sexta-feira, 24 de abril de 2020

Guiné 61/74 - P20897: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (4)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Fevereiro de 2020:

Queridos amigos,
Vou a caminho dos 23 anos, saí definitivamente de casa, ganho consciência de que posso comandar homens sem voz do trovão nem requintes de militarão. É a primeira vez na vida que tenho que gerir os meus tostões, sem pedir nada a ninguém. E em menos de seis meses sou alvo de um acolhimento excecional, faço amizades inquebrantáveis, senti-me confortado por trabalhar e viver num local paradisíaco.
Terei ainda o privilégio, nos 50 anos subsequentes, de ir acompanhando as transformações que se irão operar nesta região atlântica, um dos pontos do meu país que mais progrediu.
Aquele dia de outubro de 1967, a minha mãe agarrou-se dizendo que pedia a Deus que eu regressasse são e salvo, parecia que eu ia fazer uma expedição para o Ártico, era a separação, agarrar-se-á com a mesma fortaleza um ano depois, em 24 de julho de 1968, com o mesmo apelo ao divino. Tudo correu de feição, e quer os Açores quer a Guiné marcaram-me indelevelmente, tal como o amor que a minha mãe me deu.

Um abraço do
Mário


Peço a Deus que tu regresses são e salvo (4)

Mário Beja Santos

Estou a pagar o preço de remexer em papéis que tinham ficado intocados durante décadas. E de uma gaveta há muito fechada à chave a minha filha entrega-me uma bandejinha de prata, que na época recebi com tanta emoção, recordação do 5.º Pelotão, tem no verso o nome da ourivesaria, Martins do Vale & Irmão, LDA., Rua Machado dos Santos, 89-91, Ponta Delgada, posso imaginar o que significou esta prova de gratidão para quem a deu e a recebeu. Não merecia ter ficado tanto tempo escondida, tratada como peça de sótão, fui buscar um limpa-metais, removeu-se a injusta negridão, um tanto às três pancadas, ainda há marcas de cré, limpar-se-á melhor depois, para pôr em lugar de destaque, era imperioso aqui se expor e agradecer, com eterna lembrança aos autores da dádiva.


Falei dos primeiros passeios, daquele deslumbramento progressivo, a descoberta da costa norte, o ficar especado num miradouro tendo como anfiteatro um casario disperso até ao longe, onde se avistavam as canadas, e depois o abismo sobre o mar, como se caminhasse para o infinito ouvindo o bramido das ondas enfurecidas. A estranheza que me causou aquela areia preta, mas tudo se superava com o fragor de toda aquela massa líquida com espuma alvíssima, o sibilar dos ventos, fazendo dançar as criptomérias e araucárias. E as pastagens, sempre verdejantes, o prazer de iniciar a instrução nos Arrifes tendo como pano de fundo aqueles montes, ouvindo o chocalhar das vacas, em busca de melhor ração. Descobrir a Lagoa das Sete Cidades, passear a toda a volta, foi acontecimento. Mas um dia, esta generosa amiga, Cremilde Tapia, fez questão de me mostrar uma outra feição do mundo genesíaco, a Lagoa do Fogo. Ainda hoje o meu coração balança, porque a memória não me atraiçoa, era um silêncio obsidiante, um ar fresco que me tomava os pulmões e só de quando em quando se ouvia aquele choro convulso dos cagarros, imagine-se, e isto não é pura fantasia, que mais tarde, nas noites expetantes de Missirá, andando a fazer a ronda junto dos postos de vigilância, conversando baixinho para quem policiava a mata em derredor, o choro das hienas, lembram crianças perdidas na floresta, pois nesses instantes, associava aquele choro aos cagarros, que descobrira na Ilha de São Miguel, um piar tétrico, felizmente, de curta duração.

Lagoa do Fogo

Para onde quer que me voltasse, quando regressava da instrução nos Arrifes, era quase inevitável passar pelo Coliseu, na altura decadente por fora e decadente por dentro. Conversando com os meus instruendos, descobri que uma boa parte deles jamais em tempo algum se tinha sentado numa sala de cinema. Andei às voltas, à espera de uma programação aliciante. E publicitou-se para a semana seguinte Lord Jim, pedi autorização para um transporte militar levar o pelotão dos Arrifes a Ponta Delgada e retorno, jantar cedo para chegar ao cinema um pouco antes das nove horas. Foi um êxito. Os mancebos ali estiveram de olho arregalado até assistir ao sacrifício de Lord Jim, mais de duas horas a fio. Abrira uma boceta de Pandora, outros aspirantes sentiram-se impelidos a repetir o evento com os seus instruendos. Pois sempre que passo por aqui, esta sala lindamente restaurada, lembro-me dessa noite e de gente feliz para quem se rasgara uma nova janela sobre o universo.

Coliseu Micaelense

Retorno à vida extremamente difícil destas famílias dos Arrifes, doía-me as carências alimentares, ver a avidez com que levavam a colher à boca, primeiro a sopa, depois as batatas com atum ou cavala, a satisfação com que partiam com a malga vazia, até à próxima, amanhã queremos saber quando é que volta a ser oficial de dia. Espero que estejam todos vivos, andarão pela casa dos sessenta anos, que a vida não lhes tenha sido madrasta, em S. Miguel, nos States ou no Canadá.


Quando saí de casa, em outubro de 1967, lembrei à minha mãe que quando regressasse iria tratar de mim, queria ser independente. Fiz um longo discurso em que lembrei a dívida impagável pelo amor, pela solicitude, pelo modo como me inculcara valores, merecia uma reforma descansada, sem mais filhos para tratar. Tudo correu às avessas. Não morrera de dois cancros, aquelas pernas começaram a encurvar, sofria horrores, com injeções a frio nos joelhos, o coração não resistiu, cedeu em 20 de janeiro de 1982, tinha 67 anos, vivera em Angola até aos 16, frequentou o curso de Canto no Conservatório, tirou o diploma de Magistério Primário, fez a campanha nacional de educação de adultos, era bibliotecária na Maternidade Dr. Alfredo da Costa. Graças aos amigos açorianos, veio conhecer S. Miguel e eu fiquei imensamente feliz, nessa altura já chegara a notícia de que ia regressar em breve, para formar batalhão, na Amadora.


Eis a minha gente, terá sido a derradeira fotografia de família. Foram mais de cinco meses e meio, duas recrutas em série, conheci alguma da gente mais amável do mundo, recebido com primores de hospitalidade, pela primeira vez na vida geria inteiramente o meu destino, suspirava para que o tempo de guerra passasse depressa, assentara ideias sobre o meu curso universitário. A roda da fortuna balançou em rodopio. Tempos depois de chegar à Amadora, serei dado como “ideologicamente inapto para a guerra de contraguerrilha, mormente no Ultramar Português”. Estava selado o meu destino. Disse-me o major, com sorriso escarninho e o desprezo na beiça, “agora vá infetar os pretos com as suas ideias…”. Aprendera nos Arrifes a ter confiança em mim próprio para aquelas lides militares, o que se seguiu não foi jugo leve, foi só a experiência que me burilou o caráter e me preparou para as tempestades e bonanças com que a vida nos compraz. Agora só me resta um relato, para pôr termo a estas elucubrações de saudade, fazer um curto périplo pelos últimos 50 anos de arrebatada paixão açoriana.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 17 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20864: Esboços para um romance - I (Mário Beja Santos): Peço a Deus que tu regresses são e salvo (3)

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