sexta-feira, 7 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24458: Notas de leitura (1595): "Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Março de 2021:

Queridos amigos,
O romance infantil de Fernanda de Castro que tem por fundo a Guiné revelou-se um verdadeiro bestseller, dez edições. A autora estava atenta ao politicamente correto e foi introduzindo modificações, designadamente na década de 1960. Há estudos sobre estas representações e no texto indica-se um deles, que me parece bastante elucidativo. Os desenhos de Ofélia Marques são um valor acrescentado nestas edições de 1940 e 1947, a artista modernista possuía um dom para o desenho gráfico e pelas imagens que aqui se publicam avulta imediatamente a segurança do traço, o talento com que se encontra equilíbrio na ocupação do espaço, a candura das figuras, o sábio uso da profundidade e da proximidade, veja-se Mariazinha com o óculo a avistar o navio, Mariazinha de carabina ao ombro, com o seu estojo de Kodak, caminhando para a embarcação e entre ela e o barco o sol nascente; o modo como ela comunica com Vicente e a espetacular imagem do regresso a Portugal, Vicente, todo lampeiro, extravagantemente vestido a cumprimentar os irmãos de Mariazinha; e há uma imagem de perfeição, quando o príncipe Mamadu, acompanhado pelo seu séquito a vem pedir em casamento, nada falta, desde o formigar deste séquito do jardim da casa até à surpresa de Mariazinha dada em perfil. Uma história que encantou crianças favorecida por uma admirável artista modernista imbatível na modelização da ternura infantil.

Um abraço do
Mário



Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (2)

Mário Beja Santos

Em termos de literatura infantil de caráter colonial, não houve obra que competisse com as já dez edições que conheceu "Mariazinha em África", obra de Fernanda de Castro. A primeira edição foi de 1925, teve desenhos de Sarah Afonso, a edição de 1940 e a seguinte, de 1947, teve desenhos de Ofélia Marques. Fernanda de Castro nunca escondeu que este livro era marcadamente autobiográfico, em pequena acompanhou a mãe e foi para Bolama, onde o pai dirigia a capitania. Há algo de catártico nesta história de ternura, a sua mãe morrerá inopinadamente na capital da colónia, Fernanda de Castro dedicar-lhe-á versos de uma grande beleza.

São, pois, memórias as que Fernanda de Castro transpõe para o romance infantil: a viagem de barco, a chegada a Bissau e a transferência para Bolama, o dormir protegida por um mosquiteiro, o pai apresenta-lhe a criadagem: o criado de mesa e acompanhante do irmão, Afonsinho, o criado dá pelo nome de Lanhano; Adolfo, que é como os crocodilos, tem dentes a mais; Undôko, o jardineiro, Mamadi, filho de régulo, está lá em casa para aprender português e o cozinheiro Vicente. Mariazinha assiste a festas, passeia-se no rio, vê um tornado, faz amizade com a filha do governador, Ana Maria, têm um passeio acidentado, a viatura empana, regressam numa espécie de maca com troncos entrelaçados e feixes de palha, suportada por dois nativos; há mesmo uma caçada e o deslumbramento dos indígenas quando veem aquela menina de cabelo de cor de palha.

Mariazinha adora animais e lá vai conseguindo juntá-los numa espécie de jardim zoológico, não faltam macacos nem aves. No seu aniversário o pai oferece-lhe uma casa para os macacos. Surge uma garça-real que tem uma perna partida e depois de curada de vez em quando regressa para visitar a Mariazinha. Naquela ilha de Bolama há sempre surpresas, uma vez chega um gramofone, outras vezes entra um chimpanzé bebé no Jardim Zoológico, o dia de aniversário decorre com imensas alegrias para a criança. E chega uma canhoneira, o cozinheiro Vicente prepara galinha, cabrito e pudim para os convivas, Mariazinha prepara uma jarra de flores, é uma receção admirável, os marinheiros elogiam o caril delicioso, o cabrito assado, os doces.

Organiza-se um passeio a Buba, lá vai Mariazinha com a sua mala, o seu Kodak e a sua carabina, avistam-se crocodilos e na chegada a Buba há uma receção triunfal, mete dança e batuque, bem curiosa é a descrição que Fernanda de Castro faz do protocolo:
“Depois dos cumprimentos, a caravana pôs-se em marcha. À sua frente, ia o governador, o capitão do porto, o comandante da canhoneira e o régulo de Buba; em seguida, as senhoras, as meninas, os oficiais e o ajudante do governador; depois, os músicos, as crianças e as bajudas, que são as raparigas solteiras; e, finalmente, a multidão dos Fulas – pretos claros, de bonitas feições, amigos dos brancos e, por isso, talvez, muito simpáticos”. Também há batuque de bajudas, e não deixa de ser curiosa a apresentação que delas faz a autora: “As bajudas, raparigas solteiras, em geral com menos de 15 anos, envolvidas em panos coloridos da cintura até meio da perna, com o peito e os ombros cobertos apenas por colares de contas e de sementes, dançam graciosamente, agitando as pulseiras de prata e as anilhas de cobre dos pulsos e dos tornozelos”. O governador manda distribuir presentes.

No dia seguinte, faz-se uma apresentação ao governador, aparecem cavaleiros, emissários de régulos amigos que vêm cumprimentar o governador, aparecem cavalos ricamente ajaezados com arreios de couro lavrado, os cavaleiros trazem camisas de seda e obrigam os cavalos a executar uma espécie de dança. As meninas não deixam de observar que os cavalos têm as barrigas em sangue, espicaçadas pelas esporas de prata, e protestam contra esta selvajaria. Aparece o príncipe Mamadu, o herdeiro do régulo de Buba, alto, esbelto, com feições corretas, vem ricamente vestido, parece que este príncipe está perdido de amores pela Mariazinha. A menina vai aprendendo os usos e costumes da colónia. Por exemplo, a propósito dos Bijagós: “Mariazinha já ouvira o pai dizer que não havia nada mais difícil do que obrigar os Bijagós a receber dinheiro em notas. Como só se alimentam de arroz, de azeite de palma e de peixe seco, como os raros panos que usam são tecidos pelas mulheres, como são elas também que fazem aquelas esquisitas saias de palha, os Bijagós não querem dinheiro em papel, querem dinheiro em cobre e em prata para com ele fazerem colares, pulseiras e amuletos”.

Surge o príncipe Mamadu que traz lindos presentes, penas de avestruz, colibris, pulseiras de prata, chinelinhas de pele de gazela. Faz um discurso na sua própria língua, é Vicente quem traduz, diz que quer casar com a menina. Escreve Fernanda de Castro: “Então o capitão do porto compreendeu! Na Guiné, as raparigas casam muito novas e os casamentos são ajustados entre o noivo e o pai da noiva, muitos anos antes de se realizarem… Mamadu, que era príncipe e além disso muito rico e bem parecido, não pensou um só instante que o pai da Mariazinha rejeitasse a sua tentadora proposta. Por isso, caiu das nuvens quando o capitão do porto avançou para ele, furioso”. E corre o príncipe a pontapé e a sua comitiva.

Surge uma doença misteriosa, nunca chegaremos a perceber se é febre amarela, mas febre é e já há muita gente doente. O pai de Mariazinha decide que a sua família deve voltar, a despedida é de grande emoção, Vicente, o cozinheiro, insiste que quer vir com os patrões para Portugal, vai viajar de chapéu de coco e grande flor de lapela.

O regresso é uma viagem tormentosa, o navio vem sobrelotado, Ana Maria também regressa, passam por Cabo Verde, aportam no Mindelo, as meninas ficam impressionadas com a falta de árvores de flores e frutas, a mãe explica-lhes que ali se vivem secas intermináveis. Vicente diz que a comida é boa, mas precisa de arroz. E assim se chega a Lisboa, o vapor atraca no Cais da Rocha do Conde d’Óbidos, os manos ficam surpreendidos com o Vicente, que traja sobrecasaca e calça branca, gravata amarela e flor ao peito, sorridente e de botas de verniz, dá pulos de contente, Ana Maria despede-se de Mariazinha e assim termina esta história que tem a Guiné por fundo:
“Duas horas depois, já na velha casa da Outra Banda, enquanto as pessoas crescidas conversavam, enquanto as criadas punham na mesa pratos e travessas de arroz-doce e leite creme, os meninos recomeçavam, sob a amoreira da quinta, as suas eternas, as suas alegres brincadeiras de sempre. E sobre as suas cabeças desocupadas, leves como ventoinhas, brilhava de novo o sol, o lindo sol de Portugal!”.

Para o leitor mais interessado no estudo das representações coloniais desta obra, recomenda-se o trabalho de Margarida Isabel Melo Beirão intitulado Mariazinha em África, de Fernanda de Castro – Representações coloniais, tese de Mestrado do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2018: https://ria.ua.pt/bitstream/10773/25216/1/Documento.pdf.


Na antiga Calçada dos Caetanos, hoje Rua João Pereira da Rosa, muito perto do edifício da Liga dos Combatentes, que foi a habitação da escritora Ana de Castro Osório, perfila-se um prédio onde viveram Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, José Gomes Ferreira, Fernanda de Castro e António Ferro, Ofélia Marques e Bernardo Marques. Lá em baixo é a Rua do Século e lá em cima o Conservatório Naiconal e a Igreja dos Inglezinhos. Felizmente que todo este património arquitetónico está classificado.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 3 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24448: Notas de leitura (1594): "Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (1) (Mário Beja Santos)

Sem comentários: