1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 4 de Julho de 2010:
Caríssimo Carlos
Estou a enviar junto o texto para o Contraponto (11), com os desejos habituais de saúde e sorte, que não é, propriamente, a sorte ao jogo, mas pode ser, também, incluída.
Um abraço do
Alberto Banquinho
CONTRAPONTO (11)
VOCÊ É PRETO !!!
Foi em Outubro ou Novembro de 1966. Em Lamego e durante o Curso de Operações Especiais – “Rangers”.
Talvez não saibam que, durante o curso, os aspirantes e os furriéis (cabos milicianos?) que o frequentavam eram enquadrados em “parelhas”, ou seja, em grupos de dois. Tentavam assim criar um espírito de entreajuda, companheirismo e sentido de co-responsabilidade. O meu sócio/parelha era cabo-verdiano, há muito residente em Lisboa, de quem fiquei amigo. Reencontrei-o, depois do regresso da Guiné, na Faculdade de Direito de Lisboa, para onde me transferi, depois de ter chegado a Coimbra em plena crise de 1969.
Em Lamego, durante o curso, havia provas individuais mas havia, também, provas em que se funcionava por parelhas.
Numa noite fria e de céu estrelado, sem lua, fomos carregados, de olhos vendados, em camiões de caixa fechada e transportados para muitos quilómetros de Lamego, por estradas e caminhos de terra batida. O camião parava de onde em onde e vinha a ordem: - Salta a parelha n.º x!
A parelha apeava-se, eram tiradas as vendas e era largada num qualquer caminho no meio de um pinhal… sem despedidas. Corrigidos os atacadores das botas, amanhadas as calças, corrigido o aperto o cinto e de canhangulo (velho, inútil e avariado) em bandoleira, havia que decidir que caminho tomar.
- Qual era a missão? –( perguntarão).
Era alcançar Lamego e o CIOE (quartel) o mais rapidamente possível, sendo proibido seguir estradas ou caminhos. Se detectados em infracção por um carro militar, estacionado e de faróis apagados, seríamos recarregados para uns excelentes quilómetros lá mais para trás.
A primeira decisão foi deixar que o camião se afastasse e seguir-lhe o rumo, procurando espaço com alguma visibilidade.
Alguém perguntará: - Porque é que não tentavam orientar-se pela Estrela Polar? – Porque não sabíamos se Lamego estava para Norte, para Sul ou Leste ou Oeste…
A tentação foi fazer batota – seguir a primeira estrada ou caminho onde os primeiros faróis surgissem e encontrar uma placa sinalizadora.
Bem agachados e quietos no meio do mato (“mata” seria mais tarde, na Guiné), evitando ser vistos, enquanto os carros passavam.
Caminhámos, caminhámos sem que surgisse qualquer placa a indicar Lamego ou proximidades.
Discutimos, discutimos. – Se queres ir por aí vai tu. Acho que a luminosidade que se vê além só pode ser Lamego.
Como natural do Alto Douro, eu achava que tinha melhor conhecimento do terreno (Onde foi que, meses mais tarde, eu ouvi isto?).
E foi durante estas andanças que ouvimos um cão ladrar. Mas bem longe. Por entre o arvoredo parecia ver-se uma luz muito fraca tremeluzindo, longe e em baixo. Aparecia e desaparecia. E o ladrar parecia vir desses lados. “- Vamos lá perguntar o caminho”.
Começámos a caminhar na direcção da luz. Agora não havia dúvidas – era uma luz. Fraca, muito fraca. “- Vamos depressa, que eu já estou farto disto”.
O terreno começava a descer de forma pronunciada. Comecei a tactear o que me pareceram ser videiras. Lembrei-me dos socalcos do Douro e, como ele seguia à minha frente, aconselhei:
– Vai devagar. Vê onde pões os pés”. Deixei de o entrever e, depois de um barulho de restolhada, ouvi-o cair e queixar-se.
- Onde estás?” – perguntei, tacteando o chão à minha frente.
- Caí, estou aqui”. Usando o canhangulo, fiz o reconhecimento do chão escuro à minha frente. Toquei em arames e percebi que ele tinha caído em cima dos arames de suporte das videiras e, depois, no chão. Estaria, portanto, dois a três metros abaixo. O enleado dos arames teria amortecido a queda.
- Estás bem?
- Estou todo cagado.
Deixei-me escorregar pelo desnível e aproximei-me. Estava bem.
Agora já não se via a luz.
Continuámos, torneando socalco a socalco. O ladrar estava mais próximo e a encosta era cada vez mais íngreme. A luz voltou a surgir lá mais abaixo, mas fraca e parecia apagar-se de vez em quando.
Afinal, estava mais longe do que parecia.
Em terreno quase plano e aberto surgiu o barulho de água a correr. O cão ladrava já mais fortemente, pressentindo-nos. A luz, embora vacilante, era já bem visível.
Caminhámos ainda mais uns dez a quinze minutos e o cão veio ao nosso encontro, ladrando ameaçador. Assobiei-lhe baixinho para o acalmar. Ouviu-se, então, a voz de um homem:
- Quem vem lá?
- Militares. De Lamego.
- Cheguem-se cá. Cala-te, Leão.
O cão parou de ladrar. Caminhei pela laje de xisto na direcção da porta do casebre de onde vinha a luz. O homem esperava à porta.
- São só vocês?
- Só.
Ouvia-se o forte caudal da água do ribeiro correndo ali bem perto.
- Querem um copo de vinho?
- Agradecemos. Dá licença?
Entrámos, limpando as botas na soleira, com o cão atrás de nós, cheirando-nos, com o focinho colado às botas.
- Sentem-se.
O homem foi buscar uns copos de esmalte, andou uns passos no sentido do marulhar da água que corria junto à parede, passou-os por água, sacudiu-os e entregou-nos.
Quando passou junto ao candeeiro de petróleo, a figura agigantou-se na sombra, contra a parede e telhado. Constatei, então, que o homem estava ali por causa do trabalho na azenha (ou moinho de água, como lhe chamam no sul).
Puxou da garrafa e encheu-me o copo. Quando ia encher o copo do meu companheiro, parou, a olhá-lo. Foi buscar o candeeiro, ergueu-o à altura da cara e, com espanto, exclamou:
- VOCÊ É PRETO !!!
Olhou-me e perguntou:
- E está aqui na tropa?
Fixei-o nos olhos, acenei que sim com a cabeça, ao mesmo tempo que pensava: ”E eu sou Branquinho”.
Bebemos o copo de vinho e, já informados, abalámos na direcção de Lamego.
Alberto Branquinho
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Junho de 2010 >
Guiné 63/74 - P6562: Contraponto (Alberto Branquinho) (10): Grafia do crioulo da Guiné-Bissau