sábado, 8 de julho de 2023

Guiné 61/74 - P24460: Os nossos seres, saberes e lazeres (580): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (110): Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Maio de 2023:

Queridos amigos,
Com o direito que me assiste a ter inquietações parvas, quando aqui chego sobra-me a pergunta se não será a última vez que percorrerei este lugar de tantas lembranças, onde trabalhei com afinco, foi a partir de aqui que passei a acreditar no sonho europeu, a fazer amizades consolidadas por largos intercâmbios. Depois atiro para trás das costas este cismar lúgubre de quem não teme a velhice mas que em circunstância alguma teima em não a ignorar, e goza-se da atmosfera, é o prazer de visitar e revisitar, até à exaustão das horas, o tempo não demora a passar e há o peso das memórias como este primeiro dia de férias retrata, desde o bairro típico de Marolles até ao Monte das Artes, aconteceu assim em 1977 e acontecerá sempre até à última das visitas, sim, José Saramago tem toda a razão, a viagem nunca acaba, quem acaba é o viajante.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (110):
Oh Bruxelles, tu ne me quittes pas! (1)


Mário Beja Santos

Regresso, parece que cheguei a uma segunda pátria, vou em passo acelerado pelos longos corredores de Zaventem, de afogadilho compro o bilhete de comboio, na gare central carrego o passe, desço ao cais do metropolitano, destino Herrmann-Debroux, depois o tram, já estou na Cité du Logis, sinto-me em casa, abraços, sorrisos, primeiras conversas, amesendamos, troca de impressões sobre o que pretendo fazer nos próximos dias. Surpreendo quem me ouve, amanhã vou peregrinar em homenagem a Bruegel, depois de fazer a feira da ladra, havendo tempo disponível vou conversar com Bruegel no Museu das Belas Artes. No dia seguinte, peço companhia para passar o dia em Malines, tenho saudades. Mais conversa, deita e levanta, de manhã cedo parto para a minha romaria. Mas porquê Bruegel? Para mim, é um belga antes do tempo. Nasceu em Breda (Países-Baixos) em 1525, fez trabalho de ateliê em Antuérpia, viajou por Itália, regressa a Antuérpia e trabalha na impressão de livros e de estampas. Estabelece-se em Bruxelas em 1563, aqui morre 6 anos depois.

A Bruxelas de Bruegel tem a presença dos Habsburgos, há mecenas, por exemplo o Cardeal Granvelle encomendou-lhe "A Queda dos Anjos Rebeldes" (1562), é uma obra que me toca profundamente, confesso que quando admirei pela primeira vez o quadro pensei que estava diante de um Bosch. É um pintor do pormenor, da alegria, da alegoria, de uma certa transgressão. A sua arte é de tal maneira impressiva e tão admirada que os seus descendentes, como Bruegel, o Moço, ou David Teniers, aceitaram encomendas com base em trabalhos do mestre consagrado. E há um pouco de Bruegel hoje no chamado centro histórico de Bruxelas. Logo a chamada Casa Bruegel, em Marolles, na rue Haute, subsistem dúvidas se ele habitou ou não, mas o seu filho e o seu descendente David Teniers confirmadamente aqui viveram. Este meu adorado pintor está sepultado em Notre-Dame de la Chapelle, teve durante muito tempo na parece um quadro de Rubens, Cristo Dando as Chaves a S. Pedro, o original está hoje em Berlim, o que eu vou visitar é uma cópia, o mestre bem merecia que estivesse aqui o original, paciência.

Presumível autorretrato de Pieter Bruegel, o Velho
O Recenseamento em Belém, quadro de Bruegel, Museu das Belas Artes, Bruxelas

O que me toca neste quadro é a movimentação da cena e a colocação mais do que discreta que Bruegel põe na figura da Virgem e de S. José na grande mancha do tapete de neve que nos faz olhar a cena do recenseamento, notável encenação.
A queda dos anjos rebeldes, quadro de Bruegel, Museu das Belas Artes, Bruxelas

Palavra de honra que ainda hoje vejo elementos de Bosch num espaço todo ele feito de movimentação e onde a ordem é surreal, no fundo, as figuras angélicas são as executoras a par de, como elemento central, um guerreiro ao serviço da Fé expulsa para as profundezas aqueles que ousaram rebelar-se, os olhos revolteiam-se de cima para baixo e de baixo para cima, o mestre coloca os anjos sobre o azul celeste, dimensionando a altura dos céus por onde caem os entes maléficos, cá em baixo é caos e a desordem, somos levados a antever que nas profundezas os rebeldes serão recebidos em lugar demoníaco, daí o valor didático que qualquer um destes quadros comporta.
La Maison Bruegel
Notre-Dame de la Chapelle, a principal igreja de Marolles

Às vezes, quando me dá para madrugar, e é domingo, vou em primeiro lugar até ao templo da igreja ortodoxa grega, no boulevard de Estalinegrado, todos aqueles cânticos e rituais me empolgam, depois subo até aqui e às vezes tenho sorte de ouvir os cânticos da comunidade polaca que aqui se encontra. E lá vou, açodado pela rue Blaes até à feira da ladra, vai começar o espetáculo.
Aqui é chão sagrado, salvo seja. É tudo para degustar, mexericar dentro das caixas, é assim que aparecem livros que são edições preciosas, missais com inúmeras imagens, encadernações assombrosas; há as pastas com desenhos, álbuns de viagens, não faltam caixas com medicamentos e cosméticos, montanhas de tecidos, rabecas, tapetes, há especialistas em arte africana e que sabem o que estão a vender, não vos canso mais com estes hossanas de colecionador. Como viajo em voos low-cost, guardo saudades do tempo em que podia entrar no avião com molduras enormes, calhamaços, sacos com porcelanas e ainda a bagagem normal e as vitualhas de lembranças, esse tempo já não existe, impõe-se comprar o miudinho, para isso é que se leva um casacão com bastanres bolsos, virão todos carregados. Mas confesso que esta magia da profusão, o discutir os preços com estes mercadores árabes que vão esvaziar as casas e tudo trazem, desde o clister e o penico até aos carrinhos de linhas, me entusiasma, é o sonho de uma pechincha, como às vezes acontece, uma vez comprei um prato de Meissen por escassos euros, nem esbeiçadelas tinha, mas é achado que não se repete, a não ser…
Já venho aviado da feira da ladra e desço Marolles, pretendo percorrer o boulevard Maurice Lemonnier, impõe-se uma visita a um vendedor de livros em segunda mão. Nisto olhei para o chão e comovi-me imenso, aqui se guardam memórias de judeus que foram levados para campos de concentração, lembra um tanto aqueles bispos e aristocratas que punham os seus túmulos no chão das igrejas, inevitavelmente para serem pisados, aqui é para quem tem a dita de olhar para o chão e curiosidade para ir ver o que se passa, então algo se abate na nossa alma destas vidas roubadas por um fanatismo racial que eclodiu num país de vanguarda na ciência, tecnologia e na música. Pois aconteceu, como a lembrança destas vítimas nos faz recordar.
Restos de um passado, talvez quando a Bélgica era potencia esplendorosa, belos mosaicos no chão de um estabelecimento que fechou portas mas que guarda esta belíssima guarnição, resquício de muitas décadas atrás que o novo retalhista felizmente preserva.
Um dos charmes de Marolles é encontrar belos edifícios entre construções modernas, não sei exatamente o que gosto mais, talvez o equilíbrio dado pela porta, a varanda, os mosaicos, aqui fiquei especado diante destes dois prédios, casas de habitar, espero que este património resista ao camartelo, felizmente que ainda há muito Arte Nova e Arte Deco, de primeiríssima água, não me canso de referir, há mesmo excursões só para ver estas preciosidades.
A cidade guarda ciosamente belos murais, nunca tinha dado por este, digam o que disserem, que são elementos flamejantes que introduzem cor, são modalidades estéticas que agilizam a comunicação e quebram monotonias na uniformidade dos edifícios.
Como é que é possível deixar de falar do Palácio da Justiça quando ele tem esta forma de Big Brother, olha-nos lá do alto, aparece e desaparece entre ruas e ruelas, impossível falar de Marolles sem mencionar que o Palácio de Justiça, a maior extravagância de Bruxelas, em circunstância alguma pode passar despercebido.
Por esta eu não esperava, num estabelecimento com ares de luxuoso cheio de fotografias artísticas, vejo na montra, na intensidade que só o branco e preto dão esta imagem da Grand Place, do lado esquerdo um pouco do edifício municipal e um conjunto de casas de corporações ao fundo. Bela fotografia. Pudesse eu, vinha comigo.
Aqui se mostra um revivalismo, ainda há muitos admiradores do chamado estilo Tiffany, obviamente que estamos a ver aqui cópias como cá em baixo se podem ver cópias de ferragens de outros tempos. O que mais me fascina é o carrossel das cores e das formas.
Como é que é possível eu nunca ter dado por esta fachada, já foi casa de drogarias, tintas e esmaltes e vernizes, é uma reminiscência do princípio da Arte Deco, por favor preservem-na, deixem-na nesta rampa de entrelaçamentos de culturas, gostei muito de descobrir esta relíquia.
É a vez de entrar para uma exposição, intitula-se cabaré de curiosidades, o artista chama-se Christophe Demaître, este artista pega em objetos mais do passado do que do presente e encaixa-os num emolduramento que nos exige percorrer de fio a pavio os espaços fechados, podem conter livros, fotografias eróticas, retratos, relógios sem préstimo, quinquilharia, e ficamos com a sensação de que temos a árvore e a floresta, somos atraídos pelo pormenor, depois recuamos e é o todo que se torna proeminente, ganha a dimensão do macrocosmos. Não fico de boca aberta, há mais de um século Marcel Duchamp agarrou em objetos, despiu-os da função e outorgou-lhe outra, tenho para mim que ele é o pai fundador desta arte de artifícios que parece inextinguível.
E termino este dia de festim noutro lugar que tanto venero, o Monte das Artes, por aqui descendo vou dar à Grand Place, mas o que realmente neste momento me interessa é saudar este recanto de Bruxelas que conheci exatamente assim há mais de 50 anos e que tem um lugar especial no meu coração.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE JULHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24443: Os nossos seres, saberes e lazeres (579): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (109): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: do Paúl a Pombas, de Pombas a Porto Novo, de Porto Novo a Mindelo, o regresso (8) (Mário Beja Santos)

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