1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Junho de 2010:
Queridos amigos,
Não sei se a poesia popular em torno da guerra colonial é tema interessante para a silly season que se aproxima.
A remexer no livrinho “Lince de Có”, de António Veríssimo, maravilhado pelas espontaneidade daquela “Carta P’rá Família” senti que era urgente pôr à discussão este património silencioso, tantas vezes encarado com suspeição exactamente por se afirmar como poesia popular e nada mais.
Um abraço do
Mário
Qual o nosso dever de memória com os poetas populares da Guiné?
por Beja Santos
Em 17 de Julho de 2004 participei no encontro da CCaç 2402, a que pertenci entre Abril e Julho de 1968.
Em dada altura o António Veríssimo, com ar solene, avançou com o seu peso maciço para mim e disse-me: “Tenho aqui um livro de poesia em que falo da nossa Guiné. São coisas muito simples, a viagem no Uíge, as lembranças dos aerogramas, a morte do meu amigo Amorim, o tempo que passei em ponte do Maké, as minhas saudades, o meu hino aos veteranos de guerra, coisas assim. Espero que goste e depois me dê as suas impressões”.
Fiquei embatucado, disfarcei o embaraço começando a folhear aqueles dotes de poesia popular, a perfeita rima métrica e detive-me num poema muito singelo, afectuoso, sentiu-o quase como padrão da poesia popular de toda a nossa guerra, em qualquer das frentes:
Carta P´rá Família
Boa saúde a todos desejo
E que a vida vos corra bem
Eu não sei se mais vos vejo
Ou se pereço aqui, na terra de ninguém
Estou óptimo graças a Deus
Vou vivendo no meio da guerra
Esperando voltar para os meus
Para a paz da minha terra
Corre carta, corre carta
Sai daqui, vai embora
Leva a meus pais esta farta
Saudade que eu sinto agora
Voa carta, carta voa
Segue sempre em frente
E quando chegares a Lisboa
Vai ter com a minha gente
Segue carta o teu caminho
Leva beijinhos e saudades também
Diz lá no meu cantinho
Que aqui mal! eu estou bem.
Relendo esta poesia popular, questiono se há condições para a inventariar, como ela merece. No caso da literatura, ganho a convicção de que a recolha de depoimentos, artigos, histórias de unidades militares em edições de autor é aventura interminável. É como se houvesse deuses no Olimpo, escritores que ganharam notoriedade e inclusivamente são alvo de estudos literários; e houvesse uma literatura avulsa, de cordel, destinada a amigos, a partilhas entre pequenos grupos ou de devotos ou gente parecida, que acompanhou o nascimento dessas trovas populares. Se embaraçado fiquei quando recebi o “Lince de Có” do bondoso António Veríssimo, embaraçado me sinto quando me dirijo dentro da nossa sala de conversa a quem vive esta preocupação do inventário que faz parte do nosso dever de memória e aqui deixo uma achega para a discussão, incontornável: será que nos compete recolher todos os testemunhos como “Lince de Có”? Teremos condições para o fazer? É assunto do blogue, da pesquisa universitária, até mesmo das universidades seniores? Que se incendeie a conversa sobre a poesia popular em torno da guerra colonial.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 17 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6608: Notas de leitura (124): A Guerra de África, 1961-1974, Volume II, por José Freire Antunes (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Caro Beja Santos,
Importante este teu alerta. Quanta desta literatura de cordel (vamos utilizar o termo para simplificar)não se irá perder! Muita dela estará dactilografada pelo amigo da secretaria da unidade com alguns exemplares duplicados a papel químico. De alguma coisa, mas pouca, o blogue já deu notícia. Mas, como dizes, haverá um mundo à espera de etnólogos, de especialistas em literatura popular e de outros cientistas sociais. Mas, mais do que estes, de pessoas que nem são especialistas na área, mas se interessam pela recolha destas preciosidades. Sabemos bem que, muitas vezes, são os "amadores" (no verdadeiro sentido do termo) que levam a bom termo recolhas do género, muitas vezes durante uma vida inteira (veja-se o caso do camarada que colecciona emblemas e crachás das companhias e que tanto têm servido o blogue).
Conversando, há pouco tempo, com um amigo sobre um artigo que escrevi sobre a dramática emigração de micaelenses para a República Dominicana, em 1940, tive a grata surpresa de receber a oferta de um conjunto de quadras escritas por um desses infelizes sobre a aventura. E por ali compreendi melhor o drama de algumas situações. Esta literatura é riquíssima, sem dúvida.
A sugestão das universidades séniores é óptima. Mas não tenho a certeza de, pelo menos na maior parte, as universidades séniores terem as características que têm, por exemplo, as do Brasil. Na Universidade que melhor conheço, a Federal de Santa Catarina, os alunos séniores aprendem mas também ensinam usos tradicionais, recolhem tradições e elementos da cultura popular. Ou seja: não são só receptáculos do que os professores querem ensinar: são também (e naquele caso concreto) actores importantes de, como dizem os brasileiros, "resgate" da cultura popular.
E cá estaria um "público alvo" para encetar este trabalho de recolha.
Desculpem os camaradas. Perdi-me. Comecei num assunto e já mudei as agulhas. Paciência.
Um abraço,
Carlos Cordeiro
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