quinta-feira, 8 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6694: Notas de leitura (126): "Guineense Comando Português", de Amadú Bailo Djaló (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2010:

Queridos amigos,

Na capa do livro do Amadú Djaló, à esquerda com a mão na pistola e olhando-nos sem pestanejar, está o tenente Zacarias Saiegh, que virá a ser fuzilado em finais de 1977 num complô ainda hoje mal contado.

Quando cheguei a Missirá, em 4 de Agosto de 1968, ele era o comandante interino, o furriel mais antigo. Tivemos uma relação bastante tensa mas o respeito mútuo foi sempre mais forte.

A dupla Amadú Djaló – Virgínio Briote é um monumento de camaradagem inesquecível, um testemunho que os historiadores não poderão evitar.
 
Tenhamos orgulho pelo Virgínio e pelo caudal de imagens que o nosso blogue proporcionou a este relato pungente.

Um abraço do
Mário


Amadú Djaló a respirar no espelho de Virgínio Briote

por Beja Santos

“O meu primeiro objectivo foi perceber a escrita manual do Amadú e reescrevê-la para um português perceptível, respeitando o estilo de escrita do autor. Depois foram tardes a ler-lhe os textos, corrigir, acrescentar pormenores, cortar outros, pôr datas, nomes, locais, enquadrar as histórias, telefonar a camaradas, cruzar a informação, reavivar pormenores.

Não se trata de um trabalho exaustivo sobre os nossos anos na Guiné. Nem eu tenho arte nem o Amadú conta a sua história assim. Não há ficção, não se trata de um romance. A maior parte dos textos referem-se a contactos com o PAIGC, a combates com mortos e feridos, de um e outro lado”.

Este livro é um sortilégio, sente-se permanentemente o pulsar de uma cumplicidade de alguém que não renega a identidade ou ilude os diferentes níveis da memória e de um outro que escuta, reelabora, clarifica, adensa a trama. O produto final é brilhante, deixa perceber a intimidade do Eu e a disponibilidade do Outro. Fica-se com orgulho pela obra feita pelo Virgínio Briote, o Outro que garante um relato estuante transformado na árvore da vida.

“Guineense, Comando Português” é uma soberba colectânea de memórias, assegura a visão prismática de um fula que se orgulha das suas origens e que se releva apaziguado, propondo a todos os seus leitores guineenses que façam um esforço de reconciliação. 

Temos os ocasos da formação, a frequência da escola do Alcorão, a frequência de uma escola católica, as idas e vindas à Guiné francesa, os prenúncios da guerra, a incorporação em 1962. As origens da guerra continuam difusas, todos os protagonistas até hoje relatam uma escassa parcela dos acontecimentos: a formação dos partidos, a brutalidade no separar das águas, na decomposição e reorganização do território entre os santuários da guerrilha e as localidades fiéis à bandeira portuguesa, há uma discrição por vezes diáfana no relato dos acontecimentos que, pasme-se, leva o leitor, passados 50 anos, continuar confuso quanto às adesões partidárias, o desmoronar do espaço colonial, as tomadas de posições interétnicas. 

Este emaranhado só é possível pela continuação em propagar mitologias e iludir o rigor dos eventos, tudo por falta de historiografia amassada em documentos probos, testemunhos credíveis, assunção de paradoxos e contradições. Amadú refere-se a um tal Nino Vieira que em Junho de 1961 tinha fugido da prisão de Catió e que tinha sido ajudado por um cabo cipaio, Adulai Duca Djaló, casado com uma irmã de João Bacar Djaló, que se irá revelar como herói português. Só neste instantâneo temos a noção das dificuldades em perceber como se separaram as águas. Aliás, Amadú deixa transparecer o peso da decisão familiar e do poder do clã, determinante em tudo o que aconteceu a partir de 1961 e que continua nebuloso.

Amadú torna-se condutor, vai para o Sul, a experiência não lhe deixou muitas saudades. Segue para Farim, naquele tempo grande parte das estradas ainda eram transitáveis, o PAIGC sentia imensas dificuldades em implantar-se, as autoridades senegalesas mediam a guerrilha com imensa desconfiança. 

Depois da experiência de Farim, Amadú vai colaborar com os comandos do Saraiva, a guerrilha entra em efervescência, as tropas especiais passam a ser requisitadas para os golpes de mão mais espinhosos, caso do Buruntoni ou da região de Madina do Boé, onde Amadú é protagonista de uma calamidade provocada por uma mina anti-carro. 

A mata do Oio, a partir de 1964, abriga santuários que exigem a técnica do bate e foge, tal a capacidade de reacção de uma guerrilha que usa e abusa das asperezas da floresta. Em 65 Amadú regressa ao quartel-general por pouco tempo, outras tropas especiais estão em formação. Depois, Bafatá onde surgiram novas tensões como Sinchã Jobel, acima de Geba. 

Em 1969 dá-se a viragem com a formação dos Comandos Africanos, em Fá Mandinga. A partir daí, é o galopar da narrativa, entre sucessos e desaires, muitas perdas, premonições de adivinhos que Amadú jamais esqueceu, incursões nos santuários de resistência mais renhida como Galo Corubal, a participação na Operação Mar Verde, inúmeras viagens aos Morés, a ida a Cumbamori. 

O Eu e o Outro formam uma dupla espantosa, é um encontro lusófono que toca pelo sopro narrativo, tudo numa atmosfera singela de quem nunca precisa de se pôr em bicos dos pés, mesmo quando a tempestade dos acontecimentos podia facilitar disparos emotivos. Um só exemplo do rigor entre o Eu e o Outro:

“Saí do local onde estavam 4 ou 5 feridos e o corpo de um soldado, para verificar o andamento dos trabalhos das macas e, momentos depois, começaram os rebentamentos [ida a Cumbamori, Senegal].

Foi um inferno. Ao primeiro estoiro ninguém pensou em mais nada senão em escapar dali. Eu corri para a frente, com 7 ou 8 soldados, armados de bazucas e RPG’s, para respondermos ao fogo. Todos dispararam a vez, outros duas vezes depois saíram dos locais, porque a posição deles estava denunciada quando fizeram fogo. Sabíamos isso da instrução.
Fiquei muito satisfeito com eles, porque foi com os disparos que fizeram que travámos a contra-ofensiva do PAIGC e dos páras senegaleses.
O tenente Jamanca estava à minha esquerda, sentado, com as pernas estendidas, encostado a uma pequena árvore, parecia exausto.

– Então, o que se está a passar? Perguntei.

– Amadú, anda cá! Mata-me, não deixes o PAIGC levar-me! Mata-me, Amadú, mata-me!

– Tu não ficas, levamos-te de qualquer forma. Não ficas aqui! Descansa um pouco, Jamanca!”


Amadú vai sendo promovido, a sua folha de serviços é notável. Vai seguidamente para a CCaç 21, percorre a Ponta do Inglês, Paunca, Pirada, Piche, Canquelifá. Estamos a viver o tufão que se estenderá até ao fim da guerra. A ofensiva do PAIGC é brutal, como Amadú descreve: 

“Passámos mais tempo em Canquelifá porque o PAIGC queria mesmo acabar com o quartel e com a tabanca. Os morteiros de 120 eram em número de cinco e, como tínhamos atacado a base de Cumbamori, perto da estrada de Koldá-Ziguinchor, o PAIGC transferiu parte do material do Norte para o Leste. Copá e Canquelifá passaram a ser considerados os primeiros objectivos do PAIGC. Copá veio a ser abandonada e o pessoal que lá estava foi recolhido em Amdalai, perto de Bajocunda, com o nosso apoio e dos paras. Depois de Copá faltava-lhes conquistar Canquelifá”.

Amadú combate há praticamente 11 anos, perdeu família, amigos, inúmeros camaradas. Bateu todos os teatros de operações mais infernais. Deixa antever a evolução dos acontecimentos de 1973 para 1974. E um dia a guerra acaba, espera-o um calvário, a traição dos amigos, a perseguição. Será esse seguramente o material que Virgínio Briote, o diligente e discretíssimo Outro, terá entre mãos.

Venho publicamente expressar o meu júbilo pelo trabalho do Virgínio Briote. A Associação de Comandos incumbiu-o de uma tarefa espinhosa, o Virgínio revelou-se exemplar nesta metamorfose do apagamento em que o Outro deixa o palco iluminado a um Eu cheio de carácter, sereno, à espera que lhe façam justiça depois dos caminhos desavindos da guerra.

Enquanto lia e relia este relato inigualável recordei um retrato de genial artista surrealista, o belga René Magritte, intitulado A Invenção da Vida, datado de 1928. Alguém olha fixamente o espectador, parece pronto a desvelar o vulto encapuçado, a mostrar uma pessoa em corpo inteiro. Não sei porquê lembrei-me deste trabalho monumental do Virgínio, este corpo a corpo com o Amadú em que se inventou, a partir do maço informe dos dados, a vida de um combatente. Obrigado por tudo, Virgínio.

__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6689: Notas de leitura (125): O Lince de Có, de António Veríssimo (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Luís Graça disse...

O meu aplauso pela brilhante recensão feita pelo Mário que, publica e notoriamente é um devorador de livros, um leitor compulsivo, um crítico apaixonado.

É um privilégio ter um colaborador como ele, no nosso blogue, que faz questão de atacar essa tarefa ciclópica que é "pôr a escrita em dia" sobre a literatura da guerra colonial, independentemente da qualidade dos livros que já publicados ou a publicar...

É também um homem de grande generoridade. Só um camarada como ele era capaz de reconhecer, publicamente, sem pedir nem receber nada em troca, a grandeza, a especificidade e o alcance desta obra, saída das mãos dessa dupla empática Amadu / Virgínio.

Sem tirar qualquer mérito ao Amadu, que é de facto o verdadeiro e actor e autor das suas memórias, o Mário chama a atenção para o discretíssimo mas fundamental papel do Virgínio, que soube interpretar com grande inteligência (e corresponder com enorme dedicação a) o desafio lançado pela Associação de Comandos.

Esperemos que se tenha aberto uma porta, larga e fecunda, para a publicação de outros trabalho de memórias de antigos camaradas nossos guineenses.

E, em Novembro, não nos esqueçamos está na altura de fazer uma singela homenagem ao Amadu, septuagenário.

Anónimo disse...

Todas as homenagens que se façam aos africanos que trabalharam (lutaram) ao nosso lado, serão sempre poucas.

Luis, se se organizar alguma homenagem, que se faça sem "vergonha" e com o máximo de divulgação.

Esta gente já ouviu ofensas demais, (até mesmo neste blog).

Quantos de nós sobrevivemos, provavelmente a acções de africanos que nos acompanharam.

Tambem eles queriam uma independência, ninguem tenha dúvida.

Parabens aos Virgínio/Amadu/Beja Santos

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Não comento o que escreves.Leio.
Concordo com o que dizes.Hoje.
O Virginio Briote teve um trabalho hercúleo e o Amadu é, para mim e não só, um soldado que honra as Forças Armadas onde combatemos.
Só que,se me permites, eu presto a minha homenagem a um combatente extraordinário, o Zacarias Saiegh. Fizemos operações juntos, as tuas memórias falantes devem recordar-se. Gostava tanto de saber o que se passou...
Herdaste um excelente Grupo.
Para eles, para o Zacarias e para ti meu caro Mário um abraço fraterno do Torcato