Amigo Vinhal
Saúde boa?
O mar da vida tem andado meio encapelado e cavalgar-lhe as ondas obriga a concentração de excepção, por vezes a gestão à hora de tempo e disposição.
Como compromissos são compromissos e até ver sempre gostei e os soube cumprir, cá te mando mais um troço de “Viagem …” - que me continua a levar àquela terra que, com as suas contradições, faz parte única na minha vida - que espero possa merecer atenção dos Tertulianos.
Um grande abraço
Luís Faria
Viagem à volta das minhas memórias (30)
Bissau – Paraíso na guerra
As “férias” que felizmente nos tinham sido impostas nesta espécie de “capital mundana” iam decorrendo sem sobressaltos inesperados permitindo-me(nos) usufruir da possibilidade de viver uns dias, regendo-nos por parâmetros diferentes mas bem melhores, dos a que até ali estávamos habituados por força de circunstâncias várias.
Na verdade e talvez devido às situações intensas por que tínhamos passado durante a quase dúzia de meses antecedentes, a nossa maior preocupação por aquelas latitudes não era de facto a possibilidade de confrontos belicistas na cidade e antes o “asneirar” em termos de RDMs e afins ou em conflitos escusados e eventualmente puníveis, o que era de certo modo fácil de poder acontecer, bastando para isso uma boca menos própria na altura errada, quem sabe uma falta de “palada” a um qualquer guerreiro combatente de gabinete com patente superior - por norma os mais achacados a gostar de demonstrar a sua força, valor e valentia - que estivesse maldisposto.
Nas digressões “folgosas” e especialmente para o Pessoal fardado, o comportamento e o atavio também eram levados em conta, não fossem os amigos PMs implicar e vir a criar problemas escusados e “sacrifícios” inúteis e indesejados.
Em suma, o lema era tentar passar aquelas “férias” sem dar azo a eventuais punições coartadoras, cumprir com o rigor necessário as missões atribuídas e… gozar o mais possível a estadia que sabíamos ser “sol de pouca dura”!
Os dias iam-se esgotando, as folgas foram sendo aproveitadas e vividas mais ou menos intensamente em conformidade com as ofertas que a cidade nos proporcionava, as disponibilidades e a disposição de cada um.
Desses tempos recordo o cirandar pela cidade, de ”cu alçado” ou apeado, retendo imagens e situações que, na sua grande maioria talvez por não me terem marcado (?) suficientemente, se foram esbatendo e esfumando com o passar dos anos.
Recordo o ir jantar ao “Pelicano” com uns compinchas e já com uns copitos, propositadamente pedir ao empregado guineense uma lagosta fresquinha e “implicar“ com ele quando nos trouxe o dito crustáceo indevidamente… já que o que se tinha pedido era uma garrafa de vinho “Lagosta” fresquinha. Passados uns tempos pedia-se de novo uma lagosta fresca e vindo uma garrafa… implicava-se energicamente dizendo que tínhamos pedido era uma lagosta e não vinho… enfim, infeliz do empregado que já deitava lume pelos olhos mas… o cliente tinha sempre razão e passou a perguntar se era garrafa ou a outra !!!!
Que saudades da lagosta e do camarão àqueles preços e qualidade!!!
Recordo de uma das vezes ter ido beber umas cervejas a um café ou pensão (?) que não recordo o nome, situada numa paralela à esquerda (sentido marginal Palácio) da Av. da República. Por lá estava, sentado na mesa ao lado, o Sargento Teixeira dos Comandos, cabeça rapada e impressionou-me o seu olhar frio de gelar! Cá fora e à entrada da porta, dois pretos travam-se de razões e lutam perante a passividade geral. A dada altura um deles cai por cima de uma bicicleta lá parada e faz um golpe fundo e sangrento na almofada do “dedão do pé”. Sem mais nem para quê senta-se na “espécie de passeio”, saca de uma navalha e… corta o resto da “almofada” deitando-a para a rua!!! Levanta-se e vai embora como se nada fosse.
Lembro ter ido ao UDIB assistir à actuação do animado “Bana”, pelos vistos “coqueluche” à época. Gostei, mas gostei mais das bajudas a arrastar o pé na dança, coisa que me esforcei por acompanhar mas… nem tudo se consegue sempre!!
Conheci o colorido e extaseante mercado de Bandim(?) onde tudo se vendia e onde comprei uma estatueta (busto) facetada de bajuda e outra de um macaco em que o artesão estava a trabalhar e que não deixei acabar, por gostar dela como estava. Claro que não resisti a umas belas peles de cobra (surucucu?) e a uns panos coloridos.
Estatuetas inacabadas-Bajuda e macaco sentado – Guiné-Bissau-M.Bandim 1971
Foto: Luís fariaLembro alguns bons momentos passados em tons de chocolate, nessa cidade também de “perdição”!
O tempo ia-se volatilizando sem sobressaltos especiais.
Como a excepção confirma a regra, momentos vividos por elementos do 4.º GCOMB num patrulhamento ao final do dia, vieram quebrar um pouco a rotina pardacenta das missões atribuídas, situação essa que ainda hoje é narrada pelos intervenientes e que poderia ter resultado em desfecho complicado e grave, não fora a experiência e presença de espírito das partes e talvez também o modo como encarávamos aquela estadia.
Erros involuntários potencialmente fatais, que aconteciam na guerra e não deveriam acontecer e que muitas das vezes se não assumiam!
Elementos do 4.º GCOMB têm por missão patrulhar em zona pré-estabelecida e assim o fazem sem sobressaltos. Nada se vai passando, como era previsível.
Num descanso do patrulhamento preventivo na esquerda da estrada Bissau – João Landim, lá para as bandas dos aquartelamentos, o pessoal acomoda-se em segurança julgada conforme à situação. A tarde vai alta, a chuva cai em bátegas intermitentes. A dada altura o impensável (?) acontece e um grupo de “turras” (não estávamos lá por essa eventualidade??) aparece de supetão.
Conta o Azevedo:
- Estava descontraído e de repente começo a ver uma serie de “pretos maltrapilhos” armados, descalços e de farda meia rota… apanhei a arma e… um susto do cara…” !!
Recorda o Lobo:
- Apareceu uma chusma de “pretos” com armas deles(IN), mal amanhados e alguns descalços e quando nos vêem dizem: “somos Portugueses, somos Comandos, boa-tarde ” … sois portugueses mas é a pqvp, penso!!! Aperro a arma …”
Alguém os reconhece e avisa:
- São os Comandos Africanos disfarçados.
Seguem caminho sob o olhar curioso e vigilante do pessoal menos convencido e tudo acaba felizmente em bem, ficando um susto valente para recordar na vida!
Duas forças amigas que se cruzam na mesma zona sem prévio conhecimento?!! Fosse noite e talvez a estória tivesse sido outra.
A todos um abraço e até Teixeira Pinto, de novo
Luís Faria
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6403: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (29): Do Inferno ao Paraíso
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