sábado, 9 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20957: (In)citações (160): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte VI (a): Muita saúde e longa vida, Arsénio Puim, porque tu mereces tudo! (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > REgião de Bafatá Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Espectacular vista aérea do aquartelamento, tirada no sentido leste-oeste, ou seja, do lado da grande bolanha de Bambadinca (vd. mapa da região)

Do lado esquerdo da imagem, para oeste, era a pista de aviação (1) e o cruzamento das estradas para Nhabijões (a oeste), o Xime (a sudoeste) e Mansambo e Xitole (a sudeste). Vê-se ainda uma nesga do heliporto (2) e o campo de futebol (3). A CCAÇ 12 começou também a construir um campo de futebol de salão (4), com cimento roubado à engenharia nas colunas logísticas para o Xitole.

De acordo com a fotografia, em frente, pode ver-se o conjunto de edifícios em U: constituía o complexo do comando do batalhão (5) e as instalações de oficiais (6) (onde ficavao quarto do alf mil médico Arsénio Puim) e sargentos (8), para além da messe e bar dos oficiais (8) e dos sargentos (9).

Em frente ao edifício em U, um poco mais à direita, situava-se a capela (13) e a secretaria da CCAÇ 12 (14).

Foto do arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). Ver o resto das legendas aqui.



Foto (e legenda): © Humberto Reis (2006). Todos os Direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Muita saúde longa vida, Arsénio Puim,
porque tu mereces tudo! (1ª parte)

por Luís Graça




Luís Graça, Contuboel,  junho de 1969
Que eu saiba, em toda a história da guerra colonial , ou pelo menos no teatro de operações da Guiné, houve pelo menos dois casos de capelães militares que foram "expulsos" das fileiras do exército... 

Não sabemos ao certo por quem, se o bispo castrense (que era brigadeiro) ou a hierarquia militar (personificada no Comando-Chefe, os generais Arnaldo Schulz, em  1968, e António Spínola, em 1971, respetivamente), com a inevitável “mãozinha” da polícia política ...

Eu diria antes que foram dois erros de "casting" (sem que isto nada tenha de ofensivo para com os visados)... 


Mário de Oliveira
Um deles é o padre Mário de Oliveira, que será sempre, até morrer, o padre Mário da Lixa... Foi capelão, por escassos meses,  do BCAÇ 1912 (que esteve sediado em Mansoa, 1967/69)... 

O outro caso de um capelão "expulso" das fileiras do exército português foi o açoriano Arsénio Puim (que deixou, de resto, o sacerdócio em finais dos anos 70): foi capelão, por um ano, do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72). E é sobre ele que eu quero falar, a pedido de um dos seus filhos, o mais novo,  o Miguel Puim, economista. E o pretexto são os seus 84 aninhos de vida (*)…

(1) A imagem que eu tenho do Arsénio 
Puim é a da serenidade. 
Na Guiné podia confundir-se com reserva 
e até timidez, hipoteticamente associada 
à sua origem insular e à sua condição 
sacerdotal. Mas havia ali, também, 
na sua maneira de ser e estar, 
algo da bonomia açoriana.

Arsénio Puim
Para muitos de nós, ali em Bambadinca, no pior setor do leste da Guiné, marcado pela guerra pura e dura, a açorianidade era algo que nos era estranho e distante. Na minha CCAÇ 12, havia um furriel madeirense do Funchal. Os Açores não ficavam na rota dos novos “navios negreiros” que, desta vez, em sentido inverso, levavam para a Guiné “carne para canhão”. 

O Puim foi dos primeiros açorianos que eu conheci.  E foi um lídimo representante do melhor que o povo açoriano tem, a começar pelo seu amor à liberdade, à verdade e à justiça. Mas não me lembro de alguma vez ter falado com ele da sua vida pessoal ou dos seus Açores.

"En passant",  havia companhias madeirenses e açorianas, no TO da Guiné, unidades homogéneas na sua composição: as praças eram "ilhéus", em geral enquadradas por "contimentais". Por razões, dizia-se, que eram de natureza "economicista", mas eu sempre desconfiei que o exército sabia que o "terroir", o chão, a geografia, o "caldo de cultura", também talhava os homens de maneira diferente, do mesmo modo  que produzia diferentes vinhos, com diferente "corpo e alma" … Sim, porque os vinhos também têm alma...

Curiosamente, o Puim não fazia gala da sua condição de açoriano, nos seus contactos com a população civil.

(2) Afinal, o alferes miliciano 
capelão Puim era mais capelão 
do que militar. Era, aliás,  
o mais civil, o mais paisano, 
de todos nós.

Nunca o vi armado, nas colunas logísticas, quando se deslocava, com frequência,  entre a sede do batalhão, em Bambadinca, e as unidades de quadrícula (Xime, Mansambo, Xitole) e os seus diversos destacamentos (Enxalé, Missirá, Ponte dos Fulas)… 

Ou quando se deslocava a Bafatá, o único ponto do interior onde havia um cheirinho de civilização e onde ia confraternizar com os missionários italianos do PIME (o Pontifício Instituto para as Missões Exteriores). 

Mesmo fardado, via-se que não fora talhado para a tropa. E muito menos para a guerra, com o seu cortejo de violência(s), que atingia(m) tanto os combatentes como as 
opulações de um lado e do outro.
Horácio Fernandes

Tínhamos uma certa deferência para com os médicos e os capelães, se bem que capelão militar fora ele  o único que eu conheci. Confesso que não me lembro, em Bambadinca, do meu primo Horácio Fernandes (o seu bisavó e a minha bisavó, do clã Maçarico, nascidos por volta de 1860,em Ribamar, Lourinhã, eram irmãos)...

Havia falta de médicos e capelães, no teatro de operações da Guiné. Mas os médicos, ao que parece, faziam mais falta, tanto no mato como no Hospital Militar de Bissau, o HM 241 (que, feliz e infelizmente ao mesmo tempo, foi um a grande escola para os jovens médicos mobilizados para a Guiné).

À época, havia já em curso um tendência para a  descristianização da juventude portuguesa, ou pelo menos, um crescente desapego de práticas religiosas como o ir à missa.   O Puim tinha consciência disso e sabia que o seu papel de “padre da Igreja no Exército”  “não era fácil nem isenta de contradições numa situação de guerra”.

(3) Quando regressei a casa, 
em março de 1971, ele ainda lá 
ficaria dois escassos meses,
 em “imbecilburgo”, como eu chamava 
à nossa pobre Bambadinca, 
mas já com bilhete marcado 
para a metrópole. 


Walther P38, de fabrico
alemão.
Cortesia de
Wkimedia Commons

Era uma questão de oportunidade, dizia-se à boca pequena. Também teria ele a sua “noite das facas longas”, como os pobres cães vadios que um dia abatemos um a um, com tiros da tenebrosa Walther da Wehrmacht nazi, em correrias loucas na parada, porque não nos deixavam dormir, aos operacionais de Bambadinca...


Só nos voltámos a ver, eu e o Puim,  38 anos depois, em 24 de maio de 2009, na casa dos seus filhos, na altura estudantes universitários, um no Técnico, outra na Nova. E confirmei essa impressão inicial: continuava a ser um homem calmo, sereno, sábio, sem uma única ruga de rancor ou amargura, muito menos, ódio,  pelos seus "inimigos" (, uma palavra que nunca lhe ouvi). 

Já não era padre, em 2009, ou melhor, era pai de dois rapazes e profissional de saúde,  era enfermeiro, em Ponta Delgada.


(4) Na época, em 1970/71, 
altura em que convivemos 
em Bambadinca, ele tinha 
já dez anos a mais do que nós, 
e portanto, outra maturidade. 
Antes de vir para a Guiné, 
enquanto se formava o batalhão, 
esteve na Serra do Pilar, 
no RAP2 - Regimento de 
Artilharia Pesada 2, 
em Vila Nova de Gaia. 


V. N. Gaia, Serra do Pilar > RAP2 >
Foto de António Tavares (2015)

E aí houve uma função de capelania que o marcou: empilhavam-se os caixões, vindos do ultramar, com os restos mortais de militares naturais do Norte.

Nessa altura, ele realizou mais de 60 cerimónias religiosas, por todo o Norte, acompanhando os nossos camaradas mortos até à sua última morada, confortando o padre local, as famílias e as comunidades locais, num ambiente de grande consternação e  comoção.

Ainda em 2009, confessou-me, não conseguia esquecer essas emoções fortíssimas de dor e de luto, o odor característico dos féretros que vinham, teoricamente, chumbados, hermeticamente fechados, mas alguns apresentavam fissuras, ruturas, e exalavam um cheiro enjoativo, empilhados na grande sacristia, mal iluminada, da igreja do Pilar

“Foram mais de 60 funerais que fiz nestes três meses - 2 ou 3 deles apenas as caixas dos ossos - nas mais diversas e recônditas aldeias do norte de Portugal. Um sacrifício dramático da nossa juventude, merecedor de muito respeito e dignidade, mas que não podia deixar de fazer pensar qualquer pessoa” – escreveria mais tarde, num os postes da sua série "Memórias de um alferes capelão", publicada no blogue.

(5) Nesse longo fim de semana, 
falámos várias vezes ao telefone 
e encontrámo-nos uma vez… 
Era um domingo. 


Ele explicou-me como é que chegara a capelão… Disse-me que fora contra a sua vontade, mas teve que obedecer a uma ordem do seu bispo, como  acontecia em todas as dioceses...  A capelania militar era uma forma cínica mas airosa dos bispos se livrarem, por uns tempos, dos seus padres mais incómodos… Recorde-se que o ambiente já era do pós-Concílio Vaticano II...

Dado o seu nome à Cúria Castrense, veio parar ao Continente.  Na Academia Militar, ali à Rua Gomes Freire, em Lisboa, vai frequentar o 3º curso de capelães militares, entre 22 de setembro e 25 de outubro de 1969... O total de participantes foi de 59… O Mário de Oliveira tinha frequentado o 1º e seguira para a Guiné, ao serviço do BCAÇ 1912.  

“Tirado à sorte” (sic), coube ao Puim  o BART 2917 e a Guiné... 

Esse 3º curso de capelania militar não foi, contudo, pacífico:   ao que parece, terá havido “contestação do sistema” por parte de alguns capelães... No fundo, angústia e perplexidade sobre o papel do padre no seio das forças armadas, em plena guerra colonial, cuja legitimidade já era posta em causa por alguns… 

E essa contestação terá sido liderada pelos açorianos, entre eles o Arsénio Puim, um homem que de resto, enquanto cidadão e como cristão, nunca escondera que lutava pela liberdade e pela justiça... Não altura, ele não me falou que tinha já ficha na PIDE/DGS, por ter apoiado a candidatura da CDE – Comissão Democrática Eleitoral, nos Açores, donde constava, entre outros, o nome do então cap Melo Antunes, casado com uma açoriana. (Não chegaria a apresentar-se a escrutínio, por oposição da hierarquia militar à presença do seu nome.)

Podia-se ter ficha na polícia política pela simples suspeita de se ser do "reviralho", da "oposição" ou "contra a situação". E, para mais, um padre, um pastor de almas, numa época em que a Igreja começava a apresentar fissuras no seu bloco de apoio ao regime e à guerra colonial. Ser catalogado de "católico progressista" começava a ser perigoso, ou no mínimo suspeito, e como tal inconveniente… 

(6) Dei-lhe, ao Puim, nesse domingo, 
um longo e sentido abraço,   
retomando um contacto 
de há quase 4 décadas atrás... 


Capela de Bambadinca, em segundo plano.
Foto de Benjamim Durães (2010)
Por mor da verdade, devo dizer que, em Bambadinca, não éramos  íntimos: eu não ia sequer à missa, tal como o Machado, mas o Machado (, o “Machadinho”)  às vezes ainda dava uma ajuda  ao Puim, tocando o órgão na capela de Bambadinca…

E depois havia a segregação socioespacial própria da tropa: ambos vivíamos (quero dizer, eu às vezes dormia…),no edifício do comando de Bambadinca, em U, mas separados: ele na ala dos oficiais, nós na ala dos sargentos… Ele entrava no bar de sargentos, eu nunca pus os pés na messe de oficiais, nem por bons nem por maus motivos.

Não posso, por isso, testemunhar a importância do seu papel na assistência religiosa e no apoio psicológico, moral e espiritual aos militares  do setor L1 (Bambadinca). Sei que esse papel foi-lhe requerido em momentos difíceis do batalhão como, por exemplo, na sequência da Operação Abencerragem Candente, no subsetor do Xime, em que perdemos 6 camaradas, e 9 foram gravemente feridos, em 26 de novembro de 1970. O Puim ajudou os camaradas do Xime, da CART 2715, a fazer o luto. Mas essa companhia nunca mais foi a mesma, a começar pelo jovem capitão, O Vitor Amaro dos Santos.


(7) Sei que era uma pessoa querida 
entre os homens do batalhão 
e subunidades adidas (como era 
o caso da minha africana CCAÇ 12), 
com uma presença discreta 
mas frequente nos quartéis 
do mato. 


CCAÇ 12, 2º Gr Comb, c. 1969/70.
Foto de Humberto Reis (2006)
Não me lembro de o ter visto muitas vezes nos nossos ruidosos convívios no bar de sargentos de Bambadinca, onde se bebia, cantava e jogava-se à lerpa  até às tantas… Onde se bebia, às vezes demais, se praguejava, se diziam obscenidades, se invetivava Deus e o Diabo, e até se cantavam ou cantarolavam “canções proibidas” à média luz… Não faltavam violas nem vozes… (No outro lado, cantava-se o fado,  jogava-se o bridge, havia senhoras, o ambiente era de ordem, decoro e respeitinho…)

O ambiente do mal afamado bar de sargentos de Bambadinca (que às vezes era extensiva ao “Bataclã” de Bambadinca, fora do arame farpado…)  não deveria ser muito do agrado do comando do batalhão. Mas tinha que nos gramar, aos operacinais da CCAÇ 12, porque éramos nós (e os Pel Caç Nat 52 e 63), quem lhes defendia as costas e fazia os "roncos"... De qualquer modo, o Puim não era de noitadas nem muito menos de tainadas, pautando o seu comportamento por um padrão de isenção, frugalidade, imparcialidade, austeridade e até de pudor. 

Guiné 61/74 - P20956: Os nossos seres, saberes e lazeres (391): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Outubro de 2019:

Queridos amigos,
Antes de passar um dia movimentado em Herculano, tomou-se um comboio até Caserta, escassas dezenas de quilómetros de Nápoles.
Quando acabou o vice-reinado espanhol iniciou-se um tempo de Bourbon, que se irá prolongar até à unificação italiana. O que sobressai deste tempo é que se perdem as ligações ao passado, percorre-se estes aposentos reais e o testemunho tem um único nome: o esplendor do barroco, não há aqui quaisquer vestígios de outros estilos e, como toda a gente sabe, Nápoles tem uma poderosa herança greco-romana, presença bizantina, aragonesa, espanhola, este edifício do palácio real é de um classicismo puro no seu exterior e foi concebido para esmagar o visitante, havia dinheiro a rodos para aqui se ter deixado 1200 quartos.

Um abraço do
Mário


Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (3)

Beja Santos

A visita ao Palácio Real de Caserta, a residência dos Bourbon fora de Nápoles, tinha em mente descobrir se no período faustoso destes reis que aqui governaram até à unificação italiana, com interregnos como aquele que foi imposto pelo período napoleónico, havia o sentimento de herança da outra Nápoles. E não há, estas imagens que se seguirão ilustram um fausto e uma magnificência onde prima o barroco e o academismo. Até então, Nápoles era uma capital de cultura ambivalente, espanhola e oriental, a música anterior ao fausto barroco é elucidativa, ficou-nos um repertório musical de enorme riqueza onde avultam influências francesas, litúrgicas, aragonesas, espanholas. Os Bourbon chegam ao reino de Nápoles em 1734, com Carlos III, ele trazia a ambição de transformar Nápoles numa cidade altamente influente. Reduziu a construção de igrejas e lançou-se nas obras públicas e nas indústrias. Para a edificação de Caserta inspirou-se em Versalhes. Estamos no tempo em que a aristocracia europeia viaja para outros territórios, para conhecer os fundamentos do Humanismo, iniciava-se o Grand Tour, que atraía viajantes e artistas, o romantismo vem a caminho.





O viandante optou pela viagem mais económica, cingiu-se aos apartamentos reiais do século XVIII, deixou para a próxima a visita ao teatro e aos jardins. O que vai sempre intrigar o viandante é que esta pomposidade é de chão, paredes e teto, vinha à espera da exuberância das artes decorativas, da pintura mural. Carlos III era riquíssimo, tinha uma fábrica de porcelana, era protetor das artes, os Bourbon vão estar associados a realizações arquitetónicas de grande distinção, como o Teatro de S. Carlos (o nosso, dizem os entendidos, é uma réplica), não esquecer que Nápoles e Veneza eram consideradas as pátrias da ópera cómica italiana, mas também o Palácio de Capodimonte, para além de outros projetos urbanos. Apaixonado pelas antiguidades, inspirou o colecionismo e a criação do Museu Arqueológico de Nápoles, indiscutivelmente um dos mais importantes do mundo. Pois o que surpreende é esta magnificência nua, houve alguém que levou os tesouros. Fizeram-se perguntas, não se obtiveram respostas.




São salões deslumbrantes, os frescos dos tetos valiosíssimos, como se viu atrás, a Grande Escadaria está posicionada de um lado para não interromper a esplêndida vista da entrada principal para o parque. Escreve-se nos guias que Carlos III sabia o que queria – emular os seus modelos preferidos, o Buen Retiro em Madrid e Versailles em França. O arquiteto Vanvitelli inspirou-se no edifício madrileno e assentou uma estrutura quadrangular. O piso térreo inferior alberga um museu e no andar superior somos confrontados com estes dourados faiscantes. Na imagem seguinte temos berços da época império, Napoleão impôs a Nápoles Carolina Bonaparte e o gosto pelo estilo império continuou mesmo depois da deposição do imperador.




Finda a visita aos apartamentos reais, deparou-se uma exposição intitulada “De Artemísia a Hackert”, a coleção privada de um colecionador-antiquário com escritórios em Londres, intitulada Lampronti Gallery. Cada um tem os seus gostos, não se discute a riqueza da coleção Lampronti, mas o que impressionou o viandante foram as obras de Canaletto, Bellotto e Guardi, o tema Veneza suscita-lhe sempre o gosto pela contemplação, foram grandes mestres na arrumação da tela, no primor dos detalhes, na animação daquela vida quotidiana, génios na captura das cores, tão impressivos que podemos hoje percorrer Veneza e detetamos facilmente o que já vimos nos espantosos trabalhos destes pintores imortais.




À saída de Caserta apanhou-se um teto pintado numa invulgar sobriedade, até parece um tema próprio da cartela de um tapete, cores suaves, contornos lânguidos. À saída alguém declamava entusiasticamente louvores ao parque de Caserta, ao jogo de água a fluir culminando na grande cascata. No que toca ao viandante, fica para a próxima visita, mas é justo que se aguce o apetite a quem gosta de belos jardins, com efeitos incríveis de piscinas e de fontes decoradas. Aqui fica a imagem para entusiasmar os futuros visitantes.



(continua)
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Notas do editor

Poste anterior de 2 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20931: Os nossos seres, saberes e lazeres (388): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 5 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20942: Os nossos seres, saberes e lazeres (389): "O Saltitão", Jornal da CCAÇ 2701 (5) (Mário Migueis da Silva, ex-Fur Mil Rec Inf)

Guiné 61/74 - P20955: (In)citações (149): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte V: lembranças do capelão do BART 2917 (Beja Santos)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L1 > Bambinca > CCS/ BART 2917 (1970/72) > O Mário Beja Santos, cmdt do Pel Caç Nat 52, em fim de comissão, junto ao edifício de comando, messe  e instalações de oficiais. Era aqui o quarto do médico e do capelão... (Do lado esquerdo, eram as instalações dos sargentos; o edifício em U fora construído pela Engenharia Militar, BENG 447, ao tempo do BART 1904 (, que será substituído pelo BCAÇ 2852, 1968/70)... O Beja Santos, que esteve em Missirá, conheceu estes 3 batalhões).

Arquivo do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Lembranças do capelão do BART 2919

por Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)

Arsénio Puim. Foto do cmdt da CCS / BART 2917,
Cap Art Gualberto Magno Passos Marques,
Convivi com três batalhões, dependi sempre das respetivas CCS, tudo que tinha a ver com cimento e arame farpado, tratamentos de enfermaria, visitas do médico ao Cuor, ou doentes do Cuor à consulta médica, manutenção de viaturas, pagamentos à tropa (caçadores nativos e milícias), munições, caixas com bacalhau e barricas de pé de porco, tinha que ser tratado com o respetivo comandante ou seu substituto. 

Comecei com o BART 1904, até setembro de 1968, com o BCAÇ 2852, até maio de 1970, e até fins de julho com o BART 2919. 

Tivemos vários capelães de passagem, dormiam no quarto com o médico, a recordação mais bizarra que conservo eram as discussões fora de horas entre o Dr. Vidal Saraiva e o capelão, tudo aos gritos, dizia o médico que Deus não existia, pois se existisse não consentiria naquela carnificina. Gritavam um com o outro, o Vidal Saraiva atirava violentamente com a porta e vinha queixar-se para outros quartos, amainava com um copo de uísque e retirava-se com uns livros do Tio Patinhas.

Isto tudo para explicar que tenho fugazes lembranças do Arsénio Puim, era muito comedido nas suas homilias, muito reservado na messe, nós tínhamos um tema em comum que eram os Açores, originário da Ilha de Santa Maria, devo tê-lo aborrecido a contar as peripécias com um pelotão de marienses que apareceu nos Arrifes, não puderam ir passar o Natal de 1967 com as famílias, procurou-se colmatar o desgosto organizando uma festa em que houve imensa participação de gente amiga, assim se amainou a saudade daqueles jovens que passavam o primeiro Natal longe de entes-queridos. 

Guardo as melhores lembranças do batalhão recém-chegado. Ciente de que estava a atingir 24 meses de comissão, e já num estado físico pouco lisonjeiro, o tenente-coronel Domingos Magalhães Filipe deu-me como prato de substância o apoio aos trabalhos do alcatroamento da estrada do Xime, entre Amedalai e Ponta Coli, um non-stop das cinco da manhã às cinco da tarde e as noites horríficas na ponte do rio Undunduma, a título excecional aquele trabalho árduo que era a organização das colunas de Bambadinca ao Xitole, onde íamos com a CCAÇ 12.

Nos 84 anos do Arsénio Puim, posso dizer que lhe desejo uma longa vida plena de alegrias, que lhe estou grato pelo conforto espiritual que me ofereceu, tanto não o esqueço que tenho procurado enviar-lhes correio eletrónico e que bom seria que ele viesse à liça, que nos deixasse as suas memórias, pois só dispomos de testemunhos raros e de um modo geral fragmentados, ponto curioso é que muitos de nós não os esquecemos, há testemunhos tocantes de capelães que suavizaram a vida de quem penava nos confins do mato e carecia de arrimo religioso. 

Será muito bem-vindo tudo quanto o Arsénio Puim escrever das suas lembranças em Bambadinca e arredores. E, Arsénio, receba um abraço muito afetuoso do Mário Beja Santos
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Nota do editor:

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20954: (In)citações (148): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte IV: o termos vivido e sofrido a mesma contradição numa realidade que nos obrigou, cada um de sua maneira, a uma reviravolta na vida (Lino Bicari)


Região Autónoma dos Açores > Ilha de São Miguel >  Maio de 2019  > O reencontro de dois amigos da Guiné, ao fim de 48 anos: à esquerda,  o ex-missionário italiano Lino Bicari (, casado com uma portuguesa, vivendo hoje no Alentejo) e, à direita, o Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), expulso depois do exército e do CTGI, em maio de 1971, sendo hoje enfermeiro reformado: casado, deixou o sacerdócio em finais dos anos 70. (*)

O Lino Bicari é da mesma idade, nasceu em Itália. Missionário do PIME - Pontifício Instituto para as Missões Exteriores. chegou à Guiné em maio de 1967.  Além da telogia, tinha formação em medicina tropical, em psicopedagogia e didáctica e em etnologia.

O Puim e o Bicari conheceram-se na Guiné, em Bafatá, "numa altura em que o capelão chefe, padre. Gamboa promoveu um encontro durante dois dias dos capelães da Zona Leste – Bafatá, Bambadinca, Galomaro, Nova Lamego e Piche – precisamente na Casa dos Padres Missionários Italianos de Bafatá."

O Puim voltaria mais tarde "duas ou três vezes à Casa dos simpáticos missionários italianos, aproveitando sempre esta estadia para um reconfortante convívio sacerdotal e um renovar de forças no exercício da minha missão de capelão." (*)

O capelão-chefe major Gamboa, que vivia no "Vaticano", em Bissau, na altura em que o Puim fui expulso do CTIG, nasceu no Fundão, Castelo Novo, em 21 de agosto de 1919  DE seu nome completo,.Pedro Maria da Costa de Sousa Melo de Gamboa Bandeira de Melo

Em 1973, o Bicari aderiu ao PAIGC, e tornou-se responsável pelo Hospital Regional do Boé, já depois da declaração unilateral de independência em 24 de setembro de 1973.

Foto (e legenda): © Arsénio Puim (2019). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


I. Testemunho de Lino Bicari, que nos chegou pela mão do Miguel Puim, com a  devida autorização para se publicar  no blogue.


1. Em 1970 já tinha conhecido vários capelães militares em missão de serviço na então Guiné Portuguesa e tinha tido com todos bons relacionamentos, mas só com o Padre Arsénio Puim, capelão em Bambadinca, no leste do país, entrei no "mesmo comprimento de onda", porque desde o primeiro encontro percebi que partilhávamos sentimentos perante a dramática situação da guerra colonial em que estávamos ambos mergulhados. 

Arsénio tornou-se assim o único português com quem, nesse tempo da PIDE omnipresente, com a sua rede de informadores, podia falar de tudo à vontade.

Nasceu assim uma amizade quase à primeira vista, sem muito conhecimento um do outro.

Dois foram os encontros a sós que nunca poderei esquecer. Um, no final de 1970, na Missão Católica de Bafatá, onde eu trabalhava há já quatro anos. 


Arsénio Puim, ex-alf mil capelão, CCS/ BART 2917 (Bambadinca, 1970/72): açoriano, da Ilha de Santa Maria, foi expulso do exército e CTIG em maio de 1971, apenas com um ano de comissão; no final da década de 1970 deixou o sacerdócio, formou-se em enfermagem, casou-se, teve 2 filhos; vive na Ilha de São Miguel; está reformado; é membro da nossa Tabanca Grande; tem cerca de 40 referências no nosso blogue; é autor da série "Memórias de um alferes capelão", de que se publicaram doze postes]

Foto: © Gualberto Magno Passos Marques (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Região de Bafatá >  1970 > Exterior da capela de Bambadinca ... Aquartelamento e posto administrativo de Bambadinca. Foto de Benjamim Durães ex-fur mil op esp, Pel Rec Inf, CCS/BART 2917 (Bambadinca, 1970/72)

Foto ( e legenda): © Benjamim Durães (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Vejo-me ainda sentado a uma mesa na biblioteca dessa Missão. À minha frente o amigo Arsénio, de pé, a tremer de indignação, percorria com passos nervosos, o pequeno espaço livre. Parece-me ainda ouvir da sua boca, num tom enfadado, a narração dos feitos horrorosos da guerra a que quase diariamente assistia, acentuando o contraste com a narrativa oficial e com a propalada missão civilizadora do regime. 

Contou-me as frequentes saídas nas chamadas “missões de soberania”. Era a própria “malta” a pedir a participação do capelão nessas saídas de alto risco, acreditando talvez que a sua presença pudesse funcionar como um talismã protetor, nos terríveis momentos do rebentamento de minas e nas mortíferas emboscadas do inimigo invisível. Para o Padre Arsénio, no entanto, a sua presença era sobretudo para impedir ou atenuar os excessos da guerra.

2. O outro inesquecível encontro com o amigo Arsénio deu-se no inicio de 1971, no quartel militar de Bambadinca a 30 km de Bafatá. Após a missa dominical na Missão desta localidade, a convite do Arsénio, no seu quarto, voltei a ouvir e desta vez também a ver, através de fotografias, os horrores da guerra, o que me permitiu compreender melhor o seu drama interior.

Ele, pensei, deve ter lido e ouvido inúmeras vezes o que estava resumido numa frase do Boletim dos Capitães militares e que aqui vou citar: 

“O capelão militar é um dos elementos mais importantes do nosso exército porque, pregando a doutrina do amor cristão, ajuda grandemente a obra de pacificação e de reunião de todos os povos das províncias ultramarinas sob a única bandeira portuguesa”. 

Para mim,  foram esta mistura e esta instrumentalização politico-bélica com a mensagem evangélica que levaram o drama interior do amigo a explodir em desabafo durante a homilia dominical no inicio de Maio de 1971, que teve como consequência a sua expulsão do exército.

Eu também, nessa altura, estava a viver , de forma menos dramática, esta mesma contradição que iria durar oito anos, de 1966 a 1974, resumida no artigo 2 do Estatuto Missionário português, aprovado por Salazar e Cerejeira, na lógica da Concordata de 1939. Esse artigo refere textualmente: 

“As Missões católicas portuguesas são Instituições de utilidade imperial e de sentido eminentemente civilizador”.

Aquilo que criou a amizade entre mim e o Arsénio não foi o facto de sermos coetâneos (hoje oitentões) ou ambos padres cumpridores da missão incumbida, mas sim o termos vivido e sofrido a mesma contradição numa realidade que nos obrigou, cada um de sua maneira, a uma reviravolta na vida.

Completámos desta forma, a nossa missão comum, a de colocar a nossa pedrinha na construção da paz e da liberdade dos povos português e guineense.

Lino Bicari (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 9 de maio de  2019 > Guiné 61/74 - P19766: (De)Caras (105): O reencontro de dois velhos amigos, na ilha de São Miguel: Arsénio Puim, ex-capelão militar, açoriano, e Lino Bicari, ex-padre missionário, italiano...

(**) Último poste da série >  8 de maio de  2020 > Guiné 61/74 - P20952: (In)citações (147): Homenagem ao ex-alf mil capelão, Arsénio Puim, CCS / BART 2917 (Bambadinca, 1970/72), no seu 84º aniversário - Parte II: Mais um de nós (Tony Levezinho); Parte III: O único santo que conheci em Bambadinca (Luís Graça)

Guiné 61/74 - P20953: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (1): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
No preâmbulo do primeiro volume do meu Diário da Guiné, publicado em 2008, contei que, para além do inopinado foi para mim ter dito ao Luís Graça que ia publicar toda a minha comissão, semana a semana no blogue, isto depois de um nosso encontro em 2006, já me tinha ocorrido no passado escrever uma obra romanceada cujo título era exatamente este: "Rua do Eclipse", um acontecimento fortuito, uma conversa com uma intérprete no decurso de uma reunião de trabalho, em Bruxelas, dera ignição a uma correspondência amorosa onde o amante português iria descrever a sua experiência de guerra nos trópicos.
Tomaram-se muitas notas, na altura, havia o correio, as fotografias, as cartas militares, havia essencialmente as feridas em figura de gente, os queridos camaradas com olhos vazos, próteses, fugitivos da praga dos fuzilamentos, gente que aproveitava mesmo uma qualquer estadia em Portugal para aqui ganhar sustento, aquele novo país parecia caminhar para o abismo. Mas a vida profissional tinha outras exigências, a Rua do Eclipse ficou em gatafunhos, mas deixou imensa saudade, era o paraninfo, a voz primigénia que iria fazer superar outras tubas, e trombetear o que a partir do Diário da Guiné se passou a escrever.
É essa saudade desses gatafunhos que aqui se põe em letra de forma. Há os livros que os autores rejeitam e há os livros não escritos que deixaram um recado para o futuro, talvez seja o caso deste malogrado "Rua do Eclipse".

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (1): A funda que arremessa para o fundo da memória

Comprei bilhete para o avião da tarde de sexta-feira, 10 de setembro de 1999. Sempre que possível, quando tenho reuniões na manhã de segunda-feira, parto na antevéspera, sempre são dois dias por minha conta, ou fico no discreto e obscuro Hotel Georges V, que conheço há 20 anos, faz parte da lista, cada vez mais minguada, de hotéis baratuchos, ou na Rue Grétry, quando venho ao serviço da Confederação Europeia dos Sindicatos. Desta feita venho em serviço oficial, discussão sobre a revisão da legislação da publicidade. Procurei fazer a agenda de coisas que tenho para trabalhar, vai em breve ter início o ano letivo, dar Sociologia do Lazer, preciso de trabalhar mais na organização das aulas de novembro e dezembro, felizmente que já produzi os conteúdos das aulas de outubro. Na véspera, telefonou-me o Carlos Cruz Oliveira, foi ele que lançou a revista Liber 25 e as Memórias da Guerra Colonial, nos anos 1980, pretende relançar as duas coleções, pediu-me colaboração, prometi para a semana enviar-lhe dois artigos diferentes. Trouxe comigo rascunhos e fotografias da Guiné. Se tudo correr bem, trabalharei afincadamente sábado à noite, e quando vier de uma exposição no Museu de Belas-Artes trago comida feita, vou mourejar até dormir. Regresso a Lisboa segunda-feira à noite, será um resto de semana ativíssimo.

Aeroporto de Zaventem, Bruxelas-Nacional

É preciso viajar no lusco-fusco no comboio entre Zaventem e o centro de Bruxelas para entender o desencanto daqueles eurocratas que passam por esta capital como cão por vinha vindimada. O comboio entra num túnel, da janela vemos de um lado fabriquetas e umas granjas a monte, do outro lado as traseiras e jardins com muito pouca graça, lá ao longe veem-se uns lugarejos e campanários de igreja, é tudo deslavado até chegar a Schaerbeek, quem vem pela primeira vez até pode tomar aquela imagem como casa fidalga, afinal é gare ferroviária, que já conheceu dias mais lustrosos, mas a imponência da arquitetura ninguém lha tira.

Gare de Schaerbeek

Passados cerca de quarenta minutos da partida de Zaventem, chega-se à gare central, está tudo muito diferente de quando aqui cheguei há cerca de vinte anos, então, mesmo à saída da porta principal havia um descampado utilizado como parque de automóveis, sobrava a Igreja da Madalena para se pensar muitos séculos antes aqui houvera vida. Hoje está tudo diferente, há um muro de hotéis, tudo a imitar o antigo, ou quase, chama-se fachadismo, não é desengraçado na invocação, mas tem um ar ainda profundamente estéril. Ponho-me ao caminho, está um anoitecer sereno, passo ao lado da ruidosa Grand-Place, ouve-se a vozearia dos turistas e veem-se os clarões dos flashes, tomo o Boulevard Anspach, caminho em direção a Anneenssens, já estou perto de casa.

Gare Central de Bruxelas

A Igreja de Notre-Dame aux Riches-Claires é bela por fora e de um estranho despovoamento no interior, interroguei-me, logo na primeira visita, se tinha havido aqui alguma grande ladroagem durante qualquer guerra, é tudo de uma enorme rusticidade e no entanto o altar barroco faz-nos sentir que houve poderosos sinais de riqueza, no passado vivia na vizinhança uma burguesia flamenga abastada. A cidade de Bruxelas deu uma grande reviravolta com a chegada em força da Comunidade Económica Europeia, da NATO, dos imensos escritórios representativos de interesses, os grandes negócios querem-se fazer ouvir regularmente na Comissão e no Parlamento Europeu, entre outros. Foram tomando insidiosamente o centro, quem aqui habitava partiu para as comunas da fímbria, com a avalanche dos imigrantes, os da Europa do Sul, do Magreb, e depois de todo o mundo, os escritórios preferiram as zonas chiques circunvizinhas das instituições europeias, hoje são preferencialmente árabes e uma pequena burguesia quem habita nestes boulevards e proximidades, há cafés para marroquinos e turcos, mas também se está a dar uma gentrificação nos bairros populares, caso de Marolles, é ali pertinho que está a Feira da Ladra, se não chover, vou lá passar a manhã, toda aquela traquitana me extasia.

Igreja de Notre-Dame aux Riches-Claires

Já conheci o Hotel Georges V com a fachada arruinada e bem degradado, a cheirar a mofo, felizmente com quartos limpos e casa-de-banho funcional. Quando faço a reserva, lembro que sou aquele português que pede uma luz que permita trabalhar na secretária, há um pendor para a luz mortiça inexplicável, como se fosse dogma de fé que o hóspede ficasse obrigado a ver televisão em exclusivo, mesmo as luzes junto às mesas de cabeceira parecem boas para alumiar velórios, gentilmente encontro sempre boa luz para trabalhar. Arrumada a tralha fui à janta, há nas redondezas pequenos restaurantes geridos por espanhóis ou italianos, desde que se tenha cuidado com o que se bebe, come-se bem e em conta. Como aconteceu. Aproveito a espera de um prato de rigatoni com tomate para ver o que oferece a agenda cultural, infelizmente a Europalia Hungria só começa em outubro, mas há uma exposição sobre o dadaísmo, sinto-me seduzido. Nada de ópera, La Monnaie ainda está em remodelações, fica para mais tarde.

Hotel Georges V, Rue T’kint nº 23

São oito da manhã de segunda-feira, tomei o pequeno-almoço muito cedo, quero ir a pé até Schumann e descer a Rue Froissart, é aqui que vai decorrer a reunião, no Centro Borschette. Sabe bem este ar frio, fujo das artérias com mais trânsito, não me sai da cabeça a ideia de construir uma história sobre a minha comissão na Guiné, graças ao Carlos Cruz Oliveira tenho publicado recordações sobre a vida no Cuor ou na região de Bambadinca. Ocorreu-me contar uma história dolorosa que vivemos na passagem do ano de 1969, coube-nos uma vigilância toda a noite num lugar chamado Bambadincazinho, bem perto da Missão do Sono, na passagem do ano quem estava no destacamento do Xime fez um foguetório imenso, naturalmente que me alarmei, perguntei ao Comando de Bambadinca se me devia pôr à estrada para ajudar esta unidade em apuros. Veio a resposta lacónica: “Não saias daí, aquilo é tudo borracheira, são munições que se perdem”. Ao amanhecer, veio o soldado condutor Xabregas com um Unimog 411, conhecido por “burrinho”, dava jeito levar aquele carregamento de munições, a nossa salvaguarda na eventualidade de aparecer um grupo do PAIGC pela frente. Sentei-me ao lado do Xabregas, por cima, num suporte metálico em L sentou-se o soldado Uam Sambu, um mansoanque já várias vezes sinistrado, homem com pouca saúde. No seu andar descompassado, apareceu Quebá Sissé, antigo cozinheiro em Missirá, pediu boleia, deu a mão esquerda a um camarada para ser alçado e inadvertidamente meteu a arma em posição de fogo e no esticão para chegar ao assento da viatura meteu o dedo no gatilho e descarregou três tiros na tábua do peito de Uam, que me caiu no regaço. Breve, foi uma correria para o posto de enfermagem, fui alvorotado pedir ajuda ao médico da unidade, Joaquim Vidal Saraiva, ele veio prestes e cedo percebeu que a evacuação com caráter de urgência era um mero proforma, Uam fora atingido em órgãos vitais, partiu moribundo e já estava morto quando aterraram no HM 241. Era à volta deste horrível acidente, da estima que eu tinha por Uam, que nas tardes de lazer se vestia com as roupas mais vistosas que alguma vez vi, e que era casado com a Binta, a minha lavadeira, Cherno Suane, o meu guarda-costas, tinha com elas discussões horríveis, a Binta esfregava as fardas em pedras, eram gestos tão violentos que desfaziam os botões, e Cherno, que sabia costurar, pedia-lhe em vão que fosse mais meiga nas lavagens, as discussões subiam de tom, foi nelas que aprendi vários palavrões em crioulo.

Vou a caminho da Rue Froissart e pergunto-me o que é que me deu para me lembrar desta história, venho trabalhar e recuei trinta anos, recapitulo todas estas cenas, segue-se um clique em que tudo isto se encadeia, estou no cais do Pidjiquiti, já passa das dez horas da manhã do dia 2 de setembro de 1968, trouxeram-me de Santa Luzia com duas caixas enormes que albergam os meus livros, os meus discos de vinil e um gira-discos, parece que preparei uma bagagem para turismo de longa duração, trago uma mala de roupa e um saco de artigos de higiene; quem me transportou entrega-me um garrafão de água, uma caixa de rações de combate, sou conduzido para um batelão, não sem esforço as caixas passam para o interior da embarcação, ali arrumo os outros meus tarecos, sento-me na ré, vai começar uma viagem. O que é que me terá dado para estar reviravolta nas memórias, tudo a pretexto de uns artigos que me comprometi a escrever, coisas que tenho feito na mais pura das camaradagens, tem-me feito bem até agora, mas não tenho sentido nenhuma obrigação, obrigações tenho-as eu e muitas, dão-me água pela barba, era o que faltava andar a cismar em permanência com todas essas histórias de dois anos de Guiné. Identificado à entrada do centro Borschette, subo ao segundo andar, entro na sala, cumprimento quem preside à reunião e quem secretaria, há um ou outro representante que conheço, damos dois dedos de conversa. Sento-me, tiro a documentação e então olho à volta, estou mesmo em frente das cabines de interpretação.

Centro Albert Borschette

Uma cabine de interpretação, algures numa instituição europeia

Que surpresa, quando ponho os auscultadores para francês, alguém da cabine, com voz louçã, fala em português, um português bem acentuado, para me dizer que está pronta, se eu quiser, para me traduzir para francês, outro colega traduzirá para inglês, e eu que não me preocupe com as outras línguas, o alemão, o italiano e o espanhol têm os seus intérpretes, mas só se eu quiser. Procuro a pessoa na cabine, o vidro é um tanto fosco, apercebi-me do aceno e de um rosto sorridente. E então, tudo aconteceu. Levantei-me e fui em direção à cabine, a senhora que me recebe à porta é uma quase cinquentona, as maçãs do rosto lembram a cor do pêssego, tem um olhar esverdeado, o cabelo de um castanho muito claro, onde raiam já umas ripas de branco, ténues. Apresentamo-nos, há aperto de mão, ela chama-se, percebi bem, Annette Cantinaux. E desabridamente pergunto-lhe se podemos almoçar juntos, ocorreu-me, imagine-se, a ideia de um romance, trata-se de alguém que combateu na guerra da Guiné, que ama uma belga, os dois não podem por enquanto, por razões profissionais, viver juntos, telefonam muito, sobretudo ele, que tem vindas mensais a Bruxelas, procura estar junto da mulher amada, ela também faz o possível, embora tenha por obrigação de ser intérprete e trabalhar para a comissão, não só o tempo muito ocupado, não pode dizer que não, há as conferências internacionais, pendularmente tem que ir ao Luxemburgo, interessa-lhe muito porque é melhor pago, embora o trabalho seja uma estafa, um tédio de manhã à noite, é aquela gente da estatística, mas tudo fazem estes cinquentões por cruzar as suas vidas.

Annette Cantinaux, vejo-lhe bem na face, está arrelampada com o pedido que lhe faço, mas acede, iremos almoçar juntos e falar-lhe-ei do que me está a passar pela cabeça, este estranhíssimo rompante de alguém que tem tanto que fazer e que recua trinta anos e põe na correspondência as vidas anteriores. A intérprete, pasmo, acha a ideia interessante, está pronta a ajudar-me. “Parece que me reservou um papel que me assenta bem, na vida real, sou uma mulher divorciada, com filhos a singrar na vida, até me posso dar ao luxo de me embeiçar por um português, vamos vivendo juntos à experiência, ainda com uns bons anos até chegar à reforma. No entretanto, damos um ao outro elementos para o seu romance”. A reunião prosseguiu toda a tarde, à saída despedi-me de Annette, ainda vou fazer compras, faz parte da minha rotina, trago um saco de lona que se encherá de vitualhas num supermercado Delhaize, e dali parto para o aeroporto. Annette já me deu todos os contactos telefónicos, mail e endereço postal, com surpresa, vejo que ela mora bem perto da Rue T’kint, na Rua do Eclipse. Entrámos no metro em Schumann, saio na Gare Central, já de mochila aviada, só faltam as compras para os filhos. É nisto, que antes de sair do metro eu digo a Annette, “Que bom título para um livro, Rua do Eclipse!”.

Rua do Eclipse

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20929: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (5)