sexta-feira, 1 de maio de 2020

Guiné 61/74 - P20929: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (5)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2020:

Queridos amigos,
A perda de uma grande amiga, a madrinha da minha filha mais nova, contristou-me tanto que me levou a uma romagem de saudade àqueles meses que vivi na Ilha de São Miguel, daqui embarquei para formar batalhão no RI 1, na Amadora, de onde fui expelido por ser "ideologicamente inapto para a guerra de contra-guerrilha, mormente no Ultramar Português", e por obra do destino passei para o CTIG, lançaram-me no Cuor, aqui vivi 17 meses e fui alvo de um dos maiores desafios da minha vida, Missirá completamente incendiada, houve que a reconstruir em tempo recorde, o que aconteceu.
O tempo açoriano passou veloz, cimentei amizades, as duas recrutas passaram num ápice, enamorei-me da terra, da sua cultura, da sua religiosidade tão sentida. Daí este testemunho, um penhor de gratidão a todos que me fizeram tanto bem e que me ajudaram a perceber que há um momento na vida em que saímos de casa dos pais para começar a obra nossa.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (5)

Mário Beja Santos

Nestes cerca de cinquenta anos de saudade latente, estou feliz porque quem ganhou mais foram os açorianos, não eu. Quando ali arribei, naquele ponto minúsculo do oceano havia escassíssimo turismo, uma indústria conserveira que tinha escassa difusão nacional, a indústria tabaqueira era de cunho local, tal como as cervejas e refrigerantes, o chá era mal conhecido, se mal comíamos laticínios no continente seguramente que os laticínios açorianos não apareciam no mercado continental, onde hoje estão em plena vanguarda, havia águas minerais como as Lombadas, que depois desapareceram, não me lembro de ver licores em Portugal Continental, na altura não se falava nos vinhos, era um requinte beber o Verdelho do Pico, carnes e enchidos açorianos não eram conhecidos aqui, o artesanato tinha escassa difusão como as compotas e mel, só o ananás é que aparecia nos mercados continentais, espero não estar a cometer um pecado por omissão.

Imagem da indústria conserveira açoriana

Como tudo mudou! Na Expo 98, a Região dos Açores apresentou-se garbosamente, adquiri uma caixa de brochuras sobre produtos dos Açores, como felizmente ia visitando regularmente belezas naturais que sempre me tocaram o que li só confirmava como os Açores estavam a conhecer em várias frentes um grande desenvolvimento. Logo o turismo, uma indústria que prosperara, bastava visitar São Miguel, Terceira ou Flores, e não era um turismo de alternativos, tratava-se de um compósito de visitantes com posses e turismo de massas, num doseamento que não punha em risco a identidade e a caraterização dos patrimónios. As conservas são conhecidas em vários continentes e entre nós altamente apreciadas, como altamente apreciados são os charutos de fabrico local. No meu tempo já se bebia a cerveja Melo Abreu, hoje a gama de produtos estende-se aos refrigerantes de maracujá e às águas tónicas e os chás da Gorreana e de Chá Porto Formoso asseguram infusões leves e muito aromáticas.

Plantação de chá na Ilha de S. Miguel

É desta beleza natural que vêm os gostosos laticínios açorianos

Lembro-me de ter comido queijo de S. Jorge muito antes de viver em S. Miguel. Mas a indústria de laticínios local tinha modesta dimensão. Hoje sentimos o seu peso nos escaparates dos supermercados: as manteigas, os queijos de bola e fatiados e em barra, há o queijo de S. Jorge e do Pico, predomina a denominação de origem Açores. E guardo saudade daquele tempo em que no Café Nacional, enquanto comensal, podia começar a refeição com queijo fresco acompanhado de pimenta da terra e ter à sobremesa uma rodela de ananás. E veio-me à memória o dia em que no Café Gil ouvi pedir um licor do Ezequiel, curioso pedi também para mim, nem deu para estranhar, entranhou-se logo, é digestivo de que não perco oportunidade, nos bons e maus momentos. Estes licores são feitos com ananás e maracujá sobretudo, mas também se encontram feitos à base de amora, tangerina, banana e anis, tudo feito com segredo, bem entendido. O meu “maracujá do Ezequiel” é preparado a partir de polpa fresca de maracujá roxo, é um licor de 26 graus, foi uma das maiores aquisições de bebida que importei da minha jornada micaelense.


Em 1967, vinho para mim nos Açores era o Verdelho do Pico, nada barato, o que acompanhava as refeições eram vinhos continentais de modesto valor. Pois foi precisamente em 1964 que se iniciou o plano da reconversão vitivinícola dos Açores, dava-se primazia às castas nobres Verdelho dos Açores, Arinto e Terrantez do Pico, vinte anos depois criavam-se zonas demarcadas da Graciosa, Terceira e Pico, habituei-me a acompanhar um bravo de peixe boca-negra ou filetes de abrótea com vinhos de mesa, só recordo inicialmente as marcas Basalto e Terras de Lava. Pequenas produções, é certo, mas são vinhos de estalo. Hoje há mesmo confrarias, há o Museu de Vinho dos Biscoitos, a confraria é a do vinho Verdelho dos Biscoitos.

Vinha açoriana, imagem retirada da revista Visão, com a devida vénia

Voltando a 1967, interessei-me em saber que águas minerais existiam, bebi a água das Lombadas, não quis outra. Vinha da nascente das Lombadas, a norte da Lagoa do Fogo. Quando lera Gaspar Frutuoso e as suas Saudades da Terra, encontrei referência às águas minerais. Nos meus regressos sucessivos, estranhei a falta das Lombadas, disseram-me ter havido um problema de poluição, depois bebi a água Glória Patri e Serra do Trigo mas a nostalgia pesa muito, beberia de bom grado aquela aguinha gaseificada com um gosto ligeiramente férreo, uma boa companheira.


Recordo o artesanato, os trabalhos com as escamas de peixe, a partir do osso da mandíbula do cachalote ou dos seus dentes, os trabalhos em madeira aproveitando o cedro, o jacarandá e o mogno, mas também os bordados extremosos, os bonecos de palha de milho, as colchas. Não me poupei a viver acompanhado deste artesanato. Tinha visto um belíssimo trabalho artesanal de registo do Senhor Santo Cristo dos Milagres, a minha amiga Cremilde Tapia informou-me que a Graça Páscoa era possuidora de um talento único, levou-me a sua casa, e no meu escritório guardo um trabalho seu primoroso, paro várias vezes diante dele para contemplar a finura das escamas do papel recortado, do jogo de cores até chegarmos à figura central daquele Cristo sofredor indumentado em toda a sua glória.

Centro de Artes Contemporâneas, S. Miguel

Imagens do basalto açoriano

O basalto era omnipresente, dei conta dele mal desembarquei. Pegando na brochura distribuída na Expo 98, vale a pena reproduzir alguns elementos: “Nome de uma pedra de tom cinzento-claro, de origem vulcânica. Em S. Miguel, área de exploração de basalto, fica no concelho de Ribeira Grande. Os seus mantos lávicos foram originados há mais de cinco mil anos, no decurso da erupção do vulcão do complexo do Fogo. Assente na grande área de junção das placas da Europa e África, a Ilha Terceira tem como principal zona de exploração uma escarpa de 120 metros de altura e mais de um quilómetro de comprido na sua superfície, resultado do assentamento do vulcão Guilherme Moniz. O basalto é largamente utilizado na arquitectura regional, tanto na construção civil como na decoração de fachadas. A pedra trabalhada tem uma vasta gama de aplicações, como pavimentos, alvenaria, cantonaria ou decoração de interiores – mesas, lareiras ou bancos”.



Chegou a hora da despedida, o rogo de minha mãe cumpriu-se, vim são e salvo. A estadia açoriana, é minha profunda convicção, foi crucial na minha preparação para lides belicosas, inseriu-se na minha identidade, visito-a quer com carinho de peregrino quer como membro da terra, aquelas atmosferas, odores, amenidade de vida, património construído, os poentes deslumbrantes, estarrecedores, tudo me pertence. Para que o adeus seja imenso, irrepetível, aqui se deixam as imagens do local onde entre 1967 e 1968 apanhava transporte para os Arrifes, belíssimo local este Largo 2 de Março, tão bem tratado, mostrando o palácio onde vivia o governador civil, o representante do Estado Novo. O troço da SCUT é a imagem de uma transformação, um dos índices do desenvolvimento, e que são muitos: na saúde e na educação, na investigação científica, nas atividades económicas. Fiz bem em ir buscar uma caixa dos produtos açorianos apresentados na Expo 98. Tenho sido observador de todas essas transformações e posso dizer sem hesitação que vim são e salvo mas se há parcela do nosso terrunho que mais se desenvolveu e beneficiou do quadro democrático foi este rincão de onde parti e cheguei são e salvo.
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Nota do editor

Último poste da série d e24 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20897: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (4)

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