

Queridos amigos,
Numa dessas visitas que tenho feito assiduamente à Biblioteca da Liga dos Combatentes, deparou-se-me este documento que me pareceu ter o maior interesse como registo de um velho combatente, pai do primeiro ministro deposto pela ditadura militar, em 2012.
É um documento muito incompleto, seguramente a recolha destas memórias não foi feita em bom português, há saltos óbvios, hiatos desconcertantes, bom seria que estudiosos como Leopoldo Amado ou Julião Soares Sousa se pronunciassem sobre a importância deste testemunho.

Um abraço do
Mário


Memórias de Carlos Domingos Gomes 
(Cadogo Pai)

Beja Santos

Cadogo Pai resolveu passar a escrito as suas memórias. Nascido em 1929, começou como paquete no escritório da família Barbosa, junto do Grande Hotel. Com ambições e desejoso de outro futuro, foi trabalhar na SCOA (proprietária do edifício onde está instalada a Pensão Central), foi depois transferido para Bolama e mais tarde regressou a Bissau como chefe de loja, voltando de novo a Bolama em 1951. Diz ter sido em Bolama que conheceu Aristides Pereira, formou-se um grupo de que faziam também parte Adelino Gomes, Alfredo Fortes, Barcelos de Lima e Alcibíades Tolentino.

Recorda os primeiros contactos com Amílcar Cabral e as personalidades daqueles que pretenderam pôr de pé a Associação Recreativa Cultural e Desportiva, desde os professores Adriano Pires, José Moreira e Pio Mendonça, os advogados Jorge Tavares e Sousa e Artur Augusto Silva, destacando a mulher deste, Clara Schwarz, que ele trata como a mãe dos estudantes, até o médico Ciro de Andrade que ele trata por médico dos reclusos. A associação foi proibida, os nacionalistas voltaram-se para o futebol. Considera que na época (anos 1950) as autoridades portuguesas teriam acirrado as rivalidades entre guineenses e cabo-verdianos, dando a estes bons empregos e melhores salários.

Os encontros clandestinos ocorriam no quarto de Elisée Turpin e mais tarde na messe do BNU. E presta mais esclarecimentos: “A primeira reunião de Amílcar Cabral com guineenses e cabo-verdianos realizou-se na antiga granja de Pessubé, estava acompanhado do seu fiel companheiro Bacar Cassamá”. Em Setembro de 1955, Cadogo estabeleceu-se por conta própria. Dá como seguro a realização da fundação do PAIGC a 19 de Setembro de 1956, numa moradia da rua Severino Gomes de Pina, tendo estado presentes Amílcar Cabral, Luís Cabral, Aristides Pereira, Fernando Fortes, Inácio Júlio Semedo e Elisée Turpin: “O documento elaborado tinha 8 artigos, o terceiro dizia que o partido trabalhava no sentido de unir todos os africanos de todas as etnias e de todas as camadas sociais, constava da primeira edição do jornal Nô Pintcha, artigo que mandei publicar, citei o artigo mencionado, para esclarecer desde quando tinha ligações com o PAIGC, isto quando o Luís Cabral tentou impedir a minha candidatura às primeiras eleições legislativas realizadas em Bissau, após a independência. Esta declaração provocou interesse a Vasco Cabral que não me largou até eu lhe fornecer, e ao camarada Nino Vieira, o texto completo do documento”. Cadogo diz ter viajado para Portugal em Junho de 1960 porque corria enorme risco de ser preso, fora colocado na lista de suspeitos. Regressa a Bissau em Novembro desse ano, já havia notícias de prisões e mortes de presos em Tite. Recorda o reencontro com Aristides Pereira em Madina do Boé, na altura da comemoração do primeiro aniversário da independência.

Os contactos clandestinos prosseguiam em 1960, Cadogo desenvolvia a sua vida empresarial e refere mais nomes que se juntaram às reuniões, muitas vezes a coberto de jantares e festas: Armando Lobo de Pina, Domingos Maria Deybs, Aguinaldo Paquete. Dá-se então a prisão de Júlio Pereira, em Farim, a seguir a uma granada atirada a um ajuntamento numa festa de tambores em Farim: “Sovado que nem um animal e obrigado numa cela a lutar com um companheiro até à morte”. Embora vereador da Câmara Municipal de Bissau, Cadogo já é alvo de suspeitas. As pressões não pararam de crescer, pretendiam que ele fosse numa delegação a Lisboa numa manifestação de apoio a Salazar, recusou a missão. As prisões sucedem-se, António Carvalho veio dar-lhe a notícia da prisão de Pedro Pinto Pereira e de que a seguir ele estava na Lista. Mas quem foi preso foi João Vaz, isto perto do fim de ano de 1966. Cadogo e mais quatro foram presos em 17 de Janeiro de 1967, e brutalmente espancado. Pede a presença de um advogado, o alferes miliciano Biscaia Pereira e mais adiante escreve: “Os autores do inferno das prisões em Bissau, a começar por Guerra Ribeiro, tenente Castro e outros, começaram a ser afastados de Bissau (…) É altura de destacar a humanidade de certos elementos da PIDE que contribuíram para me salvar a vida, caso do chefe Figueiredo e do agente Silva. Destaco o comportamento do Dr. Biscaia Pereira, que fez tudo para a minha libertação, e o perigo que correu de vir a Bissau defender a minha causa, sem cobrar absolutamente nada. Razões porque, amainamos ódios, porque entre os maus vislumbrei rasgos de humanidade, de pessoas que cumpriam as missões que eram obrigados mas contra o regime colonial e torturas a que fomos sujeitos”.

Combalido, obtém do cardiologista Dr. Diaz um atestado para se deslocar com caráter de urgência a Portugal para fazer exames médicos. É nisto que ocorre o 25 de Abril de 1974. Em 1977, voltou a ser preso, por ter contestado as eleições então realizadas. Preso duas vezes em 1989 e enumera os dados do processo, pedindo a recuperação dos seus bens.

Não se sabe como estas memórias aparecem incluídas no simpósio internacional “Recordar Guileje”, que se realizou em Março de 2008. Trata-se de um documento que encontrei na Biblioteca da Liga dos Combatentes, obviamente um testemunho importante que nos faz pensar quantos outros se têm extraviado ou andarão esquecidos no pó das estantes. Interessava cruzar esta informação com muita outra (por exemplo, os testemunhos coligidos por Leopoldo Amado no livro que preparou sobre Aristides Pereira); não se fica a perceber como é que um membro do Conselho de Estado e galardoado com a medalha de Combatente da Liberdade da Pátria foi preso várias vezes depois da independência.

Dou comigo muitas vezes a pensar como é que os historiadores guineenses vão conseguir obter quadros históricos rigorosos, já nas próximas gerações, com tanta documentação malbaratada, tantos testemunhos inconclusivos e não sujeitos ao contraditório, isto para já não falar em documentos fundamentais que foram habilmente sonegados, caso do julgamento dos incriminados pelo assassinato de Amílcar Cabral, de que não resta um só testemunho escrito ou registo em bobine.
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Notas do editor

Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai) é membro da nossa Tabanca Grande e já viu publicadas as suas memórias nos postes de:

30 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6807: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (1): Encarregado de uma empresa francesa, em Bissau e depois Bolama (1946-1951)

2 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6815: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (2): A elite guineense nos anos 50

5 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6828: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (3): Estabelecido por conta própria em 1955

8 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6836: Memórias de Um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (4): Casado em 1956, vereador em 1957, em Bolama, regressa a Bissau em Novembro de 1960, como convicto nacionalista

10 DE AGOSTO DE 2010 > GUINÉ 63/74 - P6843: MEMÓRIAS DE UM COMBATENTE DA LIBERDADE DA PÁTRIA, CARLOS DOMINGOS GOMES, CADOGO PAI (5): JÚLIO PEREIRA, PRESO, TORTURADO E MORTO NA PRISÃO PELA PIDE, SUSPEITO DE ESTAR POR DETRÁS DOS GRAVES ACONTECIMENTOS DE FARIM, EM 1/11/1965

13 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6848. Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (6): 1966, o ano das prov(oc)ações

16 DE AGOSTO DE 2010 > Guiné 63/74 - P6856: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (Fim): Prisão e tortura pela PIDE em 1967, libertação no tempo de Spínola em 1968, refúgio em Portugal em 1973 e regresso ao país depois do 25 de Abril de 1974

Último poste da série de 29 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11880: Notas de leitura (506): A imprensa esquerdista e a luta anticolonial: A Guiné (Mário Beja Santos)

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6856: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (Fim): Prisão e tortura pela PIDE em 1967, libertação no tempo de Spínola em 1968, refúgio em Portugal em 1973 e regresso ao país depois do 25 de Abril de 1974

Publicação da sétima e última parte das memórias de Cadogo Pai (*)... O documento, de 26 páginas, que o autor me facultou um exemplar, em Bissau, em Março de 2008,  tem por título: Memória de Carlos Domingos Gomes, Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Mobilização e Luta da Libertação Nacional. Recordar Guiledje, Simposium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008.

A partir de hoje, o empresário e nacionalista Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai, pai do actual 1º Ministro da Guiné-Bissau, Carlos Gomes Júnior, também conhecido por Cadogo Júnior, nascido em Bolama, em 1949) passa a integrar a nossa Tabanca Grande. Desejamos-lhe muita saúde e longa vida. E estamos-lhe gratos por nos ter disponibilizado o texto policopiado  com as suas memórias que vão de 1946 até 1974. Cadogo Pai nasceu em 1929, terá portanto 81 anos. Foi conselheiro de Estado no tempo de 'Nino' Vieira. Teve também funções governativas antes do golpe de Estado do 1998 (L.G.)

Parte II (pp. 13-17)

Num belo domingo à tarde, numa visita a casa de uma amiga no Bairro da Ajuda, a Dona Micteia, encontrei dois amigos, Eugénio Peralta e Valdemar Oliveira. À chegada encontrei-os na rua. Um deles disparou-me:
- Já sabe que prenderam o Pipi Pereira ? - respondi, dizendo que sabia. Informaram-me que foi preso de madrugada. Sem resposta mais a dar, traí-me de emoção, disparei para casa do Sr. João Vaz, para obter a confirmação. Bati à porta, ele saiu e confirmou-me a notícia da prisão do nosso companheiro Pedro Pinto Pereira, dando-me a notícia de que a seguir seríamos nós. Ele, João Vaz, eu e António Augusto Carvalho (ANCAR).

24. Tudo aconteceu no domingo. No dia seguinte, segunda-feira, encontrei o nosso companheiro António Carvalho, dei-lhe a notícia da prisão do Pedro Pinto Pereira, e a informação que tinha, que a seguir seríamos nós. Alarmou-se, foi informar a esposa, uma senhora portuguesa. Sem controlo, decidiram ir pedir protecção ao Sr. Tenente Castro, que era elemento ligado à PIDE. Este levou-os à PIDE para serem ouvidos em declarações, o que nos complicou a vida a todos após as declarações prestadas.

25. O Sr. António Carvalho, reconheço que não tinha intenção de me prejudicar, porque a seguir às suas declarações, veio-me avisar que eu seria chamado para ser ouvido em declarações. Só que ele não sabia, por motivos de segurança como já disse, cada um só sabia os contactos que tinha. Eu não podia ser ouvido, sem avisar o João Vaz e ele aos que ele sabia dos seus contactos.

26. Informei a minha mulher da situação e da aflição que tinha de contactar os companheiros dos meus contactos. Que tinha de partir de João Vaz ou de um deles. Sugeriu-me sair à rua. Deparei por sorte com o Sr. Armando Lobo de Pina, de passagem, vindo do serviço da [Casa] Ultramarina onde era empregado. Informei-o da situação e da urgência de contactos com os companheiros e da resposta. Aconselhou-me, cerca das 11h45, para estar à porta, que estaria de passagem. Assim aconteceu, a senha foi para eu suportar tudo e não mencionar nomes, porque seria perigoso. Aceitei porque eram muito graves as declarações do Sr. António Carvalho, comprometiam altas figuras que não nos convinham que fossem figuras tocadas, caso do  Mário Lima, Artur Augusto Silva [, pai do nosso nosso amigo Pepito, preso pela PIDE em 1966, no aeroporto de Lisboa, encarcerado na Prisão de Caxias durante 5 meses sem culpa formado, libertado por influência de Marcelo Caetano, impedido de regressar à Guiné], Severino Gomes de Pina, etc.

27. Eram 15 horas e mais alguma coisa, apareceram dois agentes da PIDE, abordaram-me, que me me queriam falar, disponibilizei-me, mas deram-me a entender que não era no meu escritório, mas sim lá em cima. Quando perguntei em cima, aonde, virou a gola da camisa, um deles, de nome Silva, para me mostrar o distintivo da PIDE. Foi assim que se deu início ao que iria ser a prisão do nosso alargado grupo, alguns dos quais só na prisão viríamos a conhecer.

28. A seguir à prisão do Pedro Pinto Pereira, prenderam o João Vaz, deixando todos alarmados, a aguardar os acontecimentos, cada um nas suas ocupações. Deram-nos o tempo de passar as festas de Natal e Novo Ano, eram fins do ano de 1966.

29. Já em 1967, certo domingo, dia 16, estava eu de volta das obras das minhas actuais instalações, apareceu-me o Sr. Domingos Maria Deybs, com um jornal na mão, a anunciar um convite para almoço de confraternização dos amigos do Inspector da PIDE. Perguntou-me se eu ia tomar parte no almoço. Naturalmente a minha resposta foi desabrida, a perguntar a que título iria tomar parte em tal almoço!!!

Afinal era a senha, o mesmo aparato de força ocorreu com os companheiros a seguir citados e, a partir do nosso mesmo conterrâneo, contactou os camaradas: Armando Lobo de Pina, Elisée Turpin, Milton Pereira de Borja, Lindolfo, ex-empregado de Mário Lima Wanon. Assim fomos todos presos na madrugada do dia 17 de Janeiro de 1967, os quatro camaradas contactados e comigo cinco prisões.








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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste anterior:

13 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6848. Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (6): 1966, o ano das prov(oc)ações