sexta-feira, 7 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22177: In Memoriam (393): Carlos Domingos Gomes, "Cadogo Pai" (Bolama 1929 - Coimbra, 2021), membro da nossa Tabanca Grande desde 2010

 

Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai) (1929-2021). 

Foto:cortesia de ANG - Agência de Noticias da Guiné


Cópia do texto, de 26 páginas,  que foi me entregue em 7 de março de 2008, em Bissau, pelo próprio autor, no final do Simposium Internacional de Guildje (Bissau, 1-7 de março de 2008). Está dividido em duas partes, com numeração autónoma: 1ª parte (9 pp.): Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai, Galardoado com a Medalha de Combatente da Liberdade da Pátria: Registos da História da Luta de Libertação Nacional. Guiledje, Simpósium Internacional, Bissau, 1 a 7 de Março de 2008; a II parte (17 pp): Simpósium Internacional, História da Mobilização da Luta da Libertação Nacional: Memórias de Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai.



1. Acabamos de saber, pelas redes sociais e agências notíciosas, da morte de Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai), ocorrida anteontem por volta das 23 horas, em Coimbra, vitima de doença prolongada.

Era pai de Carlos Gomes Júnior (Cadogo Júnior), talvez o mais conhecido dos empresários guineenses e antigo 1º primeiro-ministro, bem como presidente  do PAIGC, ao tempo de 'Nino' Vieira.

Reproduz-se aqui a notícia da ANG:

Bissau,06 Mai 21(ANG) - O empresário Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai), faleceu quarta-feira por volta das 23 horas, em Coimbra(Portugal), vitima de doença prolongada.

Cadogo Pai como é vulgarmente conhecido, é pai do antigo 1º Ministro da Guiné-Bissau, Carlos Gomes Júnior, também conhecido por Cadogo Júnior, nascido em Bolama em 1929.

Segundo os dados fornecidos à ANG pela família, Carlos Domingos Gomes começou a  actividade empresarial como Paquete no escritório da família Barbosa, junto ao Grande Hotel. Com ambições e desejoso de ter outro futuro, foi trabalhar na SCOA (proprietária do edifício onde está instalada a Pensão Central), foi depois transferido para Bolama e mais tarde regressou à Bissau como chefe de loja, antes de voltar para Bolama em 1951.

Em 1967,Carlos Domingos Gomes, sofre a prisão e tortura pela PIDE e foi libertado no tempo de Spínola em 1968, tendo depois se refugiado em Portugal, em 1973 e regressado ao país depois do 25 de Abril de 1974.

Depois da independência do país, Cadogo Pai continuou a sua actividade empresarial tendo criado a Loja Abelha Mestra, que dedicava ao comercio geral e venda de vinhos em divisas.

Posteriormente veio a criar nova empresa denominada de Carlos Gomes & Filhos que igualmente dedicava ao comércio geral import e export.

Carlos Domingos Gomes foi acionista do Banco Internacional da Guiné-Bissau(BIGB), e um dos accionistas fundador do Banco de África Ocidental (BAO), e também accionista do Banco Panafricano (Ecobank).

No domínio político, o malogrado foi candidato as eleições presidenciais de 1994, onde tinha como adversários João Bernardo Vieira (Nino) e Kumba Yalá.

Em 1999 foi nomeado Ministro de Justiça e Poder Local, no governo de Unidade Nacional liderado pelo Francisco José Fadul ,depois do conflito político militar de 7 de junho de 1998.

Durante o período de conflito político militar de 7 de junho que durou 11 meses, o falecido empresário Carlos Domingos Gomes juntamente com o Bispo Don Setímio Artur Farazeta, se destacaram como ativista que trabalharam afincadamente na busca da paz e reconciliação entre as partes envolvidas no conflito. (...)


2. Era membro da nossa Tabanca Grande, desde 16 de agosto de 2010, com cerca de dezena e meia de referências no nosso blogue.  Conheci-o em Bissau, no decurso do Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008).

Estava ainda no poder o ‘Nino’ Veira. Era presidente do PAIGC o seu filho Carlos Gomes Júnior (também conhecido na sua terra como Cadogo Júnior), e que chegou a ser considerado como delfim do próprio ‘Nino’ Vieira até ao conflito de 1998. Dez meses depois do Simpósio, o filho de Carlos Domingos Gomes, no final desse ano, seria indigitado para o cargo de Primeiro-Ministro,

Tal como o pai, o Carlos Gomes Júnior nasceu em Bolama em 1949. Sabemos que, antes de entrar na política, e chegar a dirigente máximo do PAIGC, foi um empresário e gestor de sucesso. Não participou na luta armada como combatente.

Já o pai, o Cadogo Pai, em contrapartida, reclamava-se da condição de Combatente da Liberdade da Pátria, sem todavia nunca ter pertencido ao PAIGC, e muito menos combatido na guerrilha. 

Considerava-se um  nacionalista, embora tenha colaborado com o poder colonial, como autarca (em Bolama e depois em Bissau), o que lhe trouxe alguns alguns amargos de boca nos primeiros tempos, após a independência. Dizia-se amigo de Aristides Pereira. Em contrapartida, teve problemas com Luís Cabral que “tentou impedir a minha candidatura às primeiras eleições legislativas realizadas em Bissau, após a Independência” (1ª Parte, p. 2).

Publiquei aqui, em 2010,  a sua  história de vida, a partir de um texto autobiográfico, policopiado, de que ele me ofereceu uma cópia autografada (*). Conheci-o por acaso, na sala de conferências do hotel onde estava a realizar-se o Simpósio. Na mesma altura conheci o Joseph Turpin, o sobrinho do Élisee Turpin, esse sim um histórico do PAIGC.
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O Simpósio Internacional de Guiledje  terá sido um bom pretexto para o Cadogo Pai escrever, eventualmente retocar e sobretudo divulgar as suas memórias, quer como cidadão quer como empresário, balizadas entre os anos de 1946 e 1974. Mas nem toda a gente o levava muito a sério, em 2008, em Bissau.
 
3. Recordemos aqui alguns marcos da sua história, de acordo com a sua narrativa autobiográfica (*):

(i) em 1946, aos 17 anos (nasceu portanto em 1929), o autor era “paquete de escritório da família Barbosa, junto do Grande Hotel”; ganhava 120 escudos de salário mensal, essa família Barbosa incluía Antoninho Barbosa e César Barbosa, tios do Caló Capé.

(ii) achando que não era lugar de (ou com) futuro, candidatou-se a (e ganhou) o lugar de auxiliar de escriturário numa firma francesa, a SCOA – Sociedade Comercial do Oeste Africano,  com várias lojas espalhadas pela Guiné de então (Bissau, Bolama, Bissorã…);

(iii) está-se em agosto de 1946, a escrituração das receitas da loja era feita em francês, língua que ele não dominava, mas iria contar com a ajuda (inesperada) do empregado que fora substituir, nada menos que o José Costa, colega de escola, entretanto transferido para Bissorã;

(iv) ele próprio, Cadogo,  será transferido, meses depois, a 24 de dezembro de 1946, para Bolama; em Bissau ganhava 250 escudos. wm Bolama, passou a ganhar 300, “quantia exígua para tomar conta da minha vida” (1ª Parte, p. 3);

(v) fica em Bolama três anos; em 26 de Dezembro de 1949 é convidado “para vir ocupar o posto de chefia da loja nº 2 em Bissau”, enquanto o José Costa, regressado de Bissorã, chefia a loja nº 1;

(vi) tinha 20 anos, “ainda era menor”, só fazendo os 21 em Maio de 1950; é  em Bolama que nasce o seu filho, futuro 1º ministro, em 19 de Dezembro de 1949;

(vi) volta a Bolama, em Março de 1951, como chefe operacional da mesma empresa, a Sociedade Comercial Oeste Africana (onde trabalhou como contabilista, de 1942 a 1956, Elisée Turpin, um dos fundadores do PAIGC).

(vii) foi e  Bolama que conheceu "o camarada Aristides Pereira",  pessoa que ele descreve como "muito reservada"; tem uma tertúlia de que fazem parte, a
lém de Artistides Pereira, Alcebíades Tolentino, Barcelos de Lima, Adelino Gomes e Afredo Fortes; falava-se de tudo, “mas sobre a política africana nada"  (1ª Parte, p. 4);

(viii) é em Bolama que passa a ter "consciência política",  e se torna   um nacionalista, próximo do PAIGC;

 (ix) sera através do  Elisée Turpin, seu colega em Bissau, que lhe chegavam a Bolama as notícias das primeiras “movimentações”, de “cariz político”, que surgiam em Bissau. 

(x) é por essa altura, na 1ª metade da década de 1950, que a SCOA e as outras empresas francesas, NOSOCO e CFAO, começam a sentir restrições na sua atividade comercial, dada a posição monopolista da Casa Gouveia: tendo vocação exportadora, eram "obrigadas a vender os seus produtos à Gouveia" (sic); naa realidade, a CUF (, através da Casa Gouveia, ) detinha o monopólio da exportação do amendoim da Guiné, até à independência da Guiné-Bissau;

(xi) é também  nessa altura que o Cadogo Pai  começa a ponderar a hipótese da demissão e começar a trabalhar por conta própria. o  seu chefe, francês, não apoiou logo a ideia; em contrapartida, ter-lhe-á proposto "uma transferência para Paris, dada a confiança que ganh[ara] em toda a organização, a exemplo de muitos colegas que foram transferidos na altura para Ziguinchor, Dakar, etc."; e, mais: tê-lo-á avisado que "o vento da independência iniciada nos países vizinhos (Conakry, Senegal, etc.) chegaria à Guiné-Bissau", pelo que , se ficasse na Guiné, iria passar mal, como veio a acontecer...

(xii) estabelece-se por conta própria em 5 de setembro de 1955;

(xiii)  casa-se em 1956 e em 1957 é eleito vereador da Câmara Municipal de Bolama, "palco dos meus primeiros confrontos com o poder colonial, que marcaram bem a minha vida de luta e experiência";

(xiv) diz que  não completou o mandato, "porque começou a repressão colonial, após a fundação do PAIGC a 19/9/1956 e os acontecimentos de 3 de Agosto de 1959 no Cais do Pinjiguiti", obrigando-a refugiar-se por uns tempos  em  Portugal  entre junho e novembro de de 1960;

(xv) instala-se em Bissau e  é vereador da Câmara Municipal de Bissau, "com o velho companheiro Benjamim Correia, Dr. Armando Pereira e Lauride Bela"; era presidente o major Matos Guerra;

(xvi) é preso,pela primeira vez pela PIDE em 17 de janeiro de 1967, ao tempo do governador Arnaldo Schulz; depois de libertado no tempo de Spínola em 1968, refugia-se em Portugal em 1973 e só regressa ao  país depois do 25 de Abril de 1974. (*)

Sem ter sido uma figura de primeiro plano na história recente da Guiné-Bissau, "Cadogo Pai" deverá ser lembrado, em todo o caso,  como um nacionalista, um cidadão e um empresário cuja experiência, saber e exemplo devem inspirar as gerações mais novas. (**)

Ao filho, Carlos Gomes Júnior  (que conheci, se não erro,  no funeral da mãe do Pepito,  a dra. Clara Schwarz, em 2016) e demais  família e amigos mais próximos, em nome pessoal e em nome da Tabanca Grande, apresento sentido pêsames. 

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 16 de agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6856: Memórias de um Combatente da Liberdade da Pátria, Carlos Domingos Gomes, Cadogo Pai (Fim): Prisão e tortura pela PIDE em 1967, libertação no tempo de Spínola em 1968, refúgio em Portugal em 1973 e regresso ao país depois do 25 de Abril de 1974

 (**) 29 de abril de 2021 > Guiné 61/74 - P22152: In Memoriam (392): Claúdio Ferreira (1950-2021), ex-fur mil art, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1971/74)... Passa a integrar, a título póstumo, a Tabanca Grande, sob o nº 840 (Jorge Araújo)

5 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Não mais vi (nem falei com), depois de 7 de março de 2008, o Carlos Domingos Gomes. Naturalmente, respeito a sua memória. Morre,de resto, com uma bela idade, iria fazer 92 anos como o meu pai, Luís Henriques (mais velho 9 anos).

E morreu, segundo creio, num hospital do nosso Serviço Nacional de Saúde, em Coimbra. Seundo os jornais, Portugal tratou 8.344 doentes oriundos dos PALOP em quatro anos, entre 2016 e 2019, a maioria da Guiné-Bissau. ( O título é do "Observador", 27 set 2020.)

Ainda há dias, no IPO-Lisboa, estava ao meu lado, em tratamento, o Jol, um manjaco de sessenta e tal anos, oriundo da região de Canchungo: tinha um cancro na boca, estava a fazer radioterapia... Ainda bem que há acordos de cooperação na área da saúde entre Portugal e outros PALOP. Isso significa, em muitos casos, a diferença entre a vida e a morte.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, no caso das nossas lavadeiras, à luz da legislação do trabalho de hoje, ainda arrotavas com a acusação de "exploração do trabalho infantil"... Boa parte das lavadeiras eram menores... Imagina o que é dares à manivela da máquina da História, pô-la a correr para trás... Se fôssemos julgados por estes e outros crimes do "colonialisnmo português", não nos chegavam sete vidas....

Antº Rosinha disse...

As gerações de Carlos Gomes, pai e filho, que tenham feito parte de familiares de políticos e/ou governantes guineenses, a maioria tinham passaporte e BI de portugueses tal como qualquer lisboeta ou algarvio, com acesso natural ao serviço do SNS.

A maioria tem residência em Portugal sem deixarem de residir na Guiné.

Não precisam do apoio da cooperação, da cooperação apenas precisa o povinho.

Há mais cidadãos portugueses espalhados pelo mundo do que aqueles que aparecemos no dia a dia.

Ainda recentemente as autoridades no aeroporto (jornais) tratavam um cidadão português como se fosse moçambicano.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tens razão, Rosinha, a elite dos PALOP movimenta-se aqui com toda a à-vontade, tem cá casas, parentes, etc. E não me refiro só à elite política, mas também profissional (empresários, médicos, advogados, professores universitários, etc.).

Antº Rosinha disse...

Sendo que no caso de certos guineenses e de casamance (senegal) aproveitam para usar também a nacionalidade francesa simultaneamente, e «a gosto».

A Europa em geral e a França em particular vai ser diluída, vai ser uma sinfonia, vai ser «aquilo-que-deus-quiser», porque o original vai ficar em minoria e pouco ficará como dantes.

Do original o que ficará? que fique o melhor.

A Inglaterra bem tenta afastar-se da Europa!