sexta-feira, 9 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6701: Notas de leitura (127): Caminhos Perdidos na Madrugada, de Fernando Vouga (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
Encontrei-me, cheio de alegria, com o Embaixador Henriques da Silva, ele está a reflectir na sua adesão à tertúlia. Escreve que se farta e qualquer dia temos aí um livro com bastantes surpresas. Trocámos empréstimos, tenho aqui quilos de livros para ler, vou começar pelo “Polón Di Brá”, do João Carlos Gomes, que diz ser um documento de reflexão sobre uma guerra devastadora, desnecessária e justamente imposta ao povo da Guiné Bissau e datado de Novembro de 1998.

Um abraço do
Mário


Caminhos perdidos da madrugada:

Em Bafatá, 27 de Junho de 1971


por Beja Santos

Fernando Vouga é escritor e militar (coronel reformado). Como capitão, fez três comissões em África nos três teatros de operações: em Moçambique, 1966 a 1968; na Guiné, de 1969 a 1971; e em Angola, de 1972 a 1974. O seu romance “Caminhos Perdidos na Madrugada” tem o fundamental da sua acção a decorrer em Moçambique, já no termo da guerra colonial. Na plantação “Chá Molungo” os acontecimentos atropelam-se à medida que em Portugal o processo da descolonização começa a ganhar contornos. Os colonos movimentam-se, mas também crescem a influência dos movimentos de libertação. Nenhum autor esquece a sua identidade ou prescinde de falar de si. É o que faz Fernando Vouga recorrendo a um alter-ego que se movimenta em diferentes cenários: a Academia Militar na Amadora, um cemitério em Castelo Branco, as matas perigosas da região dos Dembos, em Angola, um ataque à cidade de Bafatá, Junho de 1971, a guerrilha maconde no planalto de Mueda. Está aqui uma parte relevante da experiência do autor na guerra colonial.

Para efeitos de recensão, vamos acompanhar os acontecimentos de Bafatá, vistos pelo capitão Álvaro Santos (quem sabe, Fernando Vouga).

A 27 de Junho de 1971, o general António de Spínola desce de um helicóptero em Bafatá, com um ar grave e carrancudo. Não se perde em informalidades, dirige-se de imediato para o Comando do Sector Leste da Guiné.

Na véspera, cerca das onze e meia da noite, Bafatá fora atacada cerca de dez minutos. Em termos militares, tratou-se de um acontecimento pouco relevante mas revestiu-se de uma grande importância psicológica e política. Era a primeira vez que o coração do “chão fula” era atacado, punha-se a nu a fragilidade da sua segurança.

O tenente-coronel que comandava o batalhão local foi sujeito a um ataque cerrado pelo homem do pingalim e do monóculo. O autor refere que grande parte do contingente de guerrilheiros que participara no ataque era constituída por antigos soldados do Exército português, mais propriamente elementos de uma companhia de Comandos que participara na Operação Mar Verde e que ficara em Conacri, feitos prisioneiros. É de pensar que se trata de pura ficção, todos os relatos apontam para o fuzilamento dos elementos do pelotão do tenente Januário que se entregaram às autoridades da Guiné Conacri. O capitão Álvaro Santos era comandante de uma companhia de caçadores aquartelada em Bafatá, assistiu estarrecido à discussão entre Spínola e o seu comandante de batalhão, achou aquela humilhação gratuita, mais a mais em frente de oficiais de patente inferior. De qualquer forma, o capitão Álvaro Santos nutria por Spínola consideração e respeito. Achava-o dotado de uma imaginação prodigiosa, de uma vontade de ferro, de uma energia inesgotável e, sobretudo, com uma fé cega no seu próprio sucesso. Este Spínola era um homem tão crédulo e estava tão confiante no brilhantismo dos resultados da sua acção que numa manhã de Abril de 1970 reunira no Palácio do Governo todos os oficiais com responsabilidades de comando de companhia ou de escalão superior, bem como todos os oficiais de operações, para lhes anunciar o fim da guerra. Durante a reunião, informou que estava a ser levados a efeito contactos com os chefes guerrilheiros com o objectivo de se pôr termo às hostilidades, tendo mesmo dado instruções precisas a todos para se prepararem para receber os guerrilheiros que, dentro de pouco tempo, começariam a entregar-se. Álvaro Santos assistira à reunião. E o autor escreve:

“Álvaro, que regressara de Angola com as suas convicções seriamente abaladas, com esta notícia do fim da guerra na Guiné ganhou novas esperanças, tanto para si como para a pátria que jurara defender. Mas tudo se desvaneceu poucos dias depois, quando soube que, algures nas matas de Teixeira Pinto, quatro oficiais portugueses tinham sido barbaramente chacinados. Precisamente aqueles que, ao longo de vários encontros com um grupo de guerrilheiros do PAIGC, negociavam a sua rendição às tropas portuguesas. E assim terminaram tragicamente as inabaláveis certezas de Spínola que, pelos vistos, tomou a árvore pela floresta. Contudo, o general tinha razão num ponto: a sua política desequilibrara muitas populações em seu favor, e o PAIGC tivera alguns amargos de boca. Assim, é de toda a justiça reconhecer que, no que respeita à melhoria das condições de vida do povo da Guiné e à satisfação de muitas das suas reivindicações, a sua actuação foi notável”.

“Caminhos Perdidos na Madrugada”, de Fernando Vouga, DG edições, 2ª edição, Abril de 2010.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6694: Notas de leitura (126): Guineense Comando Português, de Amadú Bailo Djaló (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Fernando Vouga disse...

Caro Dr. Beja Santos

Muito obrigado por esta sua "nota de Leitura".

Agredeço-lhe ainda o seu reparo sobre o destino dos "elementos de uma companhia de Comandos que participara na Operação Mar Verde e que ficaram em Conacri".
Não se trata de ficção mas apenas de desconhecimento.
Na altura — eu estava em Bafatá —, era voz corrente que muitos (ou alguns) dos grerrilheiros que flagelaram a cidade pertenciam aos comandos africanos que ficaram em Conacri.
Só muito mais tarde é que soube que, em princípio, tal não era verdade. Mas o livro já estava publicado...

Os meus cumprimentos.