sábado, 8 de maio de 2021

Guiné 61/74 - P22183: 17º aniversário do nosso blogue (7): a lavadeira de sobretudo (Jorge Cabral)


Capa do livro de Jorge Cabral, "Estórias Cabralianas", vol I.
Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp. 
O livro está à venda na Livraria Leituria (Rua José Estêvão, 45 A, 
Pascoal de Melo / Jardim Constantino, Lisboa). Preço de capa: 10 €. 
Mas também podem encomendar ao autor pelo email: 
almacabral@gmail.com


O impagável e inimitável "alfero Cabral"...


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1  (Bambadinca( > Fá Mandinga > Pel CCaç Nat 63 > 1970 > O "alfero Cabral", bendito entre as bajudas mandingas...

Fotos (e legenda): © Jorge Cabral (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Camaradas: Vocês estão a imaginar alguém vestido de sobretudo, na Guiné, há meio século atrás ? Eu nunca vi ninguém. Estupidamente, comprei um blusão de couro, no Casão Militar, a pensar nas noites frias de dezembro, nos mosquitos, nas sezões,  nos dilúvios tropicais e nos mil e uma intempéries, contratempos e  partidas que aquela terra podia pregar a um "tuga"... 

Qual quê ?!... Nunca usei o pesado blusão que me custou os olhos da cara... nem as botifarras que mandei fazer de cano alto, até ao joelho, para atravessar as bolanhas e proteger-me das sanguessugas, das cobras e dos crocodilos!...

Mas admito que tenha havido gente que levou smoking, sobretudo, gabardine, fato completo, camisas de seda, coleções de gravatas... Na realidade, tratava-se de uma (co)missão, em terras da Guiné, ao serviço da Pátria!... E terá havido, por certo, quem tenha levado enxoval completo...

Vem isto a propósito do já estafado tema das nossas queridas lavadeiras... e sobretudo desta outra deliciosa e terna estória do impagável e inimitável  "alfero Cabral". 

Confesso que nunca o vi à civil (, eu fui seu contemporâneo e vizinho), pelo que não deveria gastar muita roupa, para além da farda... (Alinhámos em várias operações, ele, com o seu valoroso Pel Caç Nat 63 e eu com os meus briosos e leais fulas da CCAÇ 12). E, nos destacamentos onde esteve  (e de que era o comandante, a saber, Fá Mandinga e Missirá, a norte de Bambadinca, ma margem direita do Rio Geba Estreito), era habitual andar de "tanga" (ou melhor, só com uma toalha à volta da cintura), e o corpo coberto de amuletos, ... 

E, no entanto, ele tinha lavadeira a quem pagava para lavar, de vez em quando..., o "sobretudo"!... Imaginem, o "sobretudo"?!...

E por estas e por outras que o "Caco Baldé" um dia lhe terá passado um atestado de... "apanhado do clima"... Com um atestado destes, o "alfero Cabral" ficou acima ou à margem do RDM - Regulamento de Disciplina Militar... E  o mais incrível é que, no fim da (co)missão, foi louvado. 

E agora, só ao fim destes anos todos, é que eu percebo porquê (, confesso que sou de compreensão lenta, nestas matérias): o "alfero Cabral" pôs a paixão da Pátria acima da paixão da sua querida mas pérfida lavadeira, a Modji Daaba, que fugiu  para o Xime, depois de falhado o plano que arquitetara para se desembaraçar do seu velho marido, sob a acusação de ser "turra", e poder lançar-se nos braços do seu "grande amor", o "alfero Cabral", de "olho grosso"... 

Digam lá, caros leitores,  se, em Hollywood, isto não daria um grande filme, um grande "thriller" ?!... E, mais, é uma história que acaba por resgatar a honra daqueles pobres "tugas" que,  não se tendo na altura comportado como honrados portugueses e impolutos militares, hoje seriam acusados, julgados e condenados por assédio sexual, se os usos e costumes e as leis tivessem efeito retroativo... Sim, porque "na guerra, não pode haver amor, só abuso"!...

Mais: esta  é uma história (*) que merece ser revisitada, no 17º aniversário do nosso blogue (**), e dada a conhecer aos mais novos, que nunca ouviram falar de guerra colonial / guerra do ultramar, nem do abuso do amor em tempo de guerra... nem fazem a mínima ideia onde fica a Guiné-Bissau.  (E será que têm de saber de ética, de história e de geografia e de outras tretas ?!...)(LG)

PS - Para quem só agora chegou à Tabanca Grande, convirá dizer que o Jorge Cabral foi alferes miliciano de artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, Fá Mandinga e Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71; está reformado, tendo sido advogado e professor universitário, especialista em criminologia... É membro da Tabanca Grande da primeira hora, e tem cerca de 225 referências no nosso blogue. 

Amti-herói da guerra da Guiné, é uma espécie em vias de extinção. Como, de resto, todos os outros antigos combatentes de uma guerra que já foi há muito riscada da História. Alfacinha de gema, nado e criado em Lisboa, vive agora desterrado (e amargurado)... na "cidadela" de  Cascais!... Imaginem o pobre "alfero Cabral",  menino da Linha, e sem o seu "sobretudo"!...


A Lavadeira. O Sobretudo. E uma Carta de Amor…

por Jorge Cabral


No dia seguinte a ter ocupado Fá Mandinga, apresentaram-se no quartel as lavadeiras, cinco ou seis bajudas, todas alegres e simpáticas.

Uma, Modji Daaba, chamou-me logo a atenção pelo seu porte e beleza. Bonita de cara e perfeita de corpo, possuía um ar nobre e altivo que me cativou. Imediatamente a contratei como minha lavadeira exclusiva, tendo acordado uma remuneração superior na esperança de algumas tarefas suplementares… (Periquito, ainda não sabia, que com as bajudas mandingas era praticamente impossível ir além de algumas carícias peitorais…).

Porque o meu fardamento habitual consistia numa toalha atada à cintura, o trabalho de Modji escasseava, mas ainda assim, não a dispensei de comparecer duas vezes por semana a fim de receber o salário, trazer e levar a roupa.

Iniciámos então um jogo de “faz de conta”, pagando-lhe eu um serviço imaginário. Até elaborava um rol, onde inscrevia peças de vestuário que ela desconhecia:
- Um sobretudo, três camisolas de gola alta, dois pares de ceroulas….

Quando ela chegava muito se divertia ao simular entregar-me as peças inventadas, e comentando:
- É cusa bonito sobretudo.

Entretanto tentava ultrapassar as brincadeiras e consumar o desejo, que era aliás mútuo. Nada feito! Ia casar. Depois sim, prometia. Havíamos de fazer sobretudo, senha por nós adoptada para designar o acto.

Finalmente casou. Com um velho mal encarado, já com duas mulheres e não sei quantos filhos. Então cumprimos o destino! Sobretudo, sobretudo, sobretudo… quase todos os dias.

Infelizmente pouco tempo depois fui transferido para Missirá, e foi aí que recebi uma carta de Modji Daaba. De memória reproduzo o documento.:

"Kerido Namorado Alfero Odjú Groso. Nmiste bai pa Missirá pa ba ter cu bó nha grande amor. Pá bu bim prendi nha marido, pa bu fala nha marido i turra. Tisim sition, calcinha e mandidja de prata. Nha marido ta sutam. Se bu ca bim na fusi pa Xime e nunca mas a mi bu lavadeira de sobretudo."

Não fui buscar Modji Daaba. Não prendi o marido. Sei que fugiu para o Xime, e nunca mais foi a minha lavadeira de sobretudo

© Jorge Cabral (2006)

_____________

Notas do editor:

(*) 20 de julho de  2006 > Guiné 63/74 - P974: Estórias cabralianas (12): A lavadeira, o sobretudo e uma carta de amor

(**) Último poste da série > 7 de maio de  2021 > Guiné 61/74 - P22178: 17º aniversário do nosso blogue (6): homenagem às "nossas lavadeiras" (Valdemar Queiroz / Cândido Cunha)

7 comentários:

José Botelho Colaço disse...

Quando no dia 3/11/1963 uma das primeiras frases que eu não percebi mas que ficaram gravadas e ouvi no cais de Bissau foram : Bó mist labandeira. como tinha ao lado um militar que nos recebeu e traduziu é se tu queres lavadeira para a roupa.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Tenho imensa pena que o livro de estórias do nosso "alfero Cabral" tenha saído tão tardiamente, e, pior ainda, em plena pandemia de Covid-19 !...

O livro deveria ter saído há uns bons anos atrás... E teria sido um grande ronco se fosse lançadonum sítio "ordinário", quero eu dizer, no sítio mais apropriado ao pícaro, à brejeirice, ao humor de caserna, à galhofa, à saudável loucura dos homens que fizeram a guerra e a paz no teatro de operações da Guiné... Por exemplo, num bar do Cais do Sodré...

Dizia-me há dias um senhor professor da Academia Militar que é "fã incondicional" das estórias do "alfero Cabral", e que se ri que nem um perdido a lê-las e relê-las (, tal como eu).

Para logo a acrescentar: È claro que se lhe aparecesse um "alfero Cabral" pela frente, em carne e osso, na Guiné (onde foi comandante operacional...), não saberia o que fazer dele, o alferes miliciano Cabral...mas devia arranjar-lhe uma função adequada ou apropriada ao seu enorme talento para escrever estórias hilariantes e desopilantes em dois ou três parágrafos...

Eu pessoalmente acho que um livrinho de estórias como estas deveria ser de leitura obrigatória... na Academia Militar!

O Jorge vai ficar contente ao ler este elogio...Ainda para mais vindo de um brilhante oficial de artilharia que na Guiné foi infante como muitos outros...

Valdemar Silva disse...

Sempre que leio uma das "Estórias Cabralinas" lembro-me sempre do que seria serem lidas p.ex. no comboio ou autocarro no regresso do trabalho. Com certeza que rebentaria em gargalhadas com os outros passageiros também sorrindo contagiados.
Assim acontecia quando apareceu o romance antiguerra "O Valente Soldado Chveik", de Jaroslav Hasek, havendo muita gente a ler na paragem do autocarro e no comboio dando altas e contínuas gargalhadas.

Valdemar Queiroz

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Valdemar, é muito apropriada a tua evocação do "O Valente Soldado Chveik", de Jaroslav Hasek... Acho que as "estórias cabralianas", a par da "guerra do Raul Solnado", ficam bem nessa galeria da nossa biblioteca do fim do Império... Quando todas as guerras acabam, nada melhor do que dar umas valentes gargalhadas!... Eu ainda não consigo, muito menos às quatro da madrugada, quando era pressuposto o passarinho cantar à sua amada!... LG

alma disse...

Olá Luís! Obrigado pela lembrança.Fico contente por o tal Professor da Academia Militar gostar. São bastantes os Oficiais do Q.P.que apreciam as minhas estórias. Ainda eu estava em Lisboa, apareceu-me um Senhor Coronel Paraquedista, que me comprou três exemplares.Mas o que me emocionou mais, foi o meu melhor Amigo da infância e adolescência, a quem mandei um livro,estando quase a morrer, nos momentos de lucidez,pedia para lhe lerem uma estória, e ria,ria.. Tenho o segundo volume pronto,mas o meu Amigo e Editor, está muito doente, com um cancro.È a vida! GRANDE ABRAÇO.SAÚDE. Jorge Cabral.

Fernando Ribeiro disse...

Quem não vai cair na asneira de comprar o livro sou eu. Obrigado pelo aviso.

alma disse...

Muito Obrigado Fernando Ribeiro, que eu não sei quem é. Já nem durmo esta noite... Mas que tristeza...J.Cabral