sábado, 8 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24462: Efemérides (402): No passado dia 1 de Julho de 2023, a União das Freguesias de Perafita, Lavra e Santa Cruz do Bispo, Concelho de Matosinhos, homenageou os seus Combatentes mortos na Guerra do Ultramar (Carlos Vinhal)

Cemitério de Perafita, onde decorreu a cerimónia principal de homenagem aos Combatentes da União de Freguesias de Perafita, Lavra e Santa Cruz do Bispo, mortos na Guerra do Ultramar

O programa deste ano de homenagem aos combatentes da União de Freguesias de Perafita, Lavra e Santa Cruz do Bispo, mortos na Guerra do Ultramar, teve o seu início pelas 09h45, nos cemitérios das freguesias de Lavra e de Santa Cruz do Bispo com a deposição de uma coroa de flores por parte da Presidente da União de Freguesias, Dra. Lurdes Queirós e do Presidente do Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes, Tenente Coronel Armando Costa junto do Panteão aos Combatentes Lavrenses e da placa/memorial em Santa Cruz do Bispo, onde constam os nomes dos falecidos daquelas duas freguesias. Igualmente foi feito o toque de homenagem aos mortos pelo clarim dos Bombeiros de Matosinhos - Leça da Palmeira.
Foto 1 - Cerimónia de deposição de coroas de flores junto ao Panteão aos Combatentes de Lavra mortos na Guerra do Ultramar
Foto 2 - Cerimónia de deposição de coroas de flores junto da placa evocativa dos Combatentes de Santa Cruz do Bispo mortos na Guerra do Ultramar
Foto 3 - Placa evocativa da Memória dos Combatentes de Santa Cruz do Bispo mortos na Guerra do Ultramar

De seguida, realizou-se em Perafita, conforme planeado para este ano, a cerimónia militar promovida pelo Núcleo, em colaboração com a União das Freguesias de Perafita, Lavra e Santa Cruz do Bispo – Pólo de Perafita.

Pelas 10H30, iniciou-se a comemoração com a concentração dos participantes em frente ao edifício da Junta, sendo içada a Bandeira Nacional ao mesmo tempo que o Grupo Coral do Núcleo entoava o Hino Nacional e a Guarda de Honra, constituída por um clarim dos Bombeiros de Matosinhos-Leça da Palmeira, pelo Porta Guião do Núcleo e por alguns sócios combatentes, prestava as honras militares à Bandeira Nacional.
Foto 4 - Hastear das Bandeiras no edifício da Junta de Freguesia de Perafita, ao mesmo tempo que era cantado o Hino Nacional por um grupo de sócios do Núcleo de Matosinhos da LC

Posteriormente, os participantes seguiram em romagem ao cemitério local, acompanhando o Porta Guião do Núcleo.

Foto 5 - Deslocação para o Cemitério de Perafita

Pelas 10H45, já no cemitério junto à placa/memorial onde se encontram os nomes dos combatentes de Perafita que tombaram pela Pátria, realizou-se a cerimónia militar onde três sócios, um de Lavra, um de Perafita e outro de Santa Cruz do Bispo fizeram a chamada de todos os combatentes mortos na Guerra do Ultramar da União das Freguesias, seguindo-se a deposição de uma coroa de flores, pela Presidente da Junta e pelo Presidente da Direção do Núcleo. A cerimónia prosseguiu com os respetivos toques de homenagem aos mortos e, após um minuto de silêncio, foi cantado um salmo pelo Grupo Coral do Núcleo e lida a prece do Exército pelo Vice-Presidente do Núcleo.
Foto 6 - Vice-Presidente da Direcção do Núcleo de Matosinhos da LC, SAj Oliveira, que teve a seu cargo a condução da cerimónia
Foto 7 - Chamada pelos Combatentes de Lavra mortos na Guerra do Ultramar
Foto 8 - Chamada pelos Combatentes de Santa Cruz do Bispo mortos na Guerra do Ultramar
Foto 9 - Chamada pelos Combatentes de Perafita mortos na Guerra do Ultramar

Dando continuidade ao programa traçado, foram proferidas alocuções alusivas ao ato pelo Presidente da Direção do Núcleo e pela Presidente do executivo da Junta da União das Freguesias de Perafita, Lavra e Santa Cruz do Bispo. Por último, o Grupo Coral do Núcleo cantou o Hino da Liga dos Combatentes. A cerimónia militar no próximo ano vai ser realizada em Santa Cruz do Bispo.
Foto 10 - Deposição de uma coroa de flores pelos responsáveis autárticos no Memorial do Cemitério de Perafita
Foto 11 - Deposição de uma coroa de flores pelos Presidente da Direcção e Presidente da Mesa da Assembleia Geral do Núcleio de Matosinhos da LC no Memorial do Cemitério de Perafita
Foto 12 - Alocução do senhor Tenente Coronel Armando Costa, Presidente do Núcleo de Matosinhos da LC
Foto 13 - Alocução da senhora Presidente da União das Freguesias de Perafita, Lavra e Santa Cruz do Bispo, Dra. Lurdes Queirós
Foto 14 - O pequeno grupo de sócios do Núcleo de Matosinhos da LC que interpretou o Hino Nacional, um cântico religioso e o Hino dos Combatentes, no decorrer das cerimónias

Texto e fotos: © Núcleo de Matosinhos da LC
Edição das fotos e legendagem: Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24461: Efemérides (401): Rescaldo da cerimónia de Homenagem aos Combatentes da União de Freguesias de Ovadas e Panchorra, Concelho de Resende, levada a efeito no passado dia 1 de Julho de 2023 (Fátima Soledade / Fátima Silva)

Guiné 61/74 - P24461: Efemérides (401): Rescaldo da cerimónia de Homenagem aos Combatentes da União de Freguesias de Ovadas e Panchorra, Concelho de Resende, levada a efeito no passado dia 1 de Julho de 2023 (Fátima Soledade / Fátima Silva)

Combatentes homenageados, representando também todos os ausentes


Resende

União de Freguesias de Ovadas e Panchorra

Homenagem aos seus Combatentes - Dia 1 de julho de 2023

A União de freguesias de Ovadas – Panchorra homenageou os combatentes do Ultramar, no dia 1 de julho de 2023, pelas 15h00 com a celebração da Eucaristia a cargo do Padre Abel, na Igreja de Ovadas. Este, durante a homilia, dissertou sobre o padecimento que os combatentes sustentaram aquando do cumprimento do dever em prol da Pátria. A celebração foi abrilhantada pela banda de Música de S. Cipriano-a-Velha, dirigida pelo maestro, professor Carlos.

Durante a cerimónia religiosa foram distribuídas lembranças a cerca de trinta combatentes que lutaram na Guiné, em Angola e em Moçambique e projetados vídeos com as resenhas das experiências dos militares homenageados.

Ainda se destaca a participação sublime da Leonor Macário, neta de um combatente, que leu um testemunho e cantou um poema, textos escritos por ela que relataram a experiência do avô na sua comissão em Moçambique.

Da Liga de Combatentes do Núcleo de Lamego esteve presente uma delegação de associados, salientando-se o Presidente Coronel Valdemar Lima, que usou da palavra, para agradecer aquela sublime homenagem, tendo realizado o desfecho da cerimónia no interior da igreja. O Sr. Coronel salientou, de forma digna, o papel dos combatentes portugueses desde a I Guerra Mundial e consignou o facto de muitos viverem abandonados pelo Estado Português.

Relembrou que apesar de há um ano ter sido aprovado o Estatuto do Antigo Combatente, proposto pela Liga dos Combatentes, não houve mudanças consideráveis e que o valor correspondente ao salário mínimo seria um valor insignificante despendido pelo Orçamento do Estado. Estas palavras receberam, por parte dos presentes, uma afetuosa aclamação de apreço.

Após a celebração religiosa, seguiu-se a inauguração de um Memorial aos Combatentes do Ultramar, no Largo do Pelourinho, onde foi entoado o Hino Nacional por toda a população presente e entidades convidadas.

Nesta homenagem também estiverem presentes o Presidente da Assembleia Municipal de Resende, Dr. Jorge Machado, Vereadores e Presidentes de Juntas de Freguesia do concelho.

Salienta-se ainda a presença e total empenho do Presidente da Junta de freguesia de Ovadas, Manuel Afonso, na merecedora Homenagem aos Combatentes.

No fim da cerimónia foi servida uma deleitosa merenda a toda os convidados e habitantes, no Largo do Pelourinho, perante um cenário paradisíaco e rural, onde só a Natureza e os bons corações imperam.

1 de julho de 2023
Fátima´s

Foto 1 - Exterior da Igreja
Foto 2 - Interior da Igreja de Ovadas
Foto 3 - Responsável pela Homilía Religiosa, Senhor Padre Abel
Foto 4 - Neta Leonor a homenagear o avô
Foto 5 - Banda Musical de S. Cipriano-a-Velha
Foto 6 - Combatente da CCAÇ 1421, as Fátima's, Leonor e Presidente da Junta
Foto 7 - O Senhor Coronel Valdemar Lima e a Leonor, neta de Combatente
Foto 8 - Inauguração do Monumento no Largo do Pelourinho

Fotos e legendagem: © Gentil Pereira
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Notas do editor

Vd. poste de 22 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24424: Efemérides (399): Convite para as cerimónias de homenagem aos Heróis do Ultramar da freguesia de Panchorra, dia 24 de Junho e freguesia de Ovadas, dia 1 de Julho, concelho de Resende, conforme os programas (Fátima Soledade / Fátima Silva)

Último poste da série de 27 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24435: Efemérides (400): Rescaldo da cerimónia de homenagem aos Heróis do Ultramar dos lugares de Panchorra e da Talhada, Concelho de Resende, levada a efeito no passado dia 24 de Junho (Fátima Soledade / Fátima Silva)

Guiné 61/74 - P24460: Os nossos seres, saberes e lazeres (580): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (110): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Com o direito que me assiste a ter inquietações parvas, quando aqui chego sobra-me a pergunta se não será a última vez que percorrerei este lugar de tantas lembranças, onde trabalhei com afinco, foi a partir de aqui que passei a acreditar no sonho europeu, a fazer amizades consolidadas por largos intercâmbios. Depois atiro para trás das costas este cismar lúgubre de quem não teme a velhice mas que em circunstância alguma teima em não a ignorar, e goza-se da atmosfera, é o prazer de visitar e revisitar, até à exaustão das horas, o tempo não demora a passar e há o peso das memórias como este primeiro dia de férias retrata, desde o bairro típico de Marolles até ao Monte das Artes, aconteceu assim em 1977 e acontecerá sempre até à última das visitas, sim, José Saramago tem toda a razão, a viagem nunca acaba, quem acaba é o viajante.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (110):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (1)


Mário Beja Santos

Regresso, parece que cheguei a uma segunda pátria, vou em passo acelerado pelos longos corredores de Zaventem, de afogadilho compro o bilhete de comboio, na gare central carrego o passe, desço ao cais do metropolitano, destino Herrmann-Debroux, depois o tram, já estou na Cité du Logis, sinto-me em casa, abraços, sorrisos, primeiras conversas, amesendamos, troca de impressões sobre o que pretendo fazer nos próximos dias. Surpreendo quem me ouve, amanhã vou peregrinar em homenagem a Bruegel, depois de fazer a feira da ladra, havendo tempo disponível vou conversar com Bruegel no Museu das Belas Artes. No dia seguinte, peço companhia para passar o dia em Malines, tenho saudades. Mais conversa, deita e levanta, de manhã cedo parto para a minha romaria. Mas porquê Bruegel? Para mim, é um belga antes do tempo. Nasceu em Breda (Países-Baixos) em 1525, fez trabalho de ateliê em Antuérpia, viajou por Itália, regressa a Antuérpia e trabalha na impressão de livros e de estampas. Estabelece-se em Bruxelas em 1563, aqui morre 6 anos depois.

A Bruxelas de Bruegel tem a presença dos Habsburgos, há mecenas, por exemplo o Cardeal Granvelle encomendou-lhe "A Queda dos Anjos Rebeldes" (1562), é uma obra que me toca profundamente, confesso que quando admirei pela primeira vez o quadro pensei que estava diante de um Bosch. É um pintor do pormenor, da alegria, da alegoria, de uma certa transgressão. A sua arte é de tal maneira impressiva e tão admirada que os seus descendentes, como Bruegel, o Moço, ou David Teniers, aceitaram encomendas com base em trabalhos do mestre consagrado. E há um pouco de Bruegel hoje no chamado centro histórico de Bruxelas. Logo a chamada Casa Bruegel, em Marolles, na rue Haute, subsistem dúvidas se ele habitou ou não, mas o seu filho e o seu descendente David Teniers confirmadamente aqui viveram. Este meu adorado pintor está sepultado em Notre-Dame de la Chapelle, teve durante muito tempo na parece um quadro de Rubens, Cristo Dando as Chaves a S. Pedro, o original está hoje em Berlim, o que eu vou visitar é uma cópia, o mestre bem merecia que estivesse aqui o original, paciência.

Presumível autorretrato de Pieter Bruegel, o Velho
O Recenseamento em Belém, quadro de Bruegel, Museu das Belas Artes, Bruxelas

O que me toca neste quadro é a movimentação da cena e a colocação mais do que discreta que Bruegel põe na figura da Virgem e de S. José na grande mancha do tapete de neve que nos faz olhar a cena do recenseamento, notável encenação.
A queda dos anjos rebeldes, quadro de Bruegel, Museu das Belas Artes, Bruxelas

Palavra de honra que ainda hoje vejo elementos de Bosch num espaço todo ele feito de movimentação e onde a ordem é surreal, no fundo, as figuras angélicas são as executoras a par de, como elemento central, um guerreiro ao serviço da Fé expulsa para as profundezas aqueles que ousaram rebelar-se, os olhos revolteiam-se de cima para baixo e de baixo para cima, o mestre coloca os anjos sobre o azul celeste, dimensionando a altura dos céus por onde caem os entes maléficos, cá em baixo é caos e a desordem, somos levados a antever que nas profundezas os rebeldes serão recebidos em lugar demoníaco, daí o valor didático que qualquer um destes quadros comporta.
La Maison Bruegel
Notre-Dame de la Chapelle, a principal igreja de Marolles

Às vezes, quando me dá para madrugar, e é domingo, vou em primeiro lugar até ao templo da igreja ortodoxa grega, no boulevard de Estalinegrado, todos aqueles cânticos e rituais me empolgam, depois subo até aqui e às vezes tenho sorte de ouvir os cânticos da comunidade polaca que aqui se encontra. E lá vou, açodado pela rue Blaes até à feira da ladra, vai começar o espetáculo.
Aqui é chão sagrado, salvo seja. É tudo para degustar, mexericar dentro das caixas, é assim que aparecem livros que são edições preciosas, missais com inúmeras imagens, encadernações assombrosas; há as pastas com desenhos, álbuns de viagens, não faltam caixas com medicamentos e cosméticos, montanhas de tecidos, rabecas, tapetes, há especialistas em arte africana e que sabem o que estão a vender, não vos canso mais com estes hossanas de colecionador. Como viajo em voos low-cost, guardo saudades do tempo em que podia entrar no avião com molduras enormes, calhamaços, sacos com porcelanas e ainda a bagagem normal e as vitualhas de lembranças, esse tempo já não existe, impõe-se comprar o miudinho, para isso é que se leva um casacão com bastanres bolsos, virão todos carregados. Mas confesso que esta magia da profusão, o discutir os preços com estes mercadores árabes que vão esvaziar as casas e tudo trazem, desde o clister e o penico até aos carrinhos de linhas, me entusiasma, é o sonho de uma pechincha, como às vezes acontece, uma vez comprei um prato de Meissen por escassos euros, nem esbeiçadelas tinha, mas é achado que não se repete, a não ser…
Já venho aviado da feira da ladra e desço Marolles, pretendo percorrer o boulevard Maurice Lemonnier, impõe-se uma visita a um vendedor de livros em segunda mão. Nisto olhei para o chão e comovi-me imenso, aqui se guardam memórias de judeus que foram levados para campos de concentração, lembra um tanto aqueles bispos e aristocratas que punham os seus túmulos no chão das igrejas, inevitavelmente para serem pisados, aqui é para quem tem a dita de olhar para o chão e curiosidade para ir ver o que se passa, então algo se abate na nossa alma destas vidas roubadas por um fanatismo racial que eclodiu num país de vanguarda na ciência, tecnologia e na música. Pois aconteceu, como a lembrança destas vítimas nos faz recordar.
Restos de um passado, talvez quando a Bélgica era potencia esplendorosa, belos mosaicos no chão de um estabelecimento que fechou portas mas que guarda esta belíssima guarnição, resquício de muitas décadas atrás que o novo retalhista felizmente preserva.
Um dos charmes de Marolles é encontrar belos edifícios entre construções modernas, não sei exatamente o que gosto mais, talvez o equilíbrio dado pela porta, a varanda, os mosaicos, aqui fiquei especado diante destes dois prédios, casas de habitar, espero que este património resista ao camartelo, felizmente que ainda há muito Arte Nova e Arte Deco, de primeiríssima água, não me canso de referir, há mesmo excursões só para ver estas preciosidades.
A cidade guarda ciosamente belos murais, nunca tinha dado por este, digam o que disserem, que são elementos flamejantes que introduzem cor, são modalidades estéticas que agilizam a comunicação e quebram monotonias na uniformidade dos edifícios.
Como é que é possível deixar de falar do Palácio da Justiça quando ele tem esta forma de Big Brother, olha-nos lá do alto, aparece e desaparece entre ruas e ruelas, impossível falar de Marolles sem mencionar que o Palácio de Justiça, a maior extravagância de Bruxelas, em circunstância alguma pode passar despercebido.
Por esta eu não esperava, num estabelecimento com ares de luxuoso cheio de fotografias artísticas, vejo na montra, na intensidade que só o branco e preto dão esta imagem da Grand Place, do lado esquerdo um pouco do edifício municipal e um conjunto de casas de corporações ao fundo. Bela fotografia. Pudesse eu, vinha comigo.
Aqui se mostra um revivalismo, ainda há muitos admiradores do chamado estilo Tiffany, obviamente que estamos a ver aqui cópias como cá em baixo se podem ver cópias de ferragens de outros tempos. O que mais me fascina é o carrossel das cores e das formas.
Como é que é possível eu nunca ter dado por esta fachada, já foi casa de drogarias, tintas e esmaltes e vernizes, é uma reminiscência do princípio da Arte Deco, por favor preservem-na, deixem-na nesta rampa de entrelaçamentos de culturas, gostei muito de descobrir esta relíquia.
É a vez de entrar para uma exposição, intitula-se cabaré de curiosidades, o artista chama-se Christophe Demaître, este artista pega em objetos mais do passado do que do presente e encaixa-os num emolduramento que nos exige percorrer de fio a pavio os espaços fechados, podem conter livros, fotografias eróticas, retratos, relógios sem préstimo, quinquilharia, e ficamos com a sensação de que temos a árvore e a floresta, somos atraídos pelo pormenor, depois recuamos e é o todo que se torna proeminente, ganha a dimensão do macrocosmos. Não fico de boca aberta, há mais de um século Marcel Duchamp agarrou em objetos, despiu-os da função e outorgou-lhe outra, tenho para mim que ele é o pai fundador desta arte de artifícios que parece inextinguível.
E termino este dia de festim noutro lugar que tanto venero, o Monte das Artes, por aqui descendo vou dar à Grand Place, mas o que realmente neste momento me interessa é saudar este recanto de Bruxelas que conheci exatamente assim há mais de 50 anos e que tem um lugar especial no meu coração.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24443: Os nossos seres, saberes e lazeres (579): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (109): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: do Paúl a Pombas, de Pombas a Porto Novo, de Porto Novo a Mindelo, o regresso (8) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P24459: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (3): Um tiro de misericórdia!

Contos com mural ao fundo (3)> Um tiro de misericórdia! 

por Luís Graça


1. Conheceste-o no Chez Toi, em Bissau. Ou melhor, reconheceste-o, de Tavira, do CISMI, do Centro de Instrução de Sargentos Milicianos. Haviam pertencido, ambos, à Companhia de Instrução comandada por uma figura impagável, um tenente gordinho, que, dizia-se, tinha-se coberto de “honra & glória” no Norte de Angola. Já esqueceste o seu nome, para bem da tua higiene mental.

Em Bissau, estavas hospedado naquela espelunca, de paredes de tabique, que à noite funcionava como boite. (Era assim que, na época, se chamavam, “en français, comme il faut!”, todas as espeluncas da noite, em Lisboa e,  onde se bebia uísque marado, "de Sacavém", e havia umas miúdas de minissaia e cueca vermelha, peludas,  que te faziam olhos remelosos, e cócegas no pescoço… Tinham unhas compridas, como os felinos, pintadas de um verniz vermelho horroroso. Faziam, pela vida, coitadas. E viviam nas periferias de Lisboa que cresciam então como cogumelos, em arredores como a linha de Sintra, começando na Reboleira.)

O raio da espelunca de Bissau tinha um drôle de nom, chique, sedutor, Chez Toi, “Em tua casa” … Convidativo ao voyeurismo: "entra, senta-te, pede o que quiseres, estás em tua casa, não importa que seja a 4 mil quilómetros de distância de Lisboa"… Era já uma antevisáo do bar de alterne...

Para os gajos do mato, desenfiados em Bissau, de tomates inchados e bolsos cheios de patacão, que não viam há meses um pedaço de chicha (leia-se: carne de fêmea, branca, “comestível", em linguagem de "cabra-macho"), o Chez Toi devia ter um especial encanto que tu nunca conseguiste saborear nem descortinar…

Enfim, trazia aos machos solitários, tugas, que vaguegavam por Bissau, como baratas tontas,  algumas vagas reminiscências das não menos quentes noites de Lisboa e Porto, que o resto era paisagem, no Portugal de então, tão maneirinho, tão chato, tão piegas, tão púdico, tão beato, tão triste, tão desolador, tão deprimente, tão… (Porra, já chega!)

Uma deusa chamada Sophia tinha, em 1962, descrito no seu  “Livro Sexto” (um livrinho de poemas de cento e poucas páginas),  esse país liliputiano, onde quem mandava era um velho abutre:

“O velho abutre é sábio e alisa as suas penas, / A podridão lhe agrada e os seus discursos / Têm o condão de tornar as almas mais pequenas.”

Já não sabes como lá foste parar, ao Chez Toi… Publicidade enganosa, decerto. Indicação do turismo local, ou de um algum "proxegeneta" da 5ª Rep (o café  Bento), enfim, não te recordas. Para o caso também não interessa. Andavas desenfiado, há uns dias, em Bissau, antecipando o gozo do início da licença de férias na Metrópole. Tu e outro gajo da tua companhia. Aguardavam o avião da TAP para Lisboa. Tinham vindo com alguma antecedência, de noite, no "barco turra", rio Geba abaixo, outra pequena grande aventura...

Sim, era assim que se dizia: o gozo da licença de férias!... Eram as primeiras férias pagas da tua vida, pagas pela Pátria, com o soldo do soldado… (Farias questão de dizer, mais tarde, já "paisano", que não tiveste problemas de consciência nem devolveste, à Pátria, o dinheiro, sujo, de “mercenário”, saudação a que tiveste direito à chegada, num dos primeiros grafitos que te lembras de ver, naquela época, num dos muros do quartel da Avenida de Berna, em Lisboa: “Não sejas otário, / muito menos mercenário; / isto vai mal, / diz não à guerra colonial”).

Otário, mercenário?!
... Confessaste depois que te sentiste mal. Insultado, mesmo com as tuas reservas em relação à puta da guerra em que estavas metido. Sentiste que era um insulto a quem, como tu e os teus soldados, não deram o salto para o estrangeiro de fora, e cumpriam em África, longe de casa, uma missão em nome da Pátria, a qual estava acima de todos os regimes... Santa ingenuidade, a tua!

Estava-se em plena época das chuvas, talvez julho de 1970, já não te recordas bem ao certo. A atmosfera em Bissau era asfixiante. E tu deixavas para trás um ano de intensa atividade operacional. Nessa noite foste dar uma volta ao bas fond, como estava na moda dizer-se. Intelectualóide que se prezasse, arranhava o francês de praia ou, pelo menos usava expressões, coloquiais em francês, como o vachement bête, ou emmerder, copain, copine… (Ecos serôdios e longínquos do Maio de 68 em Paris que tu nunca viverias. ) Mas o bas fond em Bissau era, para a tropa-macaca, o Pilão, com má fama e bom proveito.

2. Abra-se aqui um parênteses, para explicar que tu tinhas feito uma aposta, tu e o teu parceiro do Chez Toi, coisas de machos solitários, bravatas, que fazem parte dos ritos de passagem da rapaziada da época: ir "dormir uma noite ao Pilão", antes de embarcar no avião da TAP; o primeiro a “desemparar a loja" e a "cavar", pagava o almoço no restaurante Pelicano, no dia seguinte. Era um teste de resistência, de virilidade e de coragem física... Pobres diabos!...

Ficaram os dois numa espécie de "casa da mariquinhas” lá do sítio, de toscas tabuinhas e telhado de zinco, e cada um foi com a sua “bajuda", cabo-verdiana, os quartos lado a lado, e com a "saída de emergência" por ali perto, mentalmente assinalada, para o que desse e viesse... Trajavam à civil e andavam... desarmados.

Às duas da noite, tu levantaste-te, vestiste as calças, deixaste a nota de 100 pesos que havias combinado com a rapariga, em cima do caixote que servia de mesinha de cabeceira, e saíste...

A atmosfera era sufocante, o zinco transformava as casas em estufa quente, as paredes de tabique deixavam passar os ruídos, de fora e de dentro, e sobretudo não aguentaste o choro de uma criança que dormia debaixo da cama, ao lado do balde do mijo, e em quem tu nem sequer tinhas reparado quando entraste, à luz mortiça de uma vela... Era demais para o teu estofo!...

Bateste à porta do outro quarto onde estava o teu parceiro, três toques secos, com os nós dos dedos, como combinado, e, passada meia hora, regressavam os dois, ao Chez Toi, meio "almareados" (o termo era do teu companheiro de viagem, oriundo do baixo Alentejo, Ourique ou Odemira, já não te lembras ao certo) e bêbados de sono.

3. Logo por azar nessa noite alguém arrombara a porta do teu quarto no Chez Toi, forçara o cadeado da mala de cartão e fanara-te uma Dimple. Duas ou três garrafas de uísque, velho, Old Parr e Dimple, para oferecer a quem devias favores, lá na terra, eram toda a riqueza que tu levarias a bordo para a Metrópole, para além de algumas peças, baratas, de quinquilharia e artesanato, que ainda tencionavas comprar no Taufik Saad na véspera do embarque.

Foste de imediato falar com o gordo do gerente do Chez Toi, que estava a aviar copos ao balcão. A conversa tornou-se logo desagradável: sebento, empertigado na defesa da honra e do bom nome da casa, o gerente começou por pôr em dúvida a tua versão. Mas acabou por aceitar ir averiguar o sucedido, face aos veementes protestos, teus e do teu parceiro de aventuras...

As suspeitas recaíram logo num dos rapazes, ali do "chão de Papel", que fazia o serviço de quartos. Em Bissau, não havia criadas, só criados, como no resto da África colonial ou pós-colonial.

Gerou-se algum burburinho. Alguns clientes, à civil, mais exaltados, de copo de uísque ou gin tónico na mão, juntaram-se a ti e ao teu solidário parceiro do Pilão.

O clima, no barzeco, que tinha música ao vivo, começou a ficar propício à pancadaria e até ao linchamento, depois dos teus protestos perante o gerente, por causa do arrombamento da tua mala de cartão. É a famosa lei de Gresham do conflito, a bola de neve que amplifica o conflito e faz perder de vista o pomo da discórdia e os protagonistas iniciais. Toda a gente, afinal, se sentiu lesada...

Tu e o sabujo do gerente já tinham chegado a um arremedo de acordo de cavalheiros, e o ladrãozeco de uísque, que andava a servir às mesas, suava por todos os poros, ao ver que não tinha nenhum álibi (nem porta, a não a ser a principal, para fugir). Foi quando alguém mandou um copo ao chão e berrou, alto e bom som, um chorrilho de insultos de teor racista:

– Filhos da puta de nharros, cambada de barrotes queimados, turras de um cabrão!... A culpa é do Caco Baldé, que obriga aqui um gajo a foder o coirão no mato para lhes proteger as costas em Bissau!...

O garnisé que cantava de galo àquela hora da noite era um gajo, branco, provavelmente militar, trajando à civil, de estatura meã, mais baixo do que tu, mas mais entroncado. Estava visivelmente eufórico, para não dizer embriagado. 
Tiveste então a infeliz ideia de o tentar acalmar, respondendo cilizadamente à sua provocação:

– Ó amigo, vai-me desculpar mas a conversa não é consigo, nem o assunto lhe diz respeito… Além disso, eu estou numa companhia de africanos, lá no mato, no leste, e não gosto de ouvir expressões como nharros ou barrotes queimados, porque são racistas, ofensivas para com os meus camaradas que arriscam todos os dias a vida…

O tipo não te deixou sequer completar a frase, saltou como uma onça, de garras afiadas, direitinhas à tua carótida… Foi a primeira (e única) cena de porrada, de luta corpo a corpo, em que tu te viste envolvido no teatro de operações da Guiné… De facto, nunca tinhas sentido o "inimigo" tão perto, olhos nos olhos… Foram os dois ao chão, mas os gajos do conjunto (caixa, guitarra elétrica e voz) continuaram a tocar, no meio da algazarra, o "All you need is love"...

Providencialmente foi nessa altura que “ele” apareceu, fardado... "Ele", o teu anjo da guarda... Com divisas de furriel, segurando o energúmeno com autoridade e classe, e salvando-te daquela situação de embaraço, apuro e aflição.

Escusado será dizer que o teu agressor também eram afinal,  militar e, ao que parece, estava em Bissau, de férias, ou em trânsito para o mato, noutra pensão rasca, ali ao lado. Os amigos, de ocasião, que o acompanhavam, tiveram o bom senso de o levar prontamente até ao cais apanhar o cacimbo da madrugada, antes que aparecesse a "ramona"… Quando te deste conta, eram já três ou quatro da madrugada…




Excerto do desdobrável publicitário do "Chez Toi", restaurante, pensão e "boite", sita na rua eng Sá Carneiro. Exemplar da coleção do nosso coeditor Carlos Vinhal. Data: Bissau, 15 de fevereiro de 1971. Parece que em 1973 também era conhecido por "Gato Negro"...

Foto (e legenda): © Carlos Vinhal (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



4. “Ele”, o teu salvador, que por sinal também estava hospedado no Chez Toi, era nem mais nem menos do que "o teu conhecido de Tavira", com quem de resto tu ainda tinhas umas velhas contas por saldar…

Resumidamente, aqui a vai a tua versão dessa história que te estava atravessada e que remontava ao quarto trimestre de 1968, em Tavira.

Numa das sessões de treino de boxe, que fazia parte da instrução da malta, levaste dele uns socos valentes nos queixos. Tu tinhas adotado uma atitude claramente passiva de quem não estava disposto "nem a aleijar nem a ser aleijado"… Esperavas, com a tua ingenuidade e boa-fé, que o teu parceiro, com mais cabedal do que tu, 10 ou 12 cm mais alto do que tu, entrasse no jogo do faz-de-conta… Como muitos dos instruendos do CISMI faziam, de acordo com um "tácito código de honra" mais ou menos assumido, se não por todos, por muitos, para quem Tavira era apenas mais uma estaçáo do calvário...

Ele assim não o entendeu (ou não quis). Pelo contrário, assumiu logo de início uma postura viril, de combate. Sabia que estava a ser observado pelo instrutor e que aquilo era um teste de agressividade. E que pontuava. Estava sobretudo  obcecado com a ideia de vir a poder ser um dos três melhores do curso, e assim, eventualmente, livrar-se de ir parar ao Ultramar, gorada a hipótese de ter ido para a Polícia Militar, como era o seu sonho…

Ficaste-lhe com um pó dos diabos!... Ainda hoje te doem os queixos da “porrada” que apanhaste, segundo confidenciaste mais tarde… Não tinhas, pois, grandes razões para te lembrar dele como um dos bons camaradas de tropa, bem pelo contrário!... Acabaste por perdê-lo de vista, até ao dia em que o Niassa levou as vossas duas companhias para a Guiné. Trocaram um olá, meio embaraçados ou "encavacados", já o navio tinha passado as Canárias.

– O que lá vai, lá vai. Boa sorte! – foram as únicas palavras de despedida que vocês disseram um ao outro, nos Adidos, em Bissau, depois de relembrarem o episódio de Tavira.

– Sem ressentimentos! E agora, que Deus e os santos te protejam!– terás gracejado tu.

5. Voltaste a reencontrá-lo, por um bambúrrio, nessa noite, no Chez Toi. Afinal, iam ambos de férias. Ficaram com os contactos um do outro. Ele ia para Bragança, sua terra natal. E foi aí que o procuraste, quase cinquenta anos depois, na sequência de uma estadia em Montesinho onde tu passaras uns dias, em turismo. 

Eis o teor, resumido, da sua longa conversa, de um homem que esperavas encontrar precocemente envelhecido, como alguns dos antigos combatentes que tu conhecias, uns já viúvos, solitários e amargurados, a lidar mal com a reforma, as doenças da idade e os fantasma do passado. Mas, não, o Carvalho (era o seu apelido) tinha ganho um novo fôlego, uma "alma nova",  entregando-se agora às delícias da natureza (fazia visitas guiadas no Parque Natural de Montesinho).

(...) “Talvez não acredites, mas já devo ter começado uma boa meia dúzia de diários da Guiné. Lá, e depois ainda cá, nos primeiros anos… Havia coisas que queria esquecer mas não conseguia, aliás ainda não consigo…

“Sem surpresa, vejo agora que afinal alguns gajos também tinha o seu… diário secreto. Num dos últimos almoços da nossa companhia, lá em baixo, no Sul, tínhamos combinado levar fotos e papéis da Guiné e houve vários camaradas que trouxeram os seus apontamentos, alguns escritos em aerogramas, outros em agendas de merceeiro, outros ainda em simples cadernos com linhas… No meu caso, eram simples notas,  esboços, rabiscos, até recortes de jornal e revista e alguns desenhos. Tinha a mania de ilustrar algumas situações, emboscadas, ataques e flagelações, operações, cenas da vida quotidiana das tabancas por onde andei… Uma forma, afinal, de passar o tempo e de fazer o gosto ao dedo. (Acho que tinha algum talento para a ilustração, que acabei por não desenvolver, depois da "peluda".)

“Muitas dessas notas são hoje ilegíveis ou quase. Acreditas que já não sou capaz de decifrá-las? Como a minha letra mudou, camarada, como o mundo mudou! E sobretudo, eu próprio, como e quanto eu mudei!...

“Sobretudo agora que estou reformado e tenho todo o tempo do mundo (ou penso que tenho, enquanto não me der nenhuma macacoa), tive a veleidade de retomar os meus papéis. Mas a escrita é algo de muito penoso. E eu, afinal, prefiro dar os meus passeios pela serra.

“Tentei voltar à escrita, mas a mão está perra. Escrevo pouco e sempre à mão. Não, não uso computador. Podes pensar o que quiseres, chamar-me analfabeto, infoexcluído ou outros mimos. Não acreditas, mas não tenho mail. Toda a gente tem pelo menos um, quando não dois ou três … Mas isso não me impressiona nem me intimida. A única concessão que faço é o telemóvel. Não por mim, mas por terceiros, pelos meus filhos e netos, pelos amigos, pela malta do grupo dos amigos de Montesinh0

"Mas antes que me perguntes porquê, eu adianto-te algumas explicações. Em primeiro lugar, odeio ecrãs de visualização. Foram muitos anos na banca, no 'front office'. Foram muitos anos de trabalho na banca. Escravizado. Robotizado. Por agências de província, até me fixar na minha terra natal (sou daqui perto de Bragança, da mesma aldeia da nossa amiga comum que que te deu o meu número de telemóvel. no posto de turismo).

 Enfim, uma vida a aturar os caprichos de gente mal educada, sem valores, deslumbrada com os sinais exteriores de riqueza que os fundos comunitários e outro dinheiro fácil, de especulação, corrupção e negociatas, trouxeram a este desgraçado país. E os cabrões dos chefes das agências a dar-te cabo da mona, a obrigar-te a impingir ao cliente tudo e mais alguma coisa, desde fundos de pensões, seguros de saúde, boas e más acções, quinquilharia da Vista Alegre, títulos da dívida pública, cartões de crédito, papéis, papéis e mais papéis…

"É uma fobia, uma alergia, não imaginas! Dá-me urticária só de tocar num teclado de computador. Não tenho, aliás, computador em casa. Quando preciso, o que é raro, cada vez mais raro, vou à Biblioteca Municipal. Voltei a Bragança, sim, bom filho à casa torna. A minha mulher é professora primária e reformou-se primeiro do que eu... 

"A província tem coisas boas e coisas más, como tudo na vida. Mas eu não suportaria viver numa grande cidade como Lisboa ou Porto. Lisboa, por exemplo, deprime-me. Lá sinto-me como um lobo solitário, encurralado, apanhado pelo Fojo do Lobo.

"Pois é, voltei à folha de papel A4, e ao caderno de linhas, como na 4.ª classe. Escrevo num bloco notas, de argolas. Desses baratuchos. Adoro arrancar, com vigor, as folhas do meu caderno de argolas quando me engano ou me arrependo do que escrevi. Adoro amarrotá-las, fazer uma bola e lançá-la para o cesto dos papéis. Sou um frustradíssimo jogador de básquete, tal como fui um não menos candidato falhado a Polícia Militar. Ser PM era o meu sonho, não sei se te lembras. Mas não cresci para lá dos meus 1,84 metros. A partir dos 15 ou 16 anos, estagnei.


"Ainda tenho a minha velha máquina de escrever. Ou melhor, dactilografar. Era assim que se dizia no meu tempo. Ainda trabalhei, antes da tropa, com um conhecido advogado aqui da praça que, depois do 25 de abril, haveria de chegar a deputado por um dos partidos do arco do poder. Eu fazia a biscatagem de aprendiz de solicitador. Bati muitos requerimentos em papel selado…

“Ainda te lembras do papel selado?!... Quando o chico do sorja da minha companhia queria lixar alguém (só se metia com os desgraçados dos cabos e dos soldados ou dos milícias), ameaçava com um 'Vou-te embrulhar em papel selado!'…


“Mas agora acabou. A minha velha máquina de datilografia está arrumada a um canto.  Foi das primeiras máquinas portuguesas, a aparecer no mercado,  com teclado HCESAR. Não me perguntes a marca... Messa, dizes tu?...Ah, sim, seria uma Messa... De qualquer modo, o problema é que não encontro fita para ela, a fita preta e vermelha.

"Ainda tive a veleidade, a pretensão ou, melhor, a ingenuidade, de tentar escrever um livro com as minhas memórias da Guiné, os meus quase dois anos de vida na Guiné… Não me perguntes porquê, não te saberia responder. É um problema cá comigo, um certo ajuste de contas com o passado. Um certo passado de um certo jovem que passou demasiado depressa para a idade adulta.


“Tenho hoje a sensação de que nos roubaram a juventude. Não sei se se passa o mesmo contigo… Ajuste de contas comigo, com o meu fado. Não, não é nada contra ninguém. Não sou daqueles que invetiva os outros, um mal tão tipicamente português. Os outros não sei quem são, não ando à procura de álibis, desculpas, pretextos ou bodes expiatórios. O outro sou eu, ponto final parágrafo.

"Nasci em 1947  
  como tu, suponho, somos da mesma colheita, não?! – muito longe do mar que aliás eu só vi quando fui para a tropa, não tenho vergonha de dizê-lo… A mobilidade era reduzida, o carro era um luxo. Um país governado por um velho celibatário e a sua criada. Ah!, e o Cerejeira!... Lembras-te do Cerejeira, o cardeal-patriarca de Lisboa ?... Foi o tempo e o lugar que me calharam na rifa, foi o meu fado. Não fiques à espera que eu me lamente, chore baba e ranho, ou que arranque os cabelos. Sou o que sou, ponto final.

"Não, não sinto raiva, desejo de vingança, vergonha, culpa, nada disso em que possas estar a pensar. Porque haveria eu de sentir culpa? Não matei, não torturei, não violei, não roubei, não desejei a mulher do próximo (se desejei alguma, era a mulher mais nova do régulo, que tinha muitas)… 

"Enfim, julgo ter cumprido os 10 mandamentos da lei de Deus que me ensinaram os meus pais, e em que fui educado na catequese e no seminário. Tive uma educação cristã, como toda a gente na minha terra. Fui igual a centenas de milhares de jovens da minha, da nossa geração. Nem cobardes nem heróis. Uma geração a que tenho orgulho de ter pertencido! (Podes apontar aí!).

“Matei, não matei?... Se matei, Deus já mo perdoou.. Há gente que pode não concordar comigo. Na realidade, matei, na guerra; não sei das balas que disparei; a matar, de certeza, foi apenas por razões humanitárias, ou em autodefesa... Matei, sim, conscientemente, para abreviar o sofrimento de um  homem ferido de morte. Explicar-te-ei isso melhor, mais à frente.

'Medo?', perguntas tu. Vamos lá ao medo... Sim, cheguei a ter medo, algumas vezes. Fora do arame farpado. Nunca dentro. Em colunas, em emboscadas, em operações no terreno do IN, em que estávamos mais expostos. O medo é próprio de qualquer animal e faz parte da maneira como avaliamos (e lidamos com) os riscos… Julgava-me bem preparado, física e mentalmente, para enfrentar o difícil teatro de operações da Guiné. Perdi cedo as ilusões!...


"Se bem te lembras,  fui logo de início parar à Região de Quínara e a pior humilhação que tive,  foi uma desidratação que sofri, num patrulhamento ofensivo, na margem esquerda do Rio Corubal, não longe já da foz… Ainda era 'periquito' e não soube gerir o esforço e sobretudo os dois cantis de água que nos eram distribuídos… Fui helievacuado para vergonha minha e gáudio de alguns sacanas da companhia, 'meias-lecas', filhos da mãe...

"Mas depressa recuperei a minha autoridade dentro do grupo. E a primeira situação foi quando, lá para os lados de Gampará, apanhámos um pequeno grupo do PAIGC, a caminhar na nossa direcção, na orla da bolanha. Estavam em contraluz, não nos viram... Uma bazucada deixou o gajo da frente sem pernas, à beira da morte… Os nossos maqueiros fizeram o que puderam, mas a vida daquele homem, um corpulento balanta (ou biafada, não te sei dizer ao certo),  mais ou menos da minha estatura, estava por um fio… 

"Chamar um heli, nem pensar, foi a palavra do capitão, miliciano, que estava à beira de um ataque de nervos, e deu ordens para uma rápida retirada do local… E o 'turra' ali a agonizar num pavoroso sofrimento… O capitão pediu um voluntário para lhe dar o tiro de misericórdia… Ninguém se ofereceu, nem sequer o sacana do alferes 'ranger', comandante do meu pelotão.

"Silêncio sepulcral. Na mata até os bichos se tinham calado. A cigarra, a gralha, o macaco-cão calaram-se face ao espectáculo de violência dado pelos seres humanos. A malta do meu pelotão, o 1.º pelotão, olhava, constrangida, ora para o capitão, ora para o alferes e para mim, à espera de um sinal, um gesto, uma ordem. 

"Ainda 'periquitos' com dois ou três meses de Guiné, nenhum de nós estava preparado para decidir o que fazer num caso destes. O dilema era abandonar o prisioneiro moribundo ou abreviar-lhe o sofrimento. Nunca ninguém tinha dado um tiro de misericórdia. Lembro-me apenas de ter andado a brincar com a baioneta da mauser a espetar sacos de areia, em Santa Margarida.

"Eu próprio ponderei as várias hipóteses: o capitão, antigo seminarista como eu, era uma pessoa com princípios cristãos, dificilmente aceitaria deixar um homem, mesmo inimigo, a agonizar no mato, entregue aos 'jagudis' e às formigas carnívoras; àquela hora da manhã, o comando do batalhão estava incontactável e o PCV, a DO 27, com o sacana do major de operações do batalhão de Tite, nem sequer ainda estava no ar; um tiro denunciaria ainda mais a nossa posição; restava a catana do guia (que não era de grande confiança) ou a nossa faca de mato... Acabar por sangrar o desgraçado como o porco da minha aldeia era uma ideia que me repugnava...

"Nos olhos do 'turra' pareceu-me ler uma última súplica: 'Depressa, 'tuga', dá-me o tiro de misericórdia... E que o teu deus te pague!'

"Fui tocado, acredita, por aquele olhar de humanidade! Não, não era um animal ferido que estava ali à minha frente, o porco do mato que eu abatera e sangrara de imediato, havia dois meses atrás, numa caçada noturna. (Como transmontano, nado e criado no planalto, eu era caçador, não direi exímio, mas era bom caçador.)

"Não, não era um porco, era um homem que estava ali a morrer, igual a mim, exceto na cor da pele, na Kalash que empunhava, na farda verde-oliva, esfarrapada, que vestia, nas sandálias de plástico que calçava, na bandeira por que lutava... Trazia amuletos no peito e nos braços, tal como eu que usava um fio de ouro com o crucifixo. Não sentia qualquer ódio por aquele homem, até há pouco meu inimigo, e que certamente me mataria, se eu fosse a presa e ele o predador. Deitado no chão, de braços estendidos, sem pernas, as tripas de fora, o sexo esfacelado, gemendo baixinho, numa poça de sangue, só me podia inspirar horror, piedade e compaixão...


"E num ápice pus a G3 em posição de tiro a tiro, rodei o corpo dele com a minha bota de modo a ficar de bruços, encostei o cano da espingarda à nuca e disparei... Uma única bala, um som breve, abafado, pôs termo ao sofrimento brutal daquele homem, tão ou mais jovem do que eu... A sua cabeça estoirou, a massa encefálica misturou-se com a lama das minhas botas de lona… Nunca mais esquecerei aquela cena atroz. E nunca mais usei aquelas botas, conspurcadas!

"Seguimos a corta-mato, o Destacamento A, a caminho da LDM que nos esperava no tarrafo, no Rio Geba, para nos recolher... E até lá os nossos grupos de combate seguiram, em passo estugado, no 'gosse-gosse', mas em total silêncio. A minha companhia, que era independente, regressou a Bissau, para mais tarde ser colocada no Leste. 

"Durante semanas, os olhos vidrados do 'turra' não me saíram da mente. Ganhei a alcunha, sádica, injusta e repugnante, de 'Furriel Ca...rrasco'. (Como eu gaguejava um pouco, quando me enervava, chamavam-me inicialmente Car...valho, os meus camaradas milicianos). Até mesmo os homens da minha secção passaram a olhar-me de outra maneira, com um misto de admiração, de respeito e de terror...

"É uma estranha sensação. Nunca tinha morto um homem. Como sabes, naquela guerra raramente se via a cara do inimigo. Só vias o rosto dos prisioneiros ou de um ou outro guerrilheiro abatido junto ao arame farpado... No mato eles tinham quase sempre tempo de arrastar ou de ocultar os cadáveres... Era por isso que a malta fantasiava com os números das baixas causadas ao inimigo em combate.

“Só mais tarde, muito mais tarde, li o conto do Miguel Torga, 'O Alma Grande', o gajo de manápulas compridas que era chamado, na aldeia, para apressar a morte dos moribundos. Chama-lhe eutanásia, se quiseres. Neste caso, ele usava o travesseiro para sufocar o moribundo. Tudo isto a pedido da família, que devia ser cristã-nova, e que queria evitar com isso que viesse o abade com os últimos sacramentos, a extrema unção…

"Em todo o caso, sempre estive e continuo a estar bem comigo. Não fui, não sou, nenhum assassino, ajudei apenas a humanizar a morte de um semelhante... Tornei-me imprescindível na companhia: o capitão voltou a solicitar os meus serviços mais uma vez ou duas vezes. Numa ocasião, recusei-me, obrigando-o a mandar evacuar, para o Hospital Militar de Bissau, um roqueteiro do PAIGC que aprisionámos, com ferimentos graves... Soube mais tarde que tinha sobrevivido, e que se integrara na vida civil, regressando à sua terra natal, ao abrigo da política do Spínola. E isso deu-me algum consolo. Noutra ocasião, o capitão que achava que eu daria também um bom torcionário, e poderia  pôr a 'cantar' um  gajo suspeito da população...  Recusei-me, indignado, o suspeito, um mandinga,  foi entregue à PIDE de Bafatá.

"Não, nunca usaria a faca de mato, se é isso que queres saber. Daquela vez (e única, juro) preferi o tiro na nuca... Fiquei com má fama, dentro e fora da companhia. E, no fim, nem uma merda de um louvor me deram, a começar pelo safado do capitáo, que depois meteu o chico...

"Estou-te a falar disto, pela primeira vez, a ti que eu considero um verdadeiro camarada da Guiné, um camarada que eu conheci de Tavira, e a quem eu peço perdão pelo 'uppercut' que te ia pondo KO... Mas instrução era instrução, era guerra a brincar, era reinação... Na Guiné, era guerra, guerra a sério, e guerra era guerra... E se calhar até me estás hoje agradecido pelos reflexos que tiveste de desenvolver para te saberes defender melhor... Em resumo, sei que hoje és capaz de me compreender sem me julgar nem condenar. Confio em ti. E acho que estamos quites,  pensando no apuro de que eu te livrei em Bissau, no tal Chez Toi... (já não me lembrava do nome).

"Nunca falei nem falarei disto aos meus filhos, nem sequer à minha mulher. Um deles até é juiz, ainda pior. Eles nunca entenderiam, e provavelmente eu até correria o risco de perder a sua estima... Como não invoco nem comento estes episódios, cruéis, da nossa guerra, nos convívios anuais da minha companhia... Há um pacto de silêncio em relação âs merdas que cada um fez... Hoje tratam-me pelo meu apelido Carvalho (sem gaguejar nem gracejar), não sou mais o 'Furriel Ca...rrasco', que era uma coisa que me irritava solenemente. Pode ser que o façam nas minhas costas, não tenho a certeza, mas espero bem que não.


(...) "Como te disse, deu-me alguma tranquilidade ler, muitos anos depois, essa obra-prima do Miguel Torga, transmontano como eu, o 'Alma Grande',  da colectânea 'Novos Contos da Montanha', se não me engano... 

"De alguma maneira eu fui também essa portentosa figura do 'abafador', a que na aldeia se recorria para apressar a morte dos entes queridos em agonia... Numa época em que não havia médicos nem cuidados de nenhuma sorte, muito menos paliativos ou terminais... E em que só se chamava o médico, como ainda acontecia na minha aldeia, no tempo dos meus avós e dos meus pais... para passar o atestado de óbito!”...

6. Despediram-se com um grande abraço apertado, com a promessa de tu voltares, em setembro, a seu concelho, para ele te levar a  ver e a ouvir a brama dos veados no Parque Natural de Montesinho... 

Ele por lá ficou, em Bragança, a fazer aquilo que lhe dava gozo, que era ser guia da natureza e levar grupos a descobrir a sua região... Tu voltaste ao Porto, não sem ficares por um bom par de horas, ao longo da autoestrada, a A4, com um nó na garganta não menos apertado que o teu abraço...

© Luís Graça (2019). | Última revisão: 7/7/2023
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Nota do editor:

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24458: Notas de leitura (1595): "Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Março de 2021:

Queridos amigos,
O romance infantil de Fernanda de Castro que tem por fundo a Guiné revelou-se um verdadeiro bestseller, dez edições. A autora estava atenta ao politicamente correto e foi introduzindo modificações, designadamente na década de 1960. Há estudos sobre estas representações e no texto indica-se um deles, que me parece bastante elucidativo. Os desenhos de Ofélia Marques são um valor acrescentado nestas edições de 1940 e 1947, a artista modernista possuía um dom para o desenho gráfico e pelas imagens que aqui se publicam avulta imediatamente a segurança do traço, o talento com que se encontra equilíbrio na ocupação do espaço, a candura das figuras, o sábio uso da profundidade e da proximidade, veja-se Mariazinha com o óculo a avistar o navio, Mariazinha de carabina ao ombro, com o seu estojo de Kodak, caminhando para a embarcação e entre ela e o barco o sol nascente; o modo como ela comunica com Vicente e a espetacular imagem do regresso a Portugal, Vicente, todo lampeiro, extravagantemente vestido a cumprimentar os irmãos de Mariazinha; e há uma imagem de perfeição, quando o príncipe Mamadu, acompanhado pelo seu séquito a vem pedir em casamento, nada falta, desde o formigar deste séquito do jardim da casa até à surpresa de Mariazinha dada em perfil. Uma história que encantou crianças favorecida por uma admirável artista modernista imbatível na modelização da ternura infantil.

Um abraço do
Mário



Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (2)

Mário Beja Santos

Em termos de literatura infantil de caráter colonial, não houve obra que competisse com as já dez edições que conheceu "Mariazinha em África", obra de Fernanda de Castro. A primeira edição foi de 1925, teve desenhos de Sarah Afonso, a edição de 1940 e a seguinte, de 1947, teve desenhos de Ofélia Marques. Fernanda de Castro nunca escondeu que este livro era marcadamente autobiográfico, em pequena acompanhou a mãe e foi para Bolama, onde o pai dirigia a capitania. Há algo de catártico nesta história de ternura, a sua mãe morrerá inopinadamente na capital da colónia, Fernanda de Castro dedicar-lhe-á versos de uma grande beleza.

São, pois, memórias as que Fernanda de Castro transpõe para o romance infantil: a viagem de barco, a chegada a Bissau e a transferência para Bolama, o dormir protegida por um mosquiteiro, o pai apresenta-lhe a criadagem: o criado de mesa e acompanhante do irmão, Afonsinho, o criado dá pelo nome de Lanhano; Adolfo, que é como os crocodilos, tem dentes a mais; Undôko, o jardineiro, Mamadi, filho de régulo, está lá em casa para aprender português e o cozinheiro Vicente. Mariazinha assiste a festas, passeia-se no rio, vê um tornado, faz amizade com a filha do governador, Ana Maria, têm um passeio acidentado, a viatura empana, regressam numa espécie de maca com troncos entrelaçados e feixes de palha, suportada por dois nativos; há mesmo uma caçada e o deslumbramento dos indígenas quando veem aquela menina de cabelo de cor de palha.

Mariazinha adora animais e lá vai conseguindo juntá-los numa espécie de jardim zoológico, não faltam macacos nem aves. No seu aniversário o pai oferece-lhe uma casa para os macacos. Surge uma garça-real que tem uma perna partida e depois de curada de vez em quando regressa para visitar a Mariazinha. Naquela ilha de Bolama há sempre surpresas, uma vez chega um gramofone, outras vezes entra um chimpanzé bebé no Jardim Zoológico, o dia de aniversário decorre com imensas alegrias para a criança. E chega uma canhoneira, o cozinheiro Vicente prepara galinha, cabrito e pudim para os convivas, Mariazinha prepara uma jarra de flores, é uma receção admirável, os marinheiros elogiam o caril delicioso, o cabrito assado, os doces.

Organiza-se um passeio a Buba, lá vai Mariazinha com a sua mala, o seu Kodak e a sua carabina, avistam-se crocodilos e na chegada a Buba há uma receção triunfal, mete dança e batuque, bem curiosa é a descrição que Fernanda de Castro faz do protocolo:
“Depois dos cumprimentos, a caravana pôs-se em marcha. À sua frente, ia o governador, o capitão do porto, o comandante da canhoneira e o régulo de Buba; em seguida, as senhoras, as meninas, os oficiais e o ajudante do governador; depois, os músicos, as crianças e as bajudas, que são as raparigas solteiras; e, finalmente, a multidão dos Fulas – pretos claros, de bonitas feições, amigos dos brancos e, por isso, talvez, muito simpáticos”. Também há batuque de bajudas, e não deixa de ser curiosa a apresentação que delas faz a autora: “As bajudas, raparigas solteiras, em geral com menos de 15 anos, envolvidas em panos coloridos da cintura até meio da perna, com o peito e os ombros cobertos apenas por colares de contas e de sementes, dançam graciosamente, agitando as pulseiras de prata e as anilhas de cobre dos pulsos e dos tornozelos”. O governador manda distribuir presentes.

No dia seguinte, faz-se uma apresentação ao governador, aparecem cavaleiros, emissários de régulos amigos que vêm cumprimentar o governador, aparecem cavalos ricamente ajaezados com arreios de couro lavrado, os cavaleiros trazem camisas de seda e obrigam os cavalos a executar uma espécie de dança. As meninas não deixam de observar que os cavalos têm as barrigas em sangue, espicaçadas pelas esporas de prata, e protestam contra esta selvajaria. Aparece o príncipe Mamadu, o herdeiro do régulo de Buba, alto, esbelto, com feições corretas, vem ricamente vestido, parece que este príncipe está perdido de amores pela Mariazinha. A menina vai aprendendo os usos e costumes da colónia. Por exemplo, a propósito dos Bijagós: “Mariazinha já ouvira o pai dizer que não havia nada mais difícil do que obrigar os Bijagós a receber dinheiro em notas. Como só se alimentam de arroz, de azeite de palma e de peixe seco, como os raros panos que usam são tecidos pelas mulheres, como são elas também que fazem aquelas esquisitas saias de palha, os Bijagós não querem dinheiro em papel, querem dinheiro em cobre e em prata para com ele fazerem colares, pulseiras e amuletos”.

Surge o príncipe Mamadu que traz lindos presentes, penas de avestruz, colibris, pulseiras de prata, chinelinhas de pele de gazela. Faz um discurso na sua própria língua, é Vicente quem traduz, diz que quer casar com a menina. Escreve Fernanda de Castro: “Então o capitão do porto compreendeu! Na Guiné, as raparigas casam muito novas e os casamentos são ajustados entre o noivo e o pai da noiva, muitos anos antes de se realizarem… Mamadu, que era príncipe e além disso muito rico e bem parecido, não pensou um só instante que o pai da Mariazinha rejeitasse a sua tentadora proposta. Por isso, caiu das nuvens quando o capitão do porto avançou para ele, furioso”. E corre o príncipe a pontapé e a sua comitiva.

Surge uma doença misteriosa, nunca chegaremos a perceber se é febre amarela, mas febre é e já há muita gente doente. O pai de Mariazinha decide que a sua família deve voltar, a despedida é de grande emoção, Vicente, o cozinheiro, insiste que quer vir com os patrões para Portugal, vai viajar de chapéu de coco e grande flor de lapela.

O regresso é uma viagem tormentosa, o navio vem sobrelotado, Ana Maria também regressa, passam por Cabo Verde, aportam no Mindelo, as meninas ficam impressionadas com a falta de árvores de flores e frutas, a mãe explica-lhes que ali se vivem secas intermináveis. Vicente diz que a comida é boa, mas precisa de arroz. E assim se chega a Lisboa, o vapor atraca no Cais da Rocha do Conde d’Óbidos, os manos ficam surpreendidos com o Vicente, que traja sobrecasaca e calça branca, gravata amarela e flor ao peito, sorridente e de botas de verniz, dá pulos de contente, Ana Maria despede-se de Mariazinha e assim termina esta história que tem a Guiné por fundo:
“Duas horas depois, já na velha casa da Outra Banda, enquanto as pessoas crescidas conversavam, enquanto as criadas punham na mesa pratos e travessas de arroz-doce e leite creme, os meninos recomeçavam, sob a amoreira da quinta, as suas eternas, as suas alegres brincadeiras de sempre. E sobre as suas cabeças desocupadas, leves como ventoinhas, brilhava de novo o sol, o lindo sol de Portugal!”.

Para o leitor mais interessado no estudo das representações coloniais desta obra, recomenda-se o trabalho de Margarida Isabel Melo Beirão intitulado Mariazinha em África, de Fernanda de Castro – Representações coloniais, tese de Mestrado do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2018: https://ria.ua.pt/bitstream/10773/25216/1/Documento.pdf.


Na antiga Calçada dos Caetanos, hoje Rua João Pereira da Rosa, muito perto do edifício da Liga dos Combatentes, que foi a habitação da escritora Ana de Castro Osório, perfila-se um prédio onde viveram Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, José Gomes Ferreira, Fernanda de Castro e António Ferro, Ofélia Marques e Bernardo Marques. Lá em baixo é a Rua do Século e lá em cima o Conservatório Naiconal e a Igreja dos Inglezinhos. Felizmente que todo este património arquitetónico está classificado.
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Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24448: Notas de leitura (1594): "Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (1) (Mário Beja Santos)